Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3204/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL
BOA-FÉ
INDEMNIZAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1340.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 456.º, 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A acessão verifica-se, não em relação à totalidade do prédio, mas, apenas, no que se reporta à parcela fundiária na qual a edificação em terreno alheio veio a revelar uma nova unidade económica independente, susceptível de vir a ser adquirida pelo autor da incorporação.
2. Conhecendo o autor da obra, a quem foi autorizada a incorporação, pelo dono do terreno, a natureza alheia deste, encontra-se de boa-fé, podendo adquirir a propriedade do prédio, com fundamento no instituto da acessão industrial imobiliária.

3. O momento, juridicamente atendível, para a apreciação da boa fé do autor da obra, coincide com o momento fáctico da incorporação da acessão, devendo existir no momento da construção, enquanto esta se realiza, e cessando com a citação do seu autor para a acção de reivindicação do prédio onde foi implantada.

4. A acessão industrial imobiliária em análise constitui uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento, necessariamente, judicial, em que o pagamento do valor da unidade predial em causa funciona como condição suspensiva da transmissão do direito, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação.

5. Constituindo o montante a pagar pelo beneficiário da acessão uma dívida de valor, deve assumir uma expressão pecuniária actualizada, segundo o valor dos bens no momento da conversão em dinheiro, em relação ao valor que a parcela de terreno, autonomizada como unidade económica, tinha antes da incorporação.

6. E, sendo o direito de acessão um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender, na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação.

7. Não se verifica a causa da nulidade da decisão que condena a parte como litigante de má fé, por remissão para a matéria de facto dada por demonstrada, sem discriminar os factos em que assentava, que fundamentou de direito, em conclusões e conceitos jurídicos, mas cujo pressuposto decorre da factualidade que ficou consagrada.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., divorciado, industrial, residente na Rua Direita, Povo Novo, Aranhas, concelho de Penamacor, propôs a presente acção, com processo ordinário, contra B..., viúva, industrial, com domicílio profissional, no Café Triângulo, sito na Rua Alexandre Herculano, nº 1, em Albergaria-a-Velha, pedindo que, na sua procedência, se condene a ré a reconhecer ao autor o direito de propriedade sobre o prédio rústico infradiscriminado, declarando-se a posse da ré sobre o mesmo, insubsistente, ilegal e de má fé, condenando-se esta a demolir o prédio que ali construiu, bem como a restituí-lo ao autor, no estado em que se encontrava antes da construção do prédio urbano, e ordenando-se o cancelamento de qualquer registo que, em relação ao mesmo terreno ou à casa nele construída tenha sido feito, a favor da ré, alegando, para o efeito, e, em síntese, que adquiriu o prédio em causa, cujo direito de propriedade fez registar a seu favor, e, além disso, a aquisição originária, sendo certo que a ré iniciou a construção de uma edificação sobre o aludido prédio, há cerca de oito anos, vindo, posteriormente, a ocupar a totalidade do prédio.
Na contestação, a ré alega que, sendo embora o autor o proprietário do prédio em causa, adquiriu-o, porém, para que aquela primeira pudesse ali construir a sua casa, na sequência do relacionamento amoroso que, então, os ligava, o que veio a fazer, com a anuência do autor, que acompanhou tais obras e para elas chegou a contribuir, tendo, por fim, desanexado uma parcela de 1490 m2 desse mesmo prédio, e que, após a separação de ambos, em 1992, encetaram negociações para que a ré pudesse adquirir a parte do prédio em que havia construído a sua casa, pretendendo o autor vender a totalidade do mesmo.
Em reconvenção, a ré pede a condenação do autor a reconhecer que adquiriu, por incorporação, a aludida parcela de terreno, mediante o pagamento da quantia de 1.495.960S00, ou, em alternativa, a reconhecer que aquela adquiriu a totalidade do prédio, mediante o pagamento da quantia de 4.800.000$00, alegando, como fundamento, que foi este último valor o preço pago pelo autor pela aquisição do prédio em causa, sobre o qual permitiu que a ré implantasse a sua casa, suportando esta todos os encargos, acabando por desanexar a parcela de 1.490 m2, que deu lugar a um novo prédio, inscrito, matricialmente, a seu favor.
Na réplica, o autor invoca que, sendo certo que não se opôs à construção levada a cabo pela ré, por esta ter prometido que o indemnizaria, tal não veio a acontecer, pelo que deve improceder essa mesma pretensão, mas, caso assim se não entenda, porquanto a parte ocupada pela ré foi de 1.490 m2, com o valor de 5.000.000$00, à data do início das obras mencionadas, deve esta ser condenada a pagar-lhe tal quantia, fazendo sua essa mesma área.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada e, em consequência, condenou a ré a reconhecer que o autor é o titular do direito de propriedade que incide sobre o prédio infradiscriminado, com excepção da parcela de 1.490 m2, ocupada por esta última, absolvendo a ré do mais peticionado, e o pedido reconvencional, procedente por provado, condenando o autor a reconhecer que a ré adquiriu, por incorporação, a aludida parcela de terreno, desanexada daquele prédio rústico, inscrito este na matriz predial, sob o artigo 5.442°, da freguesia de Albergaria-a-Velha, e descrito na Conservatória do Registo Predial desta mesma localidade, sob o n°30052, mediante o pagamento da quantia, equivalente em euros, a 1495.960$00, condenando, por fim, o autor, como litigante de má fé, numa indemnização, a favor da ré, no montante de 1.000 €, e, em igual importância, a título de multa.
Desta sentença, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – A resposta dada ao artigo 13° da base instrutória deve ser corrigida para: provado apenas que actualmente vale o correspondente a 6.000$00, entendendo-se tal como o valor do metro quadrado do terreno do prédio identificado na alínea A) dos factos assentes.
2ª- Tendo tal quesito sido extraído dos factos alegados pelo recorrente, designadamente do artigo 13° da réplica onde se alude ao preço do metro quadrado de terreno e isso na sequência de anteriores artigos do mesmo articulado onde se alega preços por metro quadrado, não pode o mesmo quesito referir-se a outra matéria.
3ª- Importa apurar o valor actual do terreno ocupado pela ré, e tal valor é necessariamente maior que o valor em 1991. A peritagem demonstrou-o e as testemunhas, no dizer da própria fundamentação da decisão da matéria de facto também. Mesmo que a peritagem o não tivesse demonstrado sempre se deveria proceder à actualização dos valores de 1991 em função da depreciação da moeda e da inflação.
4ª - A resposta aos artigos 4o e 5o da base instrutória deve ser corrigida de molde a que não conste como provado que "actualmente" o valor por metro quadrado do terreno é de 1.004$00 e sendo o valor (actual) do terreno ocupado pela construção e logradouro de 1.495.960$00, pois tal está em frontal contradição com a demais matéria provada, nomeadamente a matéria constante dos quesitos 11° e 13° e com a fundamentação da decisão que remete para meios de prova, designadamente a peritagem, que nos apontam para valores opostos. Ou seja, os meios de prova em que a decisão se apoia indicam que o preço, actualmente, quer do metro quadrado quer do terreno, é muito superior aos preços de 1991.
5ª - Caso se reconheça que a ré tem direito à acessão o valor a pagar pelo terreno que ocupou teria de ser um valor actual, calculado à data de hoje e não à data do início das obras. A não ser assim violar-se-ia o artigo 1340° do CC e bem como os princípios constitucionais contidos nos artigos 62° e 13° da CRP.
6ª - Para além de ser uma interpretação inconstitucional do artigo 1340° considerar-se que o preço a pagar seria o preço calculado à data da edificação tal constituiria um abuso de direito, pois não obstante a ré poder invocar o seu direito à acessão já, segundo a sua versão, desde 1991 apenas o veio a fazer onze anos mais tarde durante os quais gratuitamente usou um terreno que bem sabia lhe não pertencer.
7ª - Existe uma manifesta contradição entre as respostas aos quesitos 4o e 5o e as respostas aos quesitos 11o e 13°, pois nestes últimos se reconhece que o preço por metro quadrado era já em 1991 superior a 1.004$00 e em 2002 era de 6.000$00. Não obstante nos quesitos 4o e 5° deu-se por provado que o valor do terreno era o mesmo em 1991 e actualmente.
8ª- A douta sentença é nula nos termos do artigo 668°-1-d) pois que parte do pressuposto que actualmente o prédio na sua totalidade vale o correspondente a 6.000.000$00 reportando tal matéria de facto ao quesito 13°, quando este quesito não contem esta matéria e nenhuma das partes sequer a alegou.
9ª - Para que a ré possa ter direito reconhecido à acessão necessita de provar que o valor das obras era superior ao valor do prédio. No entanto apenas alegou qual o valor do metro quadrado de terreno. Ora, o terreno é uma das componentes do prédio. Sabendo que no prédio havia árvores e que até parte delas foram cortadas pela ré não é possível apurar qual o valor do prédio socorrendo-nos apenas do valor do metro quadrado de terreno, pelo que a reconvenção não poderia ser julgada procedente.
10ª - Acresce que sempre a ré teria de provar a sua boa-fé aquando da realização das obras. Ora, pelo menos em 1992 a ré foi informada que o dono do terreno pretendia ou que lhe fosse pago um valor a acordar pelo terreno ou comprar as edificações aí existentes. Tais edificações, então, não ultrapassavam os 14.000.000$00. Assim, tudo quanto se edificou após tal data não foi construído de boa-fé, pelo que não pode entrar no cálculo previsto no artigo 1340° do CC.
Também por tal se deverá esclarecer a resposta ao quesito 2o no sentido de que o incentivo, consentimento e autorização do autor apenas se verificou até 1992.
11ª - O recorrente não devia ter sido condenado como litigante de má-fé pois que não ocultou os factos que lhe competia alegar. Apesar de não ter provado alguns dos factos que alegara, tal não significa que esses factos não fossem verdadeiros, só que apenas se não provaram. Acresce que a decisão, nesta parte, não está fundamentada, pois não indica quais os factos que o recorrente procurou ocultar e distorcer, pelo que sempre seria nula nos termos do artigo 668° 1-b) do CPC.
Nas suas contra-alegações, a ré entende que a sentença recorrida não violou quaisquer preceitos legais, aplicando, correctamente, o direito aos factos, devendo, pois, manter-se, na sua totalidade.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da nulidade da sentença.
II - A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
III - A questão do reconhecimento do direito à acessão.
IV – A questão da condenação em litigância de má fé.

I

DA NULIDADE DA SENTENÇA

Defende o autor que a sentença é nula, porquanto existe uma manifesta contradição entre as respostas aos quesitos 4o e 5o e as respostas aos quesitos 11o e 13°, pois que, nestes últimos, se reconhece que o preço, por metro quadrado, era, já em 1991, superior a 1.004$00 e, em 2002, de 6.000$00, não obstante, naqueles quesitos 4o e 5°, se ter dado como provado que o valor do terreno era o mesmo, em 1991 e, actualmente.
Dispõe o artigo 668º, nº 1, c), do CPC, que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
A oposição, acabada de referir no normativo legal citado, é a que se verifica no processo lógico de elaboração da sentença, em que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas se extrai a decisão a proferir.
Por isso, não é relevante, no âmbito da analisada causa de nulidade da sentença, a contradição existente entre os factos que a sentença deu como provados ou entre estes e outros já apurados no processo, hipótese em que, em vez da arguida nulidade da sentença, existiria antes um erro de julgamento STJ, de 20-4-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 57; STJ, de 9-12-93, BMJ nº 432, 342; STJ, de 21-10-88, BMJ nº 380, 444..
Porém, o que é facto é que existe uma manifesta contradição nas respostas aos pontos nºs 5 (“o valor do terreno ocupado pela construção e logradouro, aludidos sob as alíneas B) e seguintes (parcela desanexada com a área de 1.490 m2), era de 1.495.960$00, quer, imediatamente, antes das referidas obras, quer à data da implantação - 1990/1991, assim como, actualmente”) e 13º (“actualmente, [o m2 do prédio] vale o correspondente a 6.000$00”).
E esta patente contradição, proveniente de um manifesto lapso material, como é fácil intuir, através da análise do teor do relatório pericial de folhas 97 a 102, tem que ser superada, considerando-se não escrito o segmento daquele ponto nº 5, onde se escreve “…assim como actualmente”, ficando a resposta circunscrita ao texto, segundo o qual o valor do terreno ocupado pela construção e logradouro, aludidos sob as alíneas B) e seguintes (parcela desanexada com a área de 1.490 m2), era de 1.495.960$00, quer, imediatamente, antes das referidas obras, quer à data da implantação - 1990/1991”.
Por outro lado, o autor defende ainda que ocorre uma outra causa de nulidade da sentença, a que se reporta o artigo 668º, nº 1, d), do CPC, porquanto o Juiz apreciou ou conheceu de “questões de que não podia tomar conhecimento”, pois que partiu do pressuposto de que, actualmente, o prédio, na sua totalidade, vale o correspondente a 6.000.000$00, reportando tal matéria de facto ao quesito 13°, quando este quesito não contem esta factualidade e nenhuma das partes sequer a alegou.
Efectivamente, fazendo uma breve resenha da história da tramitação processual dos autos, há que registar que o autor, no articulado da réplica, alegou, no respectivo artigo 13º, referindo-se ao metro quadrado de terreno, que “valendo agora mais de 6000$00”, por oposição ao correspondente valor, no momento do início da obra, alegação essa que fez eco, no ponto nº 13º da base instrutória, exactamente, com o mesmo teor, isto é, “valendo agora mais de 6000$00?”, muito embora a resposta a este mesmo ponto tenha sido a de “provado apenas que actualmente vale o correspondente a 6000000$00”.
Porém, como é fácil de constatar, surgindo esta resposta no mesmo contexto factual do enquadramento da alegação do autor e da sua subsequente formulação na base instrutória, como matéria controvertida, a mesma padece de um inequívoco lapso material de registo, ao afirmar-se o valor de “6000000$00”, quando é bem patente que apenas se queria dizer “provado apenas que actualmente vale o correspondente a 6000$00”.
Assim sendo, é de desconsiderar, por completo, a referência que o texto da sentença, à revelia do acabado de expor, fora do contexto lógico e factual dos articulados e da subsequente base instrutória, faz ao prédio [na sua totalidade], ao escrever-se, “actualmente (o prédio na totalidade) vale o correspondente a 6000000$00”.
Como assim, corrigido este manifesto lapso material, em conformidade com o estipulado pelos artigos 249º, do Código Civil (CC), 666º, nº 2 e 667º, nº 1, do CPC, e reposta a verdade da factualidade, lógica e juridicamente, viável, altera-se, em conformidade, a respectiva resposta ao ponto nº 13 da base instrutória, afastando-se, de modo terminante, também, esta invocada causa da nulidade da sentença.
E, sendo taxativa a enumeração que o artigo 668º, do CPC, realiza, a propósito das causas que determinam a nulidade da sentença, porque outras não existem, e, nem sequer foram arguidas, improcede a correspondente invocação realizada pelo autor.

II

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Defende o autor que devem ser alteradas as respostas dadas aos pontos nºs 4º, 5º, 13º e 2º da base instrutória, porquanto as testemunhas e o relatório da peritagem demonstram uma realidade diversa daquela a que o Tribunal chegou.
Porém, e, desde logo, sendo certo que o autor invoca a discordância entre a prova que ficou consagrada e aquela que foi produzida em audiência, e indica, explicitamente, quais os concretos pontos da matéria de facto que considera, incorrectamente, julgados, já não é claro quanto ao preciso sentido de orientação que os mesmos deveriam ter conhecido, com excepção daquele ponto nº 13º, nem refere os concretos meios probatórios constantes da gravação, isto é, os depoimentos em que se funda e que imporiam, na sua óptica, decisão diversa da recorrida, e bem assim como o teor do relatório pericial, em relação aqueles pontos da matéria de facto, de modo a permitir à ré proceder, na sua contra-alegação, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, também por referência ao assinalado na acta, nos termos do estipulado pelos artigos 690º-A, nºs 1, a) e b), 2 e 3 e 522º-C, nº 2, ambos do CPC.
Assim sendo, atendendo ao teor dos normativos legais acabados de mencionar, pese embora ter ocorrido a gravação da matéria de facto, não tendo a mesma sido impugnada, em conformidade com o disposto no artigo 690º-A, inexiste fundamento legal para determinar a pretendida alteração sobre a decisão da matéria de facto, atento ainda o preceituado pelo artigo 712º, nº 1, a), ambos do CPC.
Como assim, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos:
Por escritura pública de compra e venda, realizada em 29 de Maio de 1990, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, o autor declarou comprar e Humberto Henriques de Almeida e mulher declararam vender, pelo preço de 4.800.000$00, o prédio rústico a pinhal, com 4.780 m2 de área, sito no Coito, freguesia de Albergaria-a-Velha, a confrontar do Norte com António Mendes, Sul com Maria Alice Ferreira de Almeida, Nascente com estrada e Poente com caminho, inscrito na matriz predial, sob o artigo 5.442, e inscrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob a ficha 00052 – A).
Há, pelo menos, nove anos, a ré iniciou e construiu um prédio urbano com anexos, no prédio rústico, identificado em A), para o que foi emitida licença camarária, a favor da ré, posteriormente, renovada, em 17 de Março de 1993, 23 de Março de 1994 e 5 de Maio de 1997, e, de seguida, ocupou toda a restante área, cortando as árvores e vedando o terreno - B).
Em 13 de Janeiro de 1993, solicitou destaque da área de 1490 m2 daquele prédio, onde a ré havia erigido a casa, com cave e logradouro, tendo sido aprovado, ficando a confrontar de Norte com António Mendes, Sul com Maria Alice Ferreira de Almeida, Nascente Estrada (arruamento público) e Poente com o autor – C).
A conclusão da casa ocorreu, em 12 de Janeiro de 1998, sendo composta de cave e rés do chão, com 11 divisões e com logradouro, com 199,1 m2 de área coberta e 1.290,90 m2 de superfície descoberta, que a ocupou com logradouro, revestido, em parte, com calçada à antiga portuguesa e jardim e, noutra parte, plantando árvores de fruto – D).
A ré apresentou o modelo 129, para inscrição na matriz predial urbana daquela parcela desanexada para construção e, na mesma data de 13 de Janeiro de 1998, outro modelo 129, para inscrição desta casa na matriz predial urbana, tudo com a mesma área de 1.490 m2, sendo a coberta de 199,10 m2 e a descoberta de 1.290,90 m2, encontrando-se inscrita, a favor da ré, na Repartição de Finanças, sob o artigo urbano nº 3.645 – E).
O auto de vistoria da Câmara Municipal desta vila, com o nº 39/99, ocorreu em 15 de Julho de 1999, e foi requerido pela ré, para efeitos da concessão de licença de habitação, tendo sido atribuído ao imóvel os nºs de polícia 61 e 61-A - F).
A electricidade foi requerida, em nome da ré, estando ela a pagá-la; a rede de infra-estruturas telefónicas, requerida em nome da ré, foi aprovada; a contribuição autárquica daquele imóvel, correspondente ao artigo matricial n° 3.645, está a ser paga e emitida, em nome da ré, se bem que esta requereu a respectiva isenção, que lhe foi deferida - G).
A construção, aludida nas alíneas B) e seguintes, que a ré destinou à sua morada com a filha, foi construída em alvenaria de tijolo, com argamassa de cimento e encontra-se ligada, com carácter de permanência, ao solo - H).
A ré vedou a área desanexada - 1.490 m2 - com um muro de tijolo e cimento de betão armado, com altura entre os 2,5 m e 1,60 m, cujo custo foi de 6.000.000$00 - I).
Ao tempo do início da construção, aludida em B), anos de 1990/1991, tal como hoje, todo o terreno do autor, inclusive a área desanexada, era um terreno destinado à cultura arvense - terreno a pinhal - com aptidão para a construção urbana, sito fora do centro de Albergaria-a-Velha, mais concretamente, na Estrada da Nª Sª do Socorro – J).
O autor comprou o imóvel, identificado em A), para que a aí pudesse construir a sua casa/habitação, facilitando-lhe essa mesma construção - 1o.
A ré procedeu à construção, aludida sob as alíneas B) e seguintes, com o incentivo, consentimento, conhecimento e autorização do autor para a incorporação daquela construção naquela parcela de terreno, chegando este a acompanhar as obras iniciais dessa mesma casa - 2o.
A construção, aludida nas alíneas B) e seguintes, foi levada a cabo, única e exclusivamente, com dinheiro da ré, que suportou todas as despesas com os materiais aplicados, mão de obra e licenças de construção - 3o.
Quer em 1990/1991, quer, actualmente, o preço corrente dos terrenos para construção, na Estrada da Na Sa do Socorro, era e é de 1.004$00/m2 - 4o.
O valor do terreno ocupado pela construção e logradouro, aludidos sob as alíneas B) e seguintes (parcela desanexada com a área de 1.490 m2), era de 1.495.960$00, quer, imediatamente, antes das referidas obras, quer à data da implantação - 1990/1991 - 5o.
No estado em que se encontrava, em 1991, após a primeira fase de construção, ou seja, em pedreiro com telha (a cave e rés do chão na fase de alvoramento, com tijolo, placas, cimento e com telhado), o valor da construção, aludida em B) e seguintes, era de 11.000.000$00 - 6°.
Em 1995, aquela construção encontrava-se na fase de rebocos e tinha um valor de 14.000.000$00 - 7o.
No estado de acabada e concluída, precisamente como se encontra de Janeiro de 1998 até ao presente, com vedação e pátio com calçada à antiga portuguesa e jardim, tem um valor de 42.500.000$00 – 8º.
Aquando da realização da escritura de compra e venda, aludida em A), o valor do metro quadrado do prédio aí descrito e na zona onde a construiu, era de 2.000$00 - 11o.
Actualmente, [o m2 do prédio] vale o correspondente a 6.000$00 – 13º.

III

DA ACESSÃO

Sustenta, igualmente, o autor que, para que a ré possa ter um direito reconhecido à acessão, necessita de provar que o valor das obras foi superior ao valor do prédio.
A acessão constitui uma causa de aquisição originária retroactiva do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreendendo a sua noção legal o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa numa outra coisa da titularidade de outra, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1316º, 1317º, d) e 1325º, todos do CC.
Tratando-se da construção de um edifício, como ocorre no caso em apreço, releva, essencialmente, o disposto no artigo 1340º, nºs 1, 2 e 3, do CC, segundo o qual, se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio e o valor que a mesma tiver trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes da obra, mas se o valor acrescentado for menor, a obra pertencerá ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o seu autor do valor que tinha ao tempo da incorporação, enquanto que se o valor acrescentado pela obra for igual ao do terreno, haverá licitação entre ambos.
Como assim, constituem elementos, essencialmente integrantes, da acessão industrial imobiliária, acabada de caracterizar, a construção de uma obra, que essa obra haja sido efectuada em terreno, a sua implantação em terreno alheio, que da obra tenha resultado uma incorporação, ou seja, a constituição definitiva de um todo único entre a construção e o terreno, o valor da obra e do terreno, para efeitos de determinação do adquirente desse todo, por forma a que o valor da obra seja superior ao valor que o terreno tinha antes da incorporação, e, finalmente, a actuação de boa-fé, por parte do autor da obra, isto é, da construção urbana.
Face à materialidade que ficou demonstrada, encontram-se verificados os quatro primeiros pressupostos, acabados de considerar, ou seja, a construção de uma obra, efectuada em terreno, a sua implantação em terreno alheio e a constituição definitiva de um todo único entre a construção e o terreno.
A questão complica-se, porém, na perspectiva do autor, em relação aos requisitos do valor da obra e do terreno, para efeitos de determinação do adquirente desse todo, e da boa-fé.
Efectivamente, o requisito do valor relativo do terreno, antes da implantação da construção e desta própria é, também, imprescindível à procedência da aquisição do direito de propriedade, com fundamento na acessão industrial imobiliária, sendo certo, outrossim, que a acessão se verifica, não em relação à totalidade do prédio, mas, apenas, no que se reporta à parcela fundiária na qual a edificação em terreno alheio veio a revelar uma nova unidade económica independente, susceptível de vir a ser adquirida pelo autor da incorporação, aliás, em consonância com o pedido principal formulado pela ré-reconvinte STJ, de 10-2-2000, BMJ nº 494, 347; de 5-3-96, CJ (STJ), Ano IV, T1, 129; RC, de 25-5-99, CJ, Ano XXIV, T3, 30; RC, de 7-11-89, CJ, Ano XIV, T5, 50; de 8-1-85, CJ, Ano X, T1, 56; RP, de 3-4-95; BMJ nº 446, 344; e de 6-12-90, CJ, Ano XV, T5, 212; RL, de 24-1-2002, CJ, Ano XXVII, T1, 87..
A este propósito, diz o autor que, para que a ré possa ter direito reconhecido à acessão, necessita de provar que o valor das obras era superior ao valor do prédio.
Efectivamente, ficou demonstrado, quer o valor do terreno, antes da implantação da edificação, no quantitativo de 1495960$00, como resulta das respostas aos pontos nºs 4º e 5º, mas, também, da própria construção, na primeira fase, em 1991, no montante de 11000000$00, na fase do reboco, em 1995, de 14000000$00, e, no estado de conclusão, em 1998, de 425000000$00, como decorre do teor das respostas aos pontos nºs 6º, 7º e 8º, todos da base instrutória.
Neste particular, constitui afirmação destituída de falta de experiência das coisas e de senso comum, como o faz o autor, a alegação de que, sabendo-se que no prédio havia árvores e que, parte delas, foram cortadas pela ré, não seria possível apurar o valor do prédio, através do simples recurso ao valor do metro quadrado de terreno, quando é certo que ficou demonstrado, exuberantemente, o valor relativo do terreno onde foi implantada a construção e desta própria, em termos de ser, totalmente, despiciendo, o valor das árvores radicadas em 1490 m2 de superfície, onde foi erigida a edificação.
Como assim, está verificado, no caso concreto, o requisito do valor da obra e do terreno.
Por seu turno, nos termos do estipulado pelo nº 4, do artigo 1340º, do CC, entende-se que houve boa-fé, se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
Neste particular, acentue-se que ficou provado que a ré procedeu à construção de uma moradia, constituída por cave com arrumos, rés-do-chão, 1º andar e sótão, destinada a habitação, com o incentivo, consentimento, conhecimento e autorização do autor para a incorporação da mesma naquela parcela de terreno, propriedade deste, chegando este a acompanhar as obras iniciais dessa mesma casa, tendo a construção sido levada a cabo, única e exclusivamente, com dinheiro da ré, que suportou todas as despesas com os materiais aplicados, mão de obra e respectivas licenças.
Assim sendo, ficou demonstrado que a ré, autora da obra, embora conhecesse que o terreno era alheio, foi autorizada pelo autor, dono do terreno, a incorporá-la no mesmo, encontrando-se, portanto, aquela na situação de boa-fé, sendo certo, aliás, que era ao autor a quem competia o ónus da prova da existência de má fé, enquanto facto impeditivo do direito invocado pela ré-reconvinte, nos termos do preceituado pelo artigo 342º, nº 2, do CC, e, consequentemente, em termos de poder inviabilizar a aquisição da propriedade do prédio, com fundamento no instituto da acessão industrial imobiliária, por parte desta última STJ, de 14-12-1994, CJ, Ano II, 1994, T3, 180; e de 6-3-1986, BMJ nº 355, 373 e ss. .
Porém, o autor alega que a ré, pelo menos em 1992, foi por si informada que pretendia que lhe fosse pago um valor a acordar pelo terreno ou comprar as edificações nele existentes, pelo que tudo quanto se construiu, após essa data, não foi levantado de boa-fé, não podendo entrar no cálculo previsto pelo artigo 1340°, do CC.
Dispõe o artigo 1340º, nº 4, do CC, citado, que “entende-se que houve boa fé, se o autor da obra…desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”.
Tratando-se, «in casu», de uma situação em que o dono do terreno autorizou a incorporação, porquanto a ré, como bem se demonstrou, conhecia que o terreno onde edificou pertencia ao autor, o momento, juridicamente atendível, para a apreciação da boa fé do autor da obra coincide com o momento fáctico da incorporação da acessão, devendo existir no momento da construção, enquanto esta se realiza, e cessando com a citação do mesmo construtor para a acção de reivindicação desse terreno Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 164; STJ, de 2-2-73, BMJ nº 224, 162; e de 12-2-80, BMJ nº 294, 341..
Com efeito, contrariamente ao que acontece na hipótese da prescrição, a boa fé, em matéria de frutos, benfeitorias e acessão, deve ser contínua, deixando de se aplicar ao possuidor, desde o momento em que ela cessa, o regime estabelecido para a posse de boa fé, que só se mantém, na regulamentação dos actos que, até então, tenham acontecido.
E a boa fé deixa de existir, desde o momento em que se prove que o possuidor conhece os vícios da sua posse, ou seja, que está a lesar com a sua posse os direitos de outrem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 38, 20 a 22; Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, 318; Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ, de 17-3-70, RLJ, Ano 104º, 116..
Por outro lado, o artigo 481º, a), do CPC, determina que a citação produz o efeito de fazer cessar a boa fé do possuidor.
Ora, se a ré, com o acto de autorização da incorporação, se acha de boa fé, competiria ao autor, enquanto proprietário reivindicante, demonstrar que aquela se encontra de má fé, isto é, que tinha conhecimento de que estava a lesar com a sua posse os direitos do autor, nos termos do estipulado pelo artigo 342º, nºs 1 e 2, do CC, o que não aconteceu, como resulta expresso da matéria factual que ficou consagrada, pois que, para além do ónus da alegação, cabe, igualmente, à parte, sob pena de ver naufragada a sua pretensão, o respectivo ónus da prova da factualidade invocada.
E, neste particular, apenas se demonstrou que a ré procedeu à edificação com o incentivo, consentimento, conhecimento e autorização do autor para a incorporação da obra na aludida parcela de terreno, chegando este a acompanhar a fase inicial da construção da moradia.
E é, por esta razão, que inexiste qualquer base factual para proceder á alteração da resposta ao ponto nº 2 da base instrutória, uma vez que não se provou que o consentimento e autorização do autor se tenham reduzido a um lapso temporal até 1992.
Termos em que, por se mostrarem preenchidos os requisitos da acessão industrial imobiliária, improcedem, com o devido respeito, as conclusões constantes da apelação interposta pelo autor.
Porém, o autor sustenta ainda que, a reconhecer-se que a ré goza do direito à acessão, então o valor a pagar pelo terreno que ocupou teria de corresponder a um valor actual, calculado à data de hoje e não do início das obras, sob pena de violação do disposto pelo artigo 1340°, do CC, e bem assim como dos princípios constitucionais contidos nos artigos 62° e 13°, da Constituição da República Portuguesa, para além de que o exercício da acessão, anos depois de, gratuitamente, a ré ter usado um terreno que bem sabia não lhe pertencer, constitui um abuso de direito.
A espécie da acessão industrial imobiliária em análise representa uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento, necessariamente, judicial, em que o pagamento do valor da unidade predial em causa funciona como condição suspensiva da transmissão do direito, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ (STJ), Ano IV, T1, 20 e 21; STJ, de 4-4-95, BMJ nº 446, 245..
Considerando, porém, que o montante da indemnização só se define, por via da sentença final de mérito, o princípio da adequação formal aponta no sentido de o autor da obra pagar ou depositar o preço, no prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de caducidade do respectivo direito, aplicando-se, subsidiariamente, a solução consagrada pelo artigo 28º, nº 5, do DL nº 385/88, de 25 de Outubro (Lei do Arrendamento Rural) Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ (STJ), Ano IV, T1, 26; RL, de 24-1-02, CJ, Ano XXVII, T1, 87..
Efectivamente, dispõe o artigo 1340º, nº 1, do CC, que “se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio…e o valor que as obras…tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras,…”.
Assim sendo, é a própria lei que, aparentemente, ao contrário do defendido pelo apelante, determina que o autor da incorporação pagará ao dono do prédio o valor que este tinha antes da realização das obras, não sendo de actualizar o valor do prédio urbano a pagar pelo autor da obra Neste sentido, Antunes Varela, Acessão Industrial Imobiliária, CJ (STJ), Ano VI, T2, 11 e 12; STJ, de 17-3-98, CJ (STJ), Ano VI, T1, 134; RL, de 21-1-2003, CJ, Ano XXVII, T1, 64. .
A quantia que a ré tem a pagar ao autor consiste no valor que o prédio tinha antes da realização das obras, ou seja, 1495960$00.
Ora, para saber se é possível a sua actualização, importa, sobretudo, determinar se se trata de uma obrigação pecuniária ou de uma dívida de valor, porquanto o artigo 550º, do CC, subordinou o cumprimento das primeiras ao princípio nominalista, segundo o qual “o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se…pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário”, o que significa que, nesta modalidade de obrigações, é o credor quem suporta o risco da desvalorização da moeda.
Por seu turno, e, em contrapartida, a dívida de valor é uma dívida cujo objecto não é, directamente, uma soma de dinheiro, mas uma prestação de outra natureza, intervindo o dinheiro, apenas, como meio da sua liquidação Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, 887; Vaz Serra, Obrigações Pecuniárias, 152., não lhe sendo aplicável, por isso, o princípio nominalista, atento o estipulado pelo artigo 551º, do CC, pelo que, muito embora se venha a converter numa obrigação de dinheiro, enquanto não se cristalizar num montante fixo, o credor da respectiva obrigação escapa á inerente depreciação monetária.
Tratando-se de uma dívida de valor, o montante a pagar pelo beneficiário da acessão deve assumir uma expressão pecuniária actualizada, segundo o valor dos bens no momento da conversão em dinheiro, em relação ao valor que a parcela de terreno, autonomizada como unidade económica, tinha antes da incorporação STJ, de 10-2-2000, BMJ nº 494, 347; RL, de 24-1-2002, CJ, Ano XXVII, T1, 87; RP, de 4-3-97, CJ, Ano XXII, T2, 177..
Porém, sendo o direito de acessão, como se disse, um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação, razão pela qual a interpretação literal decorrente do artigo 1340º, nº 1, do CC, «valor que o prédio tinha antes das obras», deve ceder o seu lugar à interpretação semântica da norma, por forma a manter intacto o espírito e a intenção da lei, por força da qual, em substituição do advérbio de tempo «antes» se coloque a preposição simples «sem», lendo-se o segmento normativo em causa como o «valor que o prédio tinha sem as obras» STJ, de 5-3-96, CJ (STJ), Ano IV, T1, 129..
Ora, valendo o prédio, antes da realização das obras, a quantia de 1495960$00, foi o próprio Tribunal que actualizou o valor da respectiva parcela de terreno adquirida pela ré, ao tempo do exercício do direito de acessão, no articulado da reconvenção, através da resposta ao ponto nº 13º, no quantitativo de 8940000$00, ou seja, em 44592,53 €, que é, portanto, o valor a pagar pela ré ao autor.

IV

DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

O autor defende que não devia ter sido condenado como litigante de má-fé, pois que não ocultou os factos que lhe competia alegar, apesar de não ter provado alguns dos que invocara, para além de que a decisão, nesta parte, não está fundamentada.
Diz-se litigante de má fé, segundo o disposto pelo artigo 456º, nº 2, do CPC, quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [a)], tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [b)], tiver praticado omissão grave do dever de cooperação [c)] ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)].
Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização, a favor da parte contrária, se esta a pedir, nos termos do disposto pelo artigo 456º, nº 1, do CPC.
A má fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1, 266º-A e 456º, nº 2, c), do CPC, impõem às partes.
Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.
Com efeito, a má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, a que se reporta a alínea a), diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a alínea b), ambas do nº 2, do artigo 456º, do CPC, ou seja, da má fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 355 a 358, o qual, porém, entende que esta modalidade de má fé tem natureza instrumental; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e ss..
Resta, por fim, realçar que as duas restantes modalidades de má fé, já referidas, a que aludem as alíneas c) e d), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, têm natureza instrumental.
O Tribunal «a quo» condenou o autor como litigante de má-fé, considerando a invocação dolosa, por parte do mesmo, de factos cuja falta de fundamento, não só não poderia ignorar, mas de que tinha perfeito e claro conhecimento, já que se tratam de factos pessoais, e que, de uma forma digna de censura, procurou ocultar, primeiro, e distorcer, depois.
Porém, a sentença recorrida não concretizou com factos a conclusão formulada sobre a actuação dolosa do autor, quanto aqueles de cuja falta de fundamento tinha perfeito conhecimento.
Alicerçando o pedido de reivindicação que deduziu na acção na construção, pela ré, de uma moradia, num prédio rústico de que aquele é proprietário, perante o articulado da contestação-reconvenção apresentado pela ré, em que esta invoca que, em consequência de um relacionamento amoroso que manteve com o autor, foi por este autorizada e incentivada a construir no mesmo a sua casa de habitação, que aquele acompanhou, e onde, actualmente, a ré dorme, come e reside com a filha, o autor, na réplica, alega que apenas não se opôs ao início das obras, porque a ré lhe prometeu indemnizá-lo dos prejuízos que viesse a causar-lhe.
Por seu turno, ficou demonstrado que o autor comprou o prédio rústico para que a ré nele pudesse construir a sua casa de habitação, facilitando-lhe essa mesma edificação, a que a ré procedeu, com o incentivo, consentimento, conhecimento e autorização do autor para a incorporação da construção na aludida parcela de terreno, levada a cabo, única e exclusivamente, com dinheiro desta, que suportou todas as despesas com os materiais aplicados, mão de obra e licenças de construção, e cuja fase inicial o autor acompanhou.
A isto acresce que não ficou provada a alegação do autor, segundo a qual este “apenas não se opôs ao início das obras porque a ré lhe prometeu indemnizá-lo dos prejuízos que viesse a causar-lhe”, por ter conhecido resposta negativa a matéria constante do ponto nº 9 da base instrutória.
De facto, o autor não tem obrigação de confessar, nem pode ser condenado pelo exercício do seu direito de defesa, excepto quando o mesmo se desenvolve, de forma desleal e sem verdade, porquanto não goza do direito de afirmar uma versão oposta à realidade por si sabida.
Efectivamente, ao propor a acção e ao deduzir oposição à contestação-reconvenção, sem levar aos articulados parte substancial da realidade por si, sobejamente, conhecida, o autor sabia que estava a utilizar um meio processual, cujo uso é, manifestamente, reprovável, por entorpecer a acção da justiça, impedindo que um mais fácil, célere e são apuramento da verdade viesse a acontecer.
Como assim, tendo-se demonstrado que o autor apresentou em juízo, dolosamente, uma posição processual cuja falta de fundamento bem conhecia, e não se esqueça que a litigância de má fé, após a Reforma do Processo Civil de 1995, não pressupõe apenas o dolo, pois se basta com a negligência grave, como já se acentuou, a sua conduta é determinante de responsabilidade processual subjectiva, enquanto litigante de má fé, nos termos do disposto pelo artigo 456º, nºs 1 e 2, a) e b), do CPC.
Quanto à alegada falta de fundamentação fáctica desta parte da decisão, que apenas construiu a figura da litigância de má fé com conceitos jurídicos e conclusões, sem discriminar os factos em que assentava, mas cujo pressuposto decorre da factualidade que ficou consagrada, este Tribunal da Relação, reconhecendo a existência da prova obtida, supre a omissão verificada, enquadrando os factos apurados na qualificação jurídica operada pela sentença.
Efectivamente, dispõe o artigo 668º, nº 1, b), do CPC, que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Porém, só a total omissão dos fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão, e não a falta de justificação dos respectivos fundamentos ou a fundamentação deficiente, errada ou incompleta constitui a nulidade, prevista pelo artigo 668º, nº 1, b), do CPC STJ, de 24-11-76, BMJ nº 261, 103; STJ, de 8-4-75, BMJ nº 246, 131; STJ, de 2-7-74, BMJ nº 239, 168; STJ, de 14-5-74, BMJ nº 237, 132; STJ, de 15-3-74, BMJ nº 235, 152; STJ, de 3-7-73, BMJ nº 229, 155..
Procedem, pois, apenas, em parte, as conclusões constantes das alegações do autor.

CONCLUSÕES:

I – A acessão verifica-se, não em relação à totalidade do prédio, mas, apenas, no que se reporta à parcela fundiária na qual a edificação em terreno alheio veio a revelar uma nova unidade económica independente, susceptível de vir a ser adquirida pelo autor da incorporação.
II – Conhecendo o autor da obra, a quem foi autorizada a incorporação, pelo dono do terreno, a natureza alheia deste, encontra-se de boa-fé, podendo adquirir a propriedade do prédio, com fundamento no instituto da acessão industrial imobiliária.
III - O momento, juridicamente atendível, para a apreciação da boa fé do autor da obra, coincide com o momento fáctico da incorporação da acessão, devendo existir no momento da construção, enquanto esta se realiza, e cessando com a citação do seu autor para a acção de reivindicação do prédio onde foi implantada.
IV - A acessão industrial imobiliária em análise constitui uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento, necessariamente, judicial, em que o pagamento do valor da unidade predial em causa funciona como condição suspensiva da transmissão do direito, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação.
V - Constituindo o montante a pagar pelo beneficiário da acessão uma dívida de valor, deve assumir uma expressão pecuniária actualizada, segundo o valor dos bens no momento da conversão em dinheiro, em relação ao valor que a parcela de terreno, autonomizada como unidade económica, tinha antes da incorporação.
VI – E, sendo o direito de acessão um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender, na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação.
VII – Não se verifica a causa da nulidade da decisão que condena a parte como litigante de má fé, por remissão para a matéria de facto dada por demonstrada, sem discriminar os factos em que assentava, que fundamentou de direito, em conclusões e conceitos jurídicos, mas cujo pressuposto decorre da factualidade que ficou consagrada.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, condenam a ré no pagamento da quantia equivalente a 8940000$00, ou seja, em 44592,53 €, confirmando, quanto ao mais, a douta sentença recorrida.

*

Custas, a cargo do autor e da ré, na proporção de 2/3 e de 1/3, respectivamente.