Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | DR. JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | AVAL COLECTIVO REMISSÃO DA DIVIDA | ||
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Data do Acordão: | 02/19/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TOMAR | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE AGRAVO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTS.º 7º, 30º, 32º, 47º DA L.U.L.L. E ARTSº 864º E 866º N.º 1 DO CC | ||
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Sumário: | I – Numa acção executiva, baseada numa letra de câmbio, proposta pelo sacador contra o aceitante e quatro co-avalistas deste (aval colectivo), a remissão do remanescente da dívida exequenda feita pelo exequente a dois co-avalistas, em virtude de haverem pago parcialmente a quantia exequenda, não aproveita aos demais co-avalistas/executados. II – Nas relações dos co-avalistas com o portador ou nas relações com o avalizado e obrigações precedentes, os direitos, obrigações e pressupostos da acção, são os definidos para o aval singular, como garantia autónoma, não subcidiária ou acessória, mas cumulativa. III – Por isso, um co-avalista não é terceiro, para efeitos do art.º 866º n.º 1 do CC, relativamente aos demais co-avalistas. | ||
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Decisão Texto Integral: | AGRAVO nº4019/03 ( 3ª Secção Cível ) Relator – Jorge Arcanjo Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA I – RELATÓRIO No Tribunal Judicial da Comarca de TOMAR, o exequente - A, instaurou acção executiva, para pagamento de quantia certa, com forma de processo ordinário, contra os executados: 1) – B; 2) – C e esposa D; 3) – E; 4) – F. O exequente, fundamentando a sua pretensão no título executivo, consubstanciado na letra de câmbio ( fotocopiada a fls.24 e 25 ), no valor de 5.857.437$80, vencida em 15/6/93, sacada pelo exequente e aceite pela 1ª executada, sendo avalistas da aceitante os 2º, 3º e 4º executados, reclamou o pagamento da quantia de 6.077.092$00, acrescida de juros vencidos, à taxa de 15%, desde 15/9/93. Na pendência da execução, porque os executados C e esposa D lhe pagaram a quantia de 7.500.000$00, que foi imputada em primeiro lugar à dívida dos juros, o exequente reduziu a quantia exequenda ao valor remanescente em dívida, acrescida de juros, correspondente à importância de 3.930.339$0. Em consequência desse pagamento, declarou remitir os referidos executados ( co-avalistas ) “ da obrigação de pagar o remanescente da dívida, nos termos do disposto no art. 864º nº 1 do Código Civil, reservando-se o direito de exigir dos outros executados, devedores solidários, o pagamento da totalidade desse remanescente “. Ordenada a notificação dos executados, veio a executada E ( co-avalista ) alegar que a remissão lhe aproveita, bem como aos restantes devedores, dada a qualidade de terceiros, requerendo a extinção da obrigação exequenda, nos termos dos arts.863 e 866 nº1 do Código Civil. A Ex.ma Juiz decidiu que, nos termos do art. 866 do CC, a declaração de remissão do exequente aproveita a todos os restantes executados avalistas, ou seja, a E e F, que igualmente ficam desonerados do remanescente da dívida, embora não à executada B , contra quem a execução deverá prosseguir. Inconformado com esta decisão, o exequente interpôs recurso de agravo, formulando as seguintes conclusões: 1º) - O facto da solidariedade entre os obrigados cambiários ser uma solidariedade imprópria, em nada obsta a que se aplique o disposto no art.864 do CC. 2º) - A M.ma Juiz ao considerar que a remissão de um avalista aproveita a todos os restantes, por aplicação do art.866 do CC, violou este normativo, bem como o art.864 nº1 do CC e art.47 da LULL. Contra-alegou a executada E, sustentando, em síntese, que a remissão do remanescente da dívida, sem intervenção, autorização ou consentimento dos restantes avalistas, aproveita a estes, por força do art.866 do CC. No despacho de sustentação, manteve-se o decidido. II – FUNDAMENTAÇÃO Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), a questão essencial que importa decidir consiste em saber se a remissão do remanescente da dívida exequenda a um dos co-avalistas aproveita ou não aos demais co-avalistas, todos do aceitante ( aval colectivo ). De acordo com o art.47 da L.U., os subscritores ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o qual tem o direito de accionar todas as pessoas individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram. Dispõe o art.864 nº1 do CC que “ a remissão concedida a um devedor solidário libera os outros na parte do devedor exonerado “. Consagra-se a chamada remissão in personam ou pessoal que tem como efeito a extinção da obrigação relativamente ao remitido, mas não quanto aos condevedores, que apenas beneficiam da dedução da parte dele. Tal como exemplifica ANTUNES VARELA ( Código Civil Anotado, II, 2ª ed., pág.137 ) se a dívida é de 60 e são três os devedores, a remissão concedida a um reduz a responsabilidade da dívida dos outros a 40. No despacho recorrido, considerou-se que, sendo de natureza cambiária a obrigação dos executados remitidos e E , a solidariedade é imperfeita ou aparente, postergando-se a aplicação da norma do art.664 do CC, visto reportar-se à solidariedade perfeita ou própria. Segundo determinado entendimento, a lei civil consagrou o conceito amplo de solidariedade, não condicionado pelas relações existentes entre os vários devedores, como decorre do nº2 do art.512 ao estatuir que “ a obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles “. A circunstância da LULL impor como principal responsável o aceitante da letra, não podendo este exigir a prestação por si efectuada a qualquer outro responsável, isso não impede que se trate de responsabilidade solidária, pois o art.516 do CC prevê esta hipótese, ao aceitar nas relações internas entre os vários devedores solidários da relação jurídica entre eles existentes resulte que são diferentes as suas partes ou que um só deles deva suportar o encargo da dívida, como nas obrigações solidárias. Nesta perspectiva, o art.524 do CC não se opõe ao art.516, mas tão-somente regula o caso mais vulgar de a solidariedade na obrigação respeitar a vários devedores com comparticipações diferentes ou iguais na dívida. Esta argumentação foi adoptada no Assento do STJ de 28/7/81 ( BMJ 309, pág.179 ), a propósito do chamamento à demanda na acção cambiária, que, após qualificar a solidariedade cambiária como de imperfeita, concluiu estar abrangida pelo conceito amplo de solidariedade do Código Civil, escrevendo-se a dada altura: “ Não se vê, pois, qualquer razão para que o conceito legal de solidariedade acima definido, não compreenda também o que vem sendo chamado de solidariedade imperfeita, ou seja, quando um só dos devedores responsáveis é o principal devedor, isto é, quando um só deles, nas relações internas, deve suportar o encargo da dívida na sua totalidade “. “ Pode haver nessas relações várias nuances na sua regulamentação, mas o conceito de solidariedade é um só, o do art.512 nº1 do Código Civil, e, como, vimos, abarca as dívidas cartulares ou cambiárias, ou seja, aquelas que na relação jurídica existente entre os vários devedores resulte que um só deles deve suportar o encargo da dívida total – art.516, parte final, do Código Civil “. Por seu turno, VAZ SERRA ( RLJ ano 103, pág.421 e ano 111, pág.189 ), já havia expressado a mesma orientação, no sentido de que entre os obrigados cambiários a solidariedade é imperfeita, mas com a particularidade de serem aplicáveis as regras das obrigações solidárias na medida em que a sua razão de ser lhe seja extensível, e, exemplificando, entre outros casos, precisamente com a remissão, acaba por concluir que o regime específico das obrigações cambiárias afasta a regra do art.864 nº1 e 2 do CC. “ Na hipótese de obrigação cambiária, não pode ser assim, dadas as suas especialidades: a remissão concedida ao aceitante aproveita também, em regra, aos outros obrigados cambiários, pois, de contrário, a remissão não teria praticamente utilidade, visto continuar o aceitante exposto aos direitos de regresso dos co-obrigados que fizessem o pagamento da letra. “ Todavia, não está excluído que a remissão se limite à relação entre portador e o aceitante, não liberando os devedores de regresso, o que depende da sua interpretação. “ No caso de remissão concedida a um obrigado de regresso, parece de admitir, em regra, que também os obrigados posteriores aproveitam com ela e podem invocá-la “ ( RLJ ano 111, pág. 192, nota 1). Não obstante a noção ampla de solidariedade, o certo é que “ o regime que consta das disposições subsequentes ( partindo da ideia básica de que a cada um dos sujeitos compete uma parte ou quota no débito ou crédito comum: cf. arts.524º, 526º, 533º, 864º, 869º, etc. ) apenas se adapta, na íntegra, aos casos a que, com o comum dos autores podemos chamar de solidariedade perfeita. Ao lado desses, porém, tanto no direito civil como no direito comercial há muitos casos ( a que genericamente se pode chamar de solidariedade imperfeita ou de solidariedade aparente ), que, embora caibam dentro do perímetro definido para a solidariedade pelo regime do art.512, têm ( no âmbito das relações internas sobretudo ) um regime diferente, em vários aspectos , do consignado na lei “ (…) “ essencial é não ignorar o regime das várias situações possíveis, saltando sobre os desvios que deve sofrer cada um dos casos de solidariedade imperfeita em face do recorte normal da solidariedade “ ( ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol.I, pág.613 ). Em resumo, concebendo-se a noção ampla de solidariedade no art.512 do CC, de molde a abranger tanto a solidariedade perfeita ou própria, como a solidariedade imperfeita, aparente ou imprópria, a solução dogmaticamente mais consistente é a de que às situações de solidariedade imperfeita só serão aplicáveis as regras da solidariedade própria que se revelem compatíveis com o regime específico daquelas. A não ser assim, e porque dada a ausência de tratamento unitário para as situações de solidariedade imperfeita, estar-se-ia a desvirtuar as respectivas especificidades que levaram o legislador a não reconduzi-las ao mesmo paradigma. Só que quanto às obrigações cambiárias, em bom rigor, nem sequer existe solidariedade, mesmo na forma imperfeita, como demonstra ANTUNES VARELA na RLJ ano 115, pág.334 e segs., em anotação ao referido Assento do STJ de 28/7/81 – “ importa sempre reconhecer que, para haver obrigação solidária se torna essencial que essas obrigações distintas dos vários devedores se integrem na mesma relação obrigacional unitária. Tem que haver, noutros termos, uma relação obrigacional global, envolvente, para que os diferentes vínculos que prendem os condevedores ao credor comum constituam uma obrigação solidária. E não é esse o recorte estrutural próprio da cadeia de obrigações sucessivas incrustadas no título de crédito cambiário, que circula como título à ordem no comércio jurídico “.
Na situação de aval colectivo ao mesmo devedor, configuram-se dois níveis de relações jurídicas: por um lado, a relação dos co-avalistas com o portador e, por outro, a relação dos avalistas entre si. No primeiro caso, a obrigação é de natureza estritamente cambiária, enquanto no segundo, por ausência de nexo cambiário, a obrigação é regulada pelo direito comum, tratando-se solidariedade própria. Com efeito, no aval colectivo ao mesmo devedor ( neste caso ao aceitante ), não existe qualquer nexo cambiário entre os avalistas, tal como propusera a delegação italiana à Conferência de Genebra e que ficou a constar do relatório da LU a explicitar os arts.31 e 47 a seguinte consideração ( nº75 ): Por conseguinte, quer se qualifique a obrigação cambiária entre o exequente com os co-avalistas do aceitante como de solidariedade imperfeita ou aparente, tal como foi sustentado no despacho recorrido ( cf., por ex., tese do Assento do STJ de 28/7/81 e de VAZ SERRA ), quer se considere não existir pura e simplesmente qualquer tipo de solidariedade ( tese de ANTUNES VARELA ), não tem aqui aplicação o disposto no art.864 nº1 do CC. No entanto, o despacho recorrido concluiu que a remissão aproveita a todos os executados avalistas não remitidos, ficando, assim, desonerados do remanescente da dívida, com fundamento no art.866 nº1 do CC – “ A remissão concedida ao devedor aproveita a terceiros “. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Julgar procedente o recurso de agravo e revogar o despacho recorrido.2) Custas pela Agravada.++++ COIMBRA, 19 de Fevereiro de 2004 ( processado por computador e revisto ). |