Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
712/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. HELDER ROQUE
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 473.º 1 E 2 E 480.º A) DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário:

1. Pagando com o seu dinheiro metade do preço da casa onde a autora vivia com o réu e os respectivos actos notarias e de registo, agindo na convicção de que a união de facto entre ambos se manteria e de que, assim, contribuía para a formação de um património comum, ocorreu uma causa de deslocação patrimonial constitutiva do pressuposto do enriquecimento sem causa.
2. O enriquecimento é injusto, não apresentando causa justificativa, quando não está de harmonia com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, em virtude de determinado valor se achar no património do beneficiado, quando o seu lugar era no património do prejudicado.
3. A ruptura da união de facto, motivada por vontade unilateral de um dos seus membros, que expulsando o outro, continua a viver, sozinho, no apartamento, após aquele, com vista a adquirir a sua co-titularidade para servir como casa de morada de família de ambos, lhe ter entregue dinheiro para pagar metade do preço da compra e respectivas despesas de escritura e registo, determinou o desaparecimento subsequente da causa da deslocação patrimonial, constituindo um caso especial da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa.
4. Não obstante ter sido expulsa da casa onde vivia com o réu, e que comprara a meias com o mesmo, e encontrando-se privada de metade da importância monetária com que contribuiu para a sua aquisição, aquele só responde pelos juros legais da quantia a que a autora, na qualidade de empobrecida, tiver direito, depois de ter sido citado, judicialmente, para proceder à restituição.
5. Não tendo o réu a obrigação de confessar, nem podendo ser condenado pelo exercício do seu direito de defesa, não goza do direito de afirmar uma versão contrária à realidade por si sabida, como acontece quando, ao contrário do que se vem a provar, nega a aplicação do dinheiro recebido da autora, com a finalidade da compra de um apartamento destinado a ser adquirido por ambos, em co-titularidade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA, divorciada, residente na Urbanização KK, na Guarda, propôs a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra BB, divorciado, residente na Rua YY, na Guarda, pedindo que, na sua procedência, o réu seja condenado a restituir à autora a quantia de 22445,90 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 7% ao ano, e a pagar à mesma a quantia de 3585,64 €, correspondente ao valor que a autora receberia se tivesse o dinheiro na sua posse e o aplicasse em depósito bancário a prazo, desde 2 de Junho de 1999 até ao presente, à taxa de 4,5% ao ano, invocando, para o efeito, e, em síntese, no que interessa à apreciação e decisão do objecto da apelação, que, tendo sido casados um com o outro, o matrimónio foi dissolvido, por sentença de divórcio, proferida em Maio de 1998, sendo certo que, em Fevereiro de 1999 se reconciliaram e voltaram a viver, como se marido e mulher fossem, tendo, então, o réu proposto à autora a compra de uma casa, a meias, para viverem os dois.
Confiando na sinceridade do réu, a autora anuiu em comprar uma casa, conjuntamente com o réu, pelo preço de 8 000 000$00, tendo depositado, em Junho de 1999, numa conta bancária de que este era titular, a quantia de 4 500 000$00, correspondente ao pagamento da sua metade e do acréscimo de 500 000$00 para despesas.
Porém, o réu disse à autora que esta não necessitava de estar presente na celebração da escritura, pois que, como se encontravam a viver juntos, a casa ficaria em nome de ambos, tendo-se, então, realizado a mesma, no dia 30 de Junho de 1999, apenas com a comparência do réu, em quem a autora acreditou, mas que outorgou como único adquirente do rés-do-chão que ambos tinham pretendido comprar.
Após a compra, a autora e o réu passaram a viver no andar, até ao dia 11 de Março de 2001, data em que, devido ao agravamento do relacionamento entre ambos, este a expulsou da casa, vindo a autora a constatar que não tinha qualquer direito sobre a mesma quando, a 20 de Março de 2001, ao requerer uma cópia da escritura, o seu nome não figurava deste acto.
A autora exigiu logo ao réu a restituição da importância de 4 500 000$00, por não ser comproprietária do rés-do-chão, mas que este se recusa a cumprir, e, porque, também, está privada do dinheiro, que poderia ter depositado numa instituição bancária, a uma taxa de, pelo menos, 4,5% ao ano, deixou de auferir, desde 2 de Junho de 1999, a quantia de 718 750$00.
Na contestação, o réu alega que acordou com a autora em comprar uma casa para o filho mais novo do casal, ainda menor, tendo aquele exigido ficar com o respectivo usufruto, sendo certo, continua, que a importância de 4 500 000$00 que a autora depositou na conta do réu, se destinava a suportar as despesas do casal constituído por ambos, e as de outros dois filhos do casal, respectivos cônjuges e netos, além de que só o réu tem vindo a pagar a quantia de 1 457 636$00, em que ambos foram, judicialmente, condenados, e a amortizar um empréstimo de 1200000$00, contraído no período da convivência recíproca e no proveito dos dois, a que acresce o facto de a autora ter retirado de casa, mobílias e louças compradas por ambos, no valor de 315000$00, moedas e peças de ouro, cujas contas importa apurar, pedindo, em reconvenção, que seja apurado o montante com que cada um entrou, realizando-se a compensação na parte correspondente.
Na réplica, a autora defendeu a inadmissibilidade da reconvenção e concluiu como na petição inicial, pedindo a condenação do réu, como litigante de má fé, em multa e indemnização, no montante de 1250 €.
Por despacho de folhas 51 a 53, não foi admitido o pedido reconvencional.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada, e, em consequência, condenou o réu a restituir à autora a quantia de 4 500 000$00, a que correspondem 22 445,91 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 7%, desde a data da citação até 30 de Abril de 2003, e à taxa de 4%, desde 1 de Maio de 2003 e até integral restituição, no mais absolvendo o réu do pedido.
Desta sentença, o réu e a autora interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

O RÉU:

1ª - Ao empobrecimento da autora não corresponde idêntica valorização do património do réu; este também está empobrecido em valor igual ao reclamado pela autora;
2ª - A nua propriedade do imóvel pertence ao filho da autora e do réu (Constantino Costa) que não é parte na causa;
3ª - A autora esteve de acordo com a transferência da propriedade e aceitou e concordou com a doação realizada pelo réu;
4ª - A ruptura da união de facto não fez desaparecer a causa da deslocação patrimonial;
5ª - O réu, comparadas as situações que ambos detinham antes da concretização deste negócio, apenas se encontra enriquecido, quando muito, com o usufruto do aludido imóvel;
6ª - A douta sentença recorrida não fez uma correcta aplicação do instituto do enriquecimento sem causa;
7ª - Violou assim os artigos 473º e 474º do Código Civil.

A AUTORA

1ª - Ao ser desapossada da quantia de 4500 contos como resulta dos factos provados, a autora viu-se impedida de utilizar tal quantia nomeadamente em aplicação financeira (depósito bancário) e auferir a correspondente contrapartida em juros, constituindo isso uma componente do seu empobrecimento.
2ª - Por sua vez, o réu, da posse dessa quantia da autora, comprou para si uma casa, de que é usufrutuário vitalício e onde vive com a actual mulher, pagando apenas metade do custo da casa. A outra metade aplicou-a, ou podia tê-lo feito, em investimento financeiro e bancário, isso constituindo também medida do seu enriquecimento.
3ª - Assim na obrigação de restituir, deve o réu ser condenado a restituir à autora, não só os 4500 contos em causa (como de facto foi) mas também a quantia correspondente aos juros que receberia, à taxa de mercado, se tivesse depositado essa quantia em conta bancária, desde 11 de Março de 2001 até efectiva restituição, devendo o valor exacto a restituir ser determinado e liquidado em execução de sentença, após se saber a exacta data de restituição do capital.
4ª - O réu alegou que os 4500 contos depositados pela autora se destinavam a despesas com o sustento do casal, filhos e netos, quando afinal isso não era verdade, já que o depósito dessa quantia se destinou à autora pagar metade do preço da casa que ambos decidiram comprar a meias.
5ª - Tais factos são pessoais e o réu deles tinha perfeito conhecimento e consciência e, apesar disso, mentiu, tentando dessa forma enganar o Tribunal, obstruir, dificultar e impedir a descoberta da verdade e aplicação da justiça com o intuito óbvio de se locupletar injustamente à custa da autora.
6ª - O réu agiu, assim, de má-fé, e como tal deverá ser condenado em multa e indemnização de 1250 € à autora.
7ª - Ao decidir pela absolvição do réu em ambas as referidas matérias, o Mº Juiz “a quo”, com todo o respeito, fez errada interpretação do disposto nos artigos 473º do CC e 456º do CPC, já que deveria ter feito interpretação destas normas no sentido da condenação do réu nos termos requeridos na petição inicial.
Nas contra-alegações, que apenas a autora apresentou, esta entende que deve ser julgado improcedente o recurso interposto pelo réu, mantendo-se, nesta parte, a sentença recorrida.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
No assento de casamento nº 40, da Conservatória do Registo Civil de Trancoso, está averbada a dissolução, por divórcio decretado por sentença de 7 de Maio de 1998, transitada em julgado, em 18 de Maio de 1998, proferida por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso, do casamento entre BB e AA, celebrado em 18 de Abril de 1971 – A).
Por escritura pública de compra e venda, de 30 de Junho de 1999, lavrada no Cartório Notarial da Guarda e exarada de folhas 97 a folhas 98 do L 145-Guarda, EE declarou vender a BB e este comprar, pelo preço de 8 500 000$00, a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, designado por Lote 55, sito na Urbanização de S. Miguel, inscrito na matriz sob o artigo 795 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o nº 199 da freguesia de S. Miguel – B).
A autora depositou na conta nº 0825014323100 da Caixa Geral de Depósitos de Trancoso, de que o réu era titular, a quantia de 4 500 000$00 – C).
Em 11 de Março de 2001 e, na sequência de problemas de relacionamento entre autora e réu, este comunicou à autora que não mais queria viver com ela, tendo-a expulsado da casa descrita em B), proibido e impedido de ali tornar a entrar, a partir desse dia – D).
Em Fevereiro de 2001, o réu contraiu no BES, com o aval da autora, um empréstimo de 1 200 000$00 – E).
No assento de casamento nº 140, da Conservatória do Registo Civil da Guarda, está inscrito o casamento de BB e CC, celebrado em 4 de Agosto de 2001 – F).
Em Março de 1999, a autora e o réu reconciliaram-se, passando a viver juntos, como se, de novo, marido e mulher fossem – 1º.
A autora convenceu-se que o propósito do réu na reconciliação era sério – 2º.
E que a perspectiva de vida em comum era duradoura – 3º.
O réu e a autora decidiram comprar o apartamento onde, então, já viviam, e que é a fracção autónoma, referida em B), contribuindo para o pagamento do respectivo preço, em partes iguais – 4º e 5º.
Em Maio de 1999, o réu informou a autora de que o preço do apartamento era de 8 500 000$00, e que seriam ainda necessários 500 000$00 para as despesas de escritura e registo – 6º.
A autora procedeu ao depósito da quantia, referida em C), para pagamento da sua parte na compra do apartamento – 7º.
Por estarem a viver juntos e ter pago metade do preço e demais despesas, a autora ficou convencida de que o apartamento ficaria propriedade sua e do réu, na proporção de metade para cada um – 10º.
Após a compra do apartamento, referida em B), a autora e o réu continuaram a nele receber amigos, comer e dormir – 11º.
De forma ininterrupta, até 11 de Março de 2001 – 12º.
Na sequência do facto descrito em D), a autora foi viver para casa de um filho, na Guarda-Gare – 13º.
E o réu manteve e mantém a sua residência, na casa referida em B), onde reside, também, a sua mulher, CC – 14º.
Após o facto, referido em D), a autora solicitou ao réu a restituição dos 4 500 000$00 – 16º.
O réu não devolveu à autora os 4 500 000$00 – 17º e 18º.
Para compra da fracção autónoma, referida em B), e, a título de sinal, o réu pagou a quantia de 2 000 000$00, titulado por cheque, datado de 25 de Maio de 1999 – 20º.
Por escritura de 4 de Novembro de 1999, o réu doou, com reserva de usufruto, a DD, filho seu e da autora, a nua propriedade da fracção autónoma, referida em B) – 23º e 26º.
O réu tem vindo a amortizar o empréstimo, referido em E) – 30º.
O depósito, referido em C), foi efectuado, no dia 2 de Junho de 1999.
A fracção autónoma, designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, designado por Lote 55, sito na Urbanização de S. Miguel, inscrito na matriz sob o artigo 795 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o nº 199 da freguesia de S. Miguel, referido em B), foi inscrito, em nome do réu, por compra a EE, em 20 de Julho de 1999, com o valor patrimonial de 862 196$00 – Documentos de folhas 29 e 12 a 14.
No dia 19 de Novembro de 1999, a autora, na qualidade de representante legal de seu filho, DD, compareceu na Repartição de Finanças do concelho da Guarda, a declarar que, no dia 4 de Novembro de 1999, por escritura de doação, o réu doara ao referido Constantino Miguel, com reserva de usufruto, o prédio mencionado em B), subscrevendo a declaração, em representação do filho – Documentos de folhas 122 a 127.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto de ambos os recursos, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do enriquecimento do réu.
II – A questão dos juros devidos pela aplicação do capital.
III - A questão da condenação do réu, por litigância com má fé.

I

DO ENRIQUECIMENTO DO RÉU

Efectuando uma síntese do essencial da prova que ficou consagrada, importa reter que, na sequência da dissolução do seu casamento, por divórcio, a autora e o réu reconciliaram-se, em Março de 1999, voltando a viver juntos, como se de marido e mulher se tratasse, e, porque aquela se convenceu que era sério o propósito do réu no reatamento e duradoura a perspectiva de vida em comum, decidiu com ele comprar o apartamento onde, então, já viviam, contribuindo para o pagamento do respectivo preço, em partes iguais.
Assim, em Maio de 1999, o réu informou a autora de que o preço do apartamento era de 8 500 000$00, e que seriam ainda necessários 500 000$00 para as despesas de escritura e registo.
Por isso, no dia 2 de Junho de 1999, para pagamento da sua parte na aquisição da co-titularidade do apartamento, a autora procedeu ao depósito da quantia de 4 500 000$00, numa conta de que o réu era titular, com a qual este comprou o aludido imóvel, em 30 de Junho de 1999, a EE, pelo preço de 8 500 000$00, mas para si próprio, exclusivamente, e onde ambos continuaram a receber amigos, a comer e a dormir, de forma ininterrupta, até 11 de Março de 2001, ficando a autora convencida de que o apartamento era sua propriedade e do réu, na proporção de metade para cada um, em virtude de estarem a viver juntos e de ter pago metade do respectivo preço e demais despesas acessórias.
Porém, no dia 11 de Março de 2001, na sequência de problemas de relacionamento entre autora e réu, este comunicou-lhe que não mais queria viver com ela, tendo-a expulsado da casa, proibido e impedido de ali tornar a entrar, a partir dessa data, razão pela qual a autora foi viver para casa de um filho, na Guarda-Gare, enquanto que o réu manteve a sua residência no aludido apartamento, onde já habitava, mas agora, também, com CC, com quem casou, no dia 4 de Agosto de 2001.
Face a este comportamento do réu, a autora solicitou-lhe a restituição da quantia de 4 500 000$00, que este não lhe devolveu.
Entretanto, em 4 de Novembro de 1999, o réu, com conhecimento da autora, doou, com reserva de usufruto, a DD, filho de ambos, a nua propriedade do apartamento em apreço.
Efectivamente, após a dissolução do seu casamento, por divórcio, a autora e o réu voltaram a viver juntos, num mesmo apartamento, como se de marido e mulher se tratasse, no período temporal compreendido entre Março de 1999 e 11 de Março de 2001, numa situação de união de facto, pura ou estável.
E, porque a autora se convenceu que era sério o propósito do réu na reconciliação e duradoura a perspectiva de vida em comum, decidiu comprar com o réu o apartamento onde ambos já viviam, contribuindo com a sua metade para o pagamento do respectivo preço.
Em seguida, a propriedade do apartamento pretendido por ambos foi adquirida, por acto unilateral do réu, que compareceu, sozinho, na celebração da respectiva escritura pública, sem quaisquer poderes de representação da autora, tendo aquele promovido o registo da fracção, em seu nome exclusivo, muito embora bem soubesse que a comprara com dinheiro da autora, com o qual pagara metade do preço e as despesas da escritura e do registo do imóvel, quando ainda se mantinha a vivência em união de facto.
A autora fundamenta o seu pedido de restituição do quantitativo reclamado no enriquecimento sem causa.
A obrigação de restituir baseada no enriquecimento sem causa, também designado por enriquecimento injusto ou locupletamento à custa alheia, pressupõe, nos termos do disposto pelo artigo 473º, nº 1, do Código Civil (CC), a verificação cumulativa de três requisitos, ou seja, um enriquecimento, que este se encontre desprovido de causa justificativa, e tenha sido obtido, à custa de quem requer a restituição, que suportou o correspondente empobrecimento Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 454 a 458; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 318; Vaz Serra, RLJ, Ano 102º, 376 a 379, nota de rodapé; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e actualizada, 157; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 195; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, 1986, reimpressão, 53; Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 1970, 48 e 49. .
Para além do campo de aplicação específica do enriquecimento sem causa, constituído pelas atribuições patrimoniais, que são os actos mediante os quais uma pessoa (atribuinte) aumenta o património da outra (atribuído), à sua custa, enriquecendo-a, portanto, com sacrifício próprio, qualquer que seja a forma por que este resultado se produz Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 67., aquele acontece, igualmente, em inúmeros casos, em que a vantagem obtida pelo beneficiado procede de acto, por ele próprio praticado, como se verifica, v.g., nas hipóteses de intromissão, sob a forma de uso, fruição, consumo ou alienação, nos direitos ou bens jurídicos alheios, que, assim, consegue uma vantagem patrimonial, à custa de outrem, que representa uma deslocação patrimonial, afinal, o pressuposto de todo o enriquecimento sem causa Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 315 e 316. .
E o enriquecimento é injusto quando, segundo a própria lei, deve pertencer a outrem, o que não acontece, tendo, então, causa justificativa, se o enriquecimento criado está de harmonia com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 455 e 456; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 324 e 325, citando Larenz, Lehrbuch des Schulddrechts, 8ª edição, § 62, I; Vaz Serra, RLJ, Ano 102º, 376 a 379, nota de rodapé., se corresponde à vontade profunda da lei Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 200., se existem normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, incidindo sobre a deslocação, a tornem elemento estatuído e não previsivo da obrigação de restituir, isto é, que considerem o enriquecimento como coisa tolerada ou querida pelo Direito Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, 1986, reimpressão, 46 e 56. .
Com efeito, o que suscita a reacção da lei é a circunstância de determinado valor se achar no património de A, quando o seu lugar não é aí, mas antes no património de B, em função da ordem de atribuição ou destinação dos bens Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 1970, 56. .
Entre os casos especiais da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, exemplificativamente, enumerados pelo artigo 473º, nº 2, do CC, destaca-se a situação de alguém receber uma prestação, em virtude de uma causa que deixou de existir, como acontece quando a entidade patronal faz adiantamentos ao empregado, por conta de ordenados futuros, vindo, entretanto, a cessar a relação de trabalho Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 458; Antunes Varela, RLJ, Ano 102º, 255., ou, por manifesta identidade de razão, quando, como acontece, no caso «sub judice», um dos membros da união de facto, com vista a adquirir a co-titularidade de um apartamento destinado a servir como casa de morada de família, entrega ao outro dinheiro para pagar metade do preço da sua compra e respectivas despesas de escritura e registo, dissolvendo-se, entretanto, a união de facto, por vontade unilateral do parceiro que, tendo expulsado o outro do apartamento, continua a viver no mesmo.
Neste caso, a recepção constitui o «accipiens» na obrigação de restituir, por locupletamento à custa alheia, o que tiver obtido da outra parte, logo que cesse a causa da prestação, tratando-se de um crédito comum desta última, baseado no instituto subsidiário do enriquecimento sem causa, que nasce no preciso momento em que ocorre o fim da comunhão de vida.
E foi a ruptura da união de facto, motivada por vontade unilateral do réu, ao contrário do que este sustenta, que determinou o desaparecimento posterior da causa da deslocação patrimonial verificada, e, em consequência, e, simultaneamente, originou o nascimento do direito da autora a exigir a restituição do que entregou ao réu, atendendo à verificação daquela «condictio ob causam finitam» Vaz Serra, Enriquecimento sem Causa, BMJ, nº 81, 27..
O réu, aceitando embora o empobrecimento da autora, entende que ao mesmo não corresponde idêntica valorização do seu património, mas antes que se encontra empobrecido, em valor igual ao reclamado por esta, pois que, quando muito, apenas se acha enriquecido com o usufruto do imóvel, cuja nua propriedade pertence ao filho de ambos, em consequência de doação realizada pelo réu, com a qual a autora esteve de acordo.
Porém, diga-se, desde já, que não ficou demonstrado que a autora aceitou ou esteve de acordo com a doação do apartamento efectuada pelo réu, a favor do filho de ambos, por terem merecido resposta negativa os pontos nºs 22, 24 e 25 e resposta restritiva os pontos nºs 23 e 26, não obstante se haver provado que a mesma teve conhecimento do acto, quinze dias depois da sua celebração, em virtude de, na qualidade de representante legal do menor, ter comparecido na Repartição de Finanças a declarar a doação efectuada pelo réu.
Assim sendo, apenas se provou que o réu doou, por escritura datada de 4 de Novembro de 1999, com reserva de usufruto, a nua propriedade do apartamento, a DD, filho de ambos, e que a autora teve conhecimento do acto, alguns dias depois.
E o réu, ao dispor, gratuitamente, de uma coisa de que era titular, em benefício do filho, à custa do seu património, nos termos consentidos pelo artigo 940º, do CC, desconsiderou a circunstância de, para a sua aquisição, ter contribuído, também, a autora, na proporção de metade do respectivo preço, independentemente das despesas que, igualmente, suportou com a realização da escritura e a efectivação do registo desse imóvel.
Por outro lado, o usufruto, segundo estipula o artigo 1439º, do CC, é o direito de gozar, temporária e plenamente, uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.
Por isso, o réu, apesar de não ser agora proprietário do andar, apenas se encontra privado do respectivo “ius abutendi”, ou seja, da possibilidade de dispor dele, embora goze da faculdade de o usar e fruir, livremente, incluindo de o dar de arrendamento, sem prejuízo da alteração da sua forma ou substância.
Ao invés, a autora está impedida de o usar ou fruir, como o fazia, anteriormente, como local da sua residência ou para qualquer outro fim.
Efectivamente, o réu usufrui de um bem precioso, como é a habitação, de natureza vitalícia, onde reside com a sua actual esposa, sem que tal implique o pagamento de qualquer contrapartida pelo seu gozo, com um valor superior ao próprio valor locativo do imóvel, e não sujeito às vicissitudes de um contrato de arrendamento.
Pagando com o seu dinheiro parte substancial do preço da casa e os actos notarias e de registo, a autora agiu na convicção de que a união de facto se manteria e de que, assim, contribuía para a formação de um património comum, tendo sido esta a causa da deslocação patrimonial da empobrecida, a favor do enriquecido.
Como assim, não é sustentável a tese do réu quando defende que se encontra empobrecido, em valor igual ao da autora, ou que, quando muito, apenas se encontra enriquecido com o valor do usufruto do imóvel.
E, mesmo que se considerasse, isoladamente, o valor do usufruto, atendendo ao valor de 8 500 000$00, correspondente à propriedade perfeita, e à idade do réu, ao tempo da constituição do usufruto, com 47 anos, aquele valeria metade do valor desta Lopes Cardoso, Partilhas Judicias, I, 1969, 533; Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, 1946, 606., ou seja, cerca de 4 250 000$00, e, portanto, um valor, sensivelmente, igual ao montante pedido pela autora.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações do réu.

II

A QUESTÃO DOS JUROS

Defende a autora que o réu deve ser condenado a restituir, não só a importância de 4 500 000$00, mas, também, a quantia correspondente aos juros que receberia, à taxa de mercado, se tivesse depositado essa quantia, em conta bancária, desde 11 de Março de 2001 até à sua efectiva restituição.
Com efeito, se é certo que a autora, até ao momento em que foi expulsa da casa onde vivia com o réu, beneficiou, conjuntamente com o mesmo, do correspondente direito à habitação, como contrapartida do preço da aquisição da sua co-titularidade, como era do seu convencimento, a partir do momento em que foi posta na rua e impedida de nela entrar, deixou, consequentemente, de poder usufruir desse direito, não obstante se encontrar privada de metade da importância monetária com que contribuiu para a sua compra, direito esse que, tão-só, o réu exerce, em plenitude, graças à comparticipação da autora para o efeito.
Porém, o enriquecido, ou seja, o réu, só passa a responder pelos juros legais das quantias a que a autora, na qualidade de empobrecida, tiver direito, depois de ter sido citado, judicialmente, para a restituição, em conformidade com o estipulado pelo artigo 480º, a), do CC.
Assim sendo, tendo o réu sido condenado a restituir à autora a quantia de 4 500 000$00, acrescida de juros de mora, à taxa de 7%, desde a data da citação e até 30 de Abril de 2003, e à taxa de 4%, desde 1 de Maio de 2003 e até integral restituição, nada mais importa contemplar, a este respeito, designadamente, no período temporal compreendido entre a data da expulsão da casa, ou seja, 11 de Março de 2001, e a véspera da data da citação para os termos desta acção, ou seja, 22 de Dezembro de 2002.

III

DA LITIGÂNCIA COM MÁ FÉ

A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1 e 266º-A, do CPC, impõem às partes.
Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, saído da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência da falta de razão, pelo que a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.
Com efeito, a má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, ou seja, da má-fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 355 a 358; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e ss..
Revertendo ao caso em apreço, importa reter que o réu, no artigo 17º da contestação, alegou que “os 4500000$00 que a autora depositou na conta do réu, destinavam-se a contribuir para as despesas que ambos iriam ter com alimentação, vestuário e demais encargos familiares e”, prossegue no artigo 18º, “aquelas que o réu já havia suportado e continua a suportar, de responsabilidade de ambos”, factos estes que, vertidos nos pontos nºs 27º e 28º da base instrutória, vieram a conhecer resposta negativa, sendo certo, contudo, que se provou, ao invés, que essa quantia depositada pela autora, na conta de que o réu era titular, se destinou ao pagamento da sua metade no preço de aquisição do andar.
A sentença recorrida, reconhecendo que, num ou noutro aspecto da alegação do réu, se pode vislumbrar alguma temeridade, entendeu que a sua conduta não preenche qualquer uma das alíneas do nº 2, do artigo 456º, do CPC.
O réu não tem obrigação de confessar, nem pode ser condenado pelo exercício do seu direito de defesa, excepto quando o mesmo se desenvolve, de forma desleal e sem verdade, porquanto não goza do direito de afirmar uma versão contrária à realidade por si sabida.
Com efeito, o réu não se limitou a apresentar uma determinada versão dos acontecimentos, ainda que, objectivamente, não correspondente à verdade material, mas antes negou a aplicação do dinheiro recebido da autora para a finalidade da aquisição do apartamento na situação de co-titularidade, facto este, de carácter pessoal e do seu perfeito conhecimento, e que viria a demonstrar-se, e, como tal, determinante de responsabilidade processual subjectiva.
Assim sendo, atendendo a que o réu deduziu, dolosamente, oposição cuja falta de fundamento bem conhecia, condena-se o mesmo, como litigante de má fé, em 5 Ucs de multa, e, em 750 € de indemnização, a favor da autora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 456º, nº 1 e 2, a), 457º, nº 1, do CPC, e 102º, a), do Código das Custas Judiciais.

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CONCLUSÕES:

I – Pagando com o seu dinheiro metade do preço da casa onde a autora vivia com o réu e os respectivos actos notarias e de registo, agindo na convicção de que a união de facto entre ambos se manteria e de que, assim, contribuía para a formação de um património comum, ocorreu uma causa de deslocação patrimonial constitutiva do pressuposto do enriquecimento sem causa.
II – O enriquecimento é injusto, não apresentando causa justificativa, quando não está de harmonia com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, em virtude de determinado valor se achar no património do beneficiado, quando o seu lugar era no património do prejudicado.
III – A ruptura da união de facto, motivada por vontade unilateral de um dos seus membros, que expulsando o outro, continua a viver, sozinho, no apartamento, após aquele, com vista a adquirir a sua co-titularidade para servir como casa de morada de família de ambos, lhe ter entregue dinheiro para pagar metade do preço da compra e respectivas despesas de escritura e registo, determinou o desaparecimento subsequente da causa da deslocação patrimonial, constituindo um caso especial da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa.
IV – Não obstante ter sido expulsa da casa onde vivia com o réu, e que comprara a meias com o mesmo, e encontrando-se privada de metade da importância monetária com que contribuiu para a sua aquisição, aquele só responde pelos juros legais da quantia a que a autora, na qualidade de empobrecida, tiver direito, depois de ter sido citado, judicialmente, para proceder à restituição.
V - Não tendo o réu a obrigação de confessar, nem podendo ser condenado pelo exercício do seu direito de defesa, não goza do direito de afirmar uma versão contrária à realidade por si sabida, como acontece quando, ao contrário do que se vem a provar, nega a aplicação do dinheiro recebido da autora, com a finalidade da compra de um apartamento destinado a ser adquirido por ambos, em co-titularidade.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação da autora e, em consequência, em condenar o réu, como litigante de má fé, em 5 Ucs de multa, e, em 750 € de indemnização, a favor da autora, e improcedente a apelação do réu, confirmando, em tudo o mais, a douta sentença recorrida.

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Custas, a cargo da autora e do réu, na proporção de 1/5 e de 4/5, respectivamente.

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Notifique.