Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
443/08.1TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
POÇO
USUCAPIÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.498, 566, 1344, 1348, 1390, 1394, 1395, 1396 DO CC, DL Nº 46/94 DE 22/2
Sumário: 1 - A abertura de um poço em prédio próprio, para captação de águas subterrâneas aí existentes, é um acto lícito, nos termos do artigo 1394.º do Código Civil, no pressuposto de que estejam cumpridas as exigências administrativas aplicáveis ao caso previstas no Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, ainda que gere diminuição de água num poço situado em prédio vizinho, não dando lugar a indemnização.

2 - Para ser possível a aquisição das águas subterrâneas existentes em prédio alheio, através da usucapião, o n.º 2 do artigo 1390.º, do Código Civil, exige a existência de construções visíveis e permanentes para captação da água no prédio alheio, que publicitem e confiram continuidade à respectiva posse.

3 - As «infiltrações» a que alude o nº2 do art.1394 CC respeitam a águas que foram conduzidas a partir de outro prédio para o prédio onde são exploradas, tendo-se provocado por acção do homem o desvio do curso natural de uma corrente, nascente ou veio subterrâneo, portanto através de obras ou qualquer outro processo de manipulação (processo não natural).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrentes……JP (…) e esposa MP (…) residentes (…)Coimbra.

Recorridos………MT (…), viúva, residente (…) Coimbra, e restantes herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de J (…), residente que foi na mesma morada.

Intervenientes (passivos)…MD (…), residente em (…), Coimbra.

………………………………….MS (…) residente em (…) Coimbra.


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I. Relatório.

a) Os recorrentes são Réus na presente acção, com processo sumário, e foram demandados devido a um litígio que surgiu devido ao facto de Autores e Réus serem titulares de prédios rústicos confinantes e às vicissitudes da respectiva exploração agrícola.

Os Autores instauraram a acção referindo que a partir de 1980 JFP ex-marido da autora viúva e pai dos restantes autores, passou a explorar como proprietário, uma parte fisicamente delimitada, com a área de 3 471 m2, consoante configuração junta em levantamento topográfico, de um prédio mais vasto, identificado na matriz como «terra de semeadura com 2 oliveiras e vinha, sito em Estalagem, com a área de 8.440 m2, confrontando do norte com MRP..., do nascente com MFF..., do sul com MFF... e do poente com serventia, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Arzila sob o artigo ...».

Com vista à exploração do prédio, o falecido J (….) abriu em 1980, um poço no prédio, a cerca de dois metros da estrema norte, por onde confronta com o prédio explorado pelos Réus, e passou a utilizar a água do poço, designadamente para regar as culturas feitas no prédio.

 Sucede que em Junho de 2004 os Réus abriram também um poço no respectivo prédio, a cerca de três metros da estrema norte do prédio dos Autores, no enfiamento do poço destes e distando dele cerca de cinco metros, facto que implicou uma diminuição acentuada da água do poço dos Autores que, por isso, deixaram de poder utilizá-la como vinham fazendo.

Além disso, os Autores alegam que os Réus passaram também a ocupar parte do seu prédio como depósito das terras que movimentaram e despejaram nele lixos e entulhos. Além disso, passaram a impedir os Autores, herdeiros do falecido, de usar e fruir o prédio, ameaçando-os de morte com uma caçadeira, caso o fizessem, situação esta que levou a que os Autores não mais pudessem fruir e utilizar o prédio, semear e colher os seus frutos.

Com a acção os Autores pretendem, no confronto com os Réus, (1) que se declare que a parcela de terreno identificada no levantamento topográfico faz parte da herança aberta por óbito do ex-marido da Autora viúva e pai dos restantes Autores, e, seguidamente, que os Réus sejam condenados a:

(2) tapar o poço que abriram e a absterem-se de praticar quaisquer actos  que perturbem ou ponham em causa os direitos adquiridos com título justo pelos Autores sobre as águas subterrâneas do prédio dos Autores;

(3) repor o prédio dos Autores no estado em que se encontrava antes de o terem ocupado com terras, lixos e entulhos e a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou ponham em causa o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio;

(4) pagar uma indemnização aos Autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelos Réus, a liquidar posteriormente.

Os Réus contestaram e impugnaram a sua própria legitimidade passiva, referindo que eles não eram os únicos herdeiros da herança a que pertence o prédio a que aludem os Autores, o que levou estes últimos a pedir a intervenção nos autos dos restantes herdeiros, o que veio a ocorrer.

Quanto ao mérito da causa, os réus referiram, em resumo, que abriram o poço no seu prédio por terem o direito de utilizar a água que se encontra no seu subsolo, mesmo que isso implique diminuição do caudal no poço do prédio dos Autores.

Negam que tenham ocupado ou depositado terras, estrume ou qualquer outro detrito no prédio dos autores.

E afirmam que após o falecimento de J (…), os Autores, seus herdeiros, continuaram a utilizar o prédio da herança, sulfatando e limpando a vinha, efectuando a vindima, cortando canas, lavrando e cultivando a terra, negando que alguma vez tenham ameaçado algum dos Autores.

Pelo exposto, concluíram pela improcedência da acção e absolvição dos pedidos.

Na sequência do pedido de intervenção e admissão dos demais herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por morte de (…), estes vieram também contestar o pedido dos Autores.

Confirmaram que o prédio ainda não foi formalmente atribuído a qualquer um dos herdeiros, mas de facto tem sido o demandado JP (…) e mulher que têm cultivado o prédio em causa, pois os herdeiros verbalmente distribuíram por acordo os bens da herança entre si e o prédio aqui em questão foi atribuído ao herdeiro JP (…), ora Réu.

Quanto ao mérito da causa invocam argumentação semelhante à dos Réus e concluíram pela improcedência da acção e respectiva absolvição dos pedidos.

No final foi proferida sentença que declarou o prédio rústico identificado no levantamento topográfico junto a fls. 25 como pertencente à herança aberta por óbito de J (…) e condenou os Réus JP (…) e mulher MP (…)a: (1) reconhecerem a pertença desse prédio à dita herança e a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou ponham em causa o direito dos Autores sobre o referido prédio, (2) a reporem o prédio no estado em que se encontrava antes da ocupação, limpo de lixos e entulhos, (3) a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou ponham em causa os direitos adquiridos pelos Autores, como titulares da herança, sobre as águas subterrâneas do prédio referido; (4) a taparem o poço que abriram no seu prédio e (5) a indemnizar os Autores enquanto titulares da herança pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, a apurar em incidente de liquidação previsto nos artigos 378.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Os restantes herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por morte de (…) foram absolvidos dos pedidos.

b) Os Réus JP (…) e mulher Maria MP (…)recorreram desta decisão (sintetizando as setenta conclusões do recurso), por estas razões:

Em primeiro lugar, discordam das respostas dadas à matéria dos quesitos 19.º, 31.º, 34.º, 37.º e 38.º por entenderem que resulta fundamentalmente do depoimento de parte dos próprios Autores uma resposta diversa, no sentido «não provados», salvo quanto ao quesito 19.º, que deverá ser respondido no sentido de que a água do poço do prédio da herança dos Autores era usada apenas para regar a terra de cultivo, nomeadamente o milho.

Em segundo lugar, sustentam que a indemnização em que foram condenados a favor dos Autores se deve confinar à restauração natural, isto é, à reposição no terreno do prédio no seu estádio anterior, retirando-se, para o efeito, a terra e o estrume.

Não havendo qualquer indemnização a satisfazer em dinheiro porque os Autores após o falecimento do autor da herança deixaram voluntariamente de cultivar o prédio e não por causa de qualquer ameaça, que não existiu.

Em terceiro lugar, no que respeita à indemnização por danos não patrimoniais, originados pelas alegadas ameaças, estas como terão ocorrido em 2003, estão prescritas, nos termos do n.º 1 do artigo 498.º, do Código Civil, à data da instauração da acção.

Em quarto lugar, sustentam que a interpretação correcta do artigo 1394.º, n.º 2, do Código Civil, implica que se considere que a abertura de um poço em terreno próprio, sem sair para fora do seu perímetro, é um acto lícito, ainda que cause diminuição do volume de águas recolhidas num poço situado no prédio vizinho, não sendo de aplicar ao caso o regime das nascentes de águas a que aludem os artigos 1386.º, al. a), 1389.º e 1390.º do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

II. Objecto do recurso.

O objecto do recurso consiste, por conseguinte, nas questões que acabam de ser enunciadas.

III. Fundamentação.

a) Começando pelas questões relativas à impugnação da matéria de facto.

(…)

b) Matéria de facto provada (incluindo as alterações resultantes do acabado de decidir relativamente aos quesitos 19.º, 31.º, 34.º, 37.º e 38.º).

1- Em 21 de Novembro de 2004 faleceu J (…), natural da freguesia da Anobra, concelho de Condeixa-a-Nova, residente na (…) lugar e freguesia de Arzila, Coimbra.

2 – J (…) deixou como únicos herdeiros a sua mulher e cinco filhos.

3 - Por escritura pública de compra e venda, realizada no dia 6 de Novembro de 1980, no 2.º Cartório Notarial de Coimbra, (…)vendeu a (…) o prédio constituído por terra de semeadura com duas oliveiras e vinha, sito em Estalagem, com a área de 8440 m2, confrontando do norte com MRP..., do nascente com MFF..., de sul com MFF... e de poente com serventia, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Arzila sob o n.º ....

4 - Esta venda foi efectuada nas proporções fraccionárias indivisas seguintes:

- a (…), a fracção de 1/3,9;

- a (…), a fracção de 1/10,4;

- a (…), a fracção de 1/2,55;

- a (…), a fracção de 1/3,9.

5 - Na dita escritura ficou exarado que a transmissão estava isenta do pagamento de sisa em virtude de os compradores serem arrendatários rurais do referido prédio.

6 - A herança aberta por óbito de J (…) permanece indivisa.

7 - Ao respectivo acervo hereditário pertence 1/3,9 do prédio referido nos pontos «3» e «4».

8 - Embora o prédio referido em «3» e «4» tivesse sido vendido em proporções fraccionárias indivisas, há muitos anos cada rendeiro sabia exactamente a configuração, a extensão e os limites de cada uma das parcelas que cultivava e que veio a adquirir por escritura.

9 - Até porque as mesmas foram devidamente delimitadas por sinais visíveis e permanentes.

10 - A fracção de 1/3,9  vendida a J (…) tem a área de 3.471m2.

11 - E a configuração, a extensão e os limites constantes do levantamento topográfico junto a fls. 25.

12 - A partir de 1980 o J (…)passou a fruir e utilizar aquela parcela de terreno como se fosse um prédio autonomizado das restantes parcelas.

13 - Cultivando-a, colhendo os frutos, vigiando-a, defendendo-a como se fosse exclusivamente sua, à vista de toda a gente, sem oposição de pessoa alguma, ininterruptamente.

14 - Logo em 1980 o J (…) abriu um poço no prédio, a cerca de dois metros (1,80 metros) da estrema norte.

15 - A água captada era utilizada para irrigação da terra de cultivo, nomeadamente milho.

16 - Com o conhecimento de todas as pessoas do lugar.

17 - Sem oposição de pessoa alguma.

18 - A fracção vendida ao J (…)confronta do norte com (…), pai do réu JP (…) entretanto falecido.

19 - Embora a herança aberta por óbito de (…) permaneça indivisa, os Réus JP (…) e MP (…) é que têm amanhado e cultivado o prédio em causa e colhido os seus frutos.

20 - Bem como praticado todos os actos de administração do prédio.

21 - São os Réus JP (…) e MP (…) que fruem e utilizam o dito prédio como se fosse coisa sua.

22 - A estrema norte do prédio da herança de J (…) está perfeitamente demarcada por uma oliveira e uma fiada de arbustos ao longo de todo o seu comprimento.

23 - Em Junho de 2004 os Réus JP (…) e MP (…) mandaram abrir um poço.

24 - A cerca de três metros (3,20 metros) da estrema norte do prédio da herança de J (…).

25 - Os Réus JP (…) e MP (…) movimentaram terras e invadiram o prédio desta herança até junto do choupo.

26 - A abertura do poço pelos Réus teve como consequência imediata a acentuada diminuição do nível de água do poço situado no prédio da herança de J (…).

27 - Inviabilizando a utilização que dela era feita, nomeadamente para irrigação da terra de cultivo.

28 - Os Réus JP (…) e MP (…) passaram também a ocupar parte do prédio da herança de J (…) com o depósito das terras que movimentaram.

29 - E porque passaram a despejar lixos e entulhos no mesmo prédio.

30 - (Considerou-se não escrito).

30 – J (…) faleceu sem que os Réus JP (…) e MP (…) cessassem tal ocupação e utilização.

31 - Após o seu falecimento os Réus JP (…) e MP (…) intensificaram o depósito de lixos e entulhos no mencionado prédio.

32 - O Réu JP (…) ameaçou o herdeiro (…) de morte com caçadeira.

33 - Os herdeiros do falecido deixaram de cultivar o prédio.

34 - Em inícios de 2005, os Réus JP (…) e MP (…) construíram junto à estrema uma casa de máquinas para dar apoio ao poço.

35 - A casa de máquinas encontra-se a 1,30m da estrema norte do prédio da herança de J (…).

36 - Subsiste a ocupação e utilização referida nos n.º 25, 28, 29, 30 e 31.

b) Apreciação das restantes questões objecto do recurso.

1 - Começando pela questão da abertura do poço por parte dos Réus.

A abertura de um poço em prédio próprio, como ocorre no presente caso, é um direito que assiste ao proprietário e vem expressamente previsto no artigo 1348.º do Código Civil ([1]), onde se dispõe, no seu n.º 1, que «O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra».

No caso dos autos, estamos perante um caso de exploração de águas subterrâneas, que existem no subsolo, e «constituem uma parte componente do respectivo prédio» ([2]), como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 1344.º, onde se declara que «A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico».

Como o proprietário tem o direito de abrir um poço no seu terreno, para captar águas subterrâneas que são parte integrante do seu prédio, à partida tal direito não pode ter outras limitações que não resultem da violação de direitos de terceiros, ou da restrição prevista no artigo 1396.º, que visa proteger a manutenção do caudal das águas das fontes ou reservatórios destinados ao uso público, ou, ainda, de eventual abuso de direito por parte do proprietário (artigo 334.º), ou, por fim, de restrições resultantes do regime de licenciamento da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro).

No caso presente, face aos factos conhecidos, a abertura do poço por parte dos Réus só seria ilícita se infringisse algum direito dos Autores, o que não ocorre.

Com efeito, estes não tinham, nem têm, qualquer direito às águas subterrâneas que estão no prédio dos Réus.

Na sentença subsumiu-se o caso à disciplina do artigo 1390.º, n.º 2, no sentido de que os Autores adquiriram as águas por usucapião, mas esta conclusão não é correcta, como a seguir se verá.

No que respeita aos títulos de aquisição, face à remissão feita no artigo 1395.º, relativo às águas subterrâneas, para o regime do artigo 1390.º, atinente aos títulos de aquisição das águas das fontes e nascentes, para isso ocorrer teria de existir um qualquer título de aquisição da propriedade dessas águas, ou então um direito de crédito que conferisse aos Autores a utilização dessas águas através da recolha delas no seu poço ou, ainda, um direito de servidão.

Porém, para ser possível a aquisição das águas subterrâneas existentes em prédio alheio, através da usucapião, o n.º 2 do artigo 1390.º, do Código Civil, exige a existência de construções visíveis e permanentes para captação da água no prédio alheio, exigência que se justifica como forma de dar publicidade e continuidade à respectiva posse, susceptível de conduzir à usucapião.

Ora, no caso, como não há quaisquer obras no prédio dos Réus que atestem a utilização das águas pelo autor da herança a que pertence o prédio, ou pelos seus antecessores, então não pode concluir-se pela aquisição da propriedade das águas por usucapião.

Por conseguinte, tendo em consideração o disposto no n.º 2 do artigo 1394.º, onde se prescreve que «Sem prejuízo do disposto no artigo 1396.º, a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não constitui violação de direitos de terceiro, excepto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas e não naturais» ([3]), bem se vê, face à matéria que consta dos autos, que não existe a favor dos Autores qualquer direito que possam opor aos Réus relativamente à abertura do poço que estes fizeram e que trouxe diminuição da água no poço dos Autores.

Como referiram os Profs. Pires de Lima/Antunes Varela, «À parte estas restrições, resultantes da alienação de água de fonte ou nascente existentes em determinado prédio, o princípio geral relativo à exploração de águas subterrâneas é o consagrado no n.º 2 do artigo 1394.º: a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não constitui violação de direitos de terceiro» ([4]).

Conclui-se, por conseguinte, que os Autores não têm qualquer direito que possam opor aos Réus devido ao facto de estes terem aberto o poço no seu prédio.

Esta conclusão implica que a sentença não possa manter-se na parte em que condenou os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou ponham em causa os direitos adquiridos pelos Autores, enquanto titulares da herança em que se integra o prédio, sobre as águas subterrâneas do prédio dos Réus e a taparem o poço que abriram, bem como na condenação dos Réus em indemnização por danos causados pela da falta de água no poço existente no prédio pertencente à indicada herança.

2 – Vejamos agora a questão de saber se a indemnização em que foram condenados os Réus a favor dos Autores se deve confinar à restauração natural, isto é, à reposição no terreno no seu estado anterior, retirando-se a terra e o estrume que os Réus colocaram no prédio da herança de que os Autores são titulares.

A resposta a esta questão é afirmativa.

Por um lado, a lei dá primazia à indemnização através da reconstituição natural, por outro, não há, como se verá, qualquer outra indemnização a decretar a favor dos Autores para além da reposição no terreno no seu estado anterior.

A restauração natural é a regra que vem expressa no n.º 1 do artigo 566.º onde se determina que «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor», estabelecida quer a favor do credor, quer do devedor ([5]).

Vejamos agora a questão da indemnização por danos não patrimoniais, originados pelas alegadas ameaças, que os Réus dizem que ocorreram em 2003, e por isso o direito de as pedir, à data da instauração da acção, estava já prescrito, nos termos do n.º 1 do artigo 498.º, do Código Civil.

Embora os Autores formulem o pedido de indemnização por danos não patrimoniais no final da petição, no seu texto alude-se apenas aos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido J (…), por via do seu falecimento, se integraram na sua herança (cfr. artigo 36 da petição inicial).

Porém, como se vê pelos factos provados, não resultaram provados quaisquer danos a tal respeito.

Daí que se conclua não haver lugar, a este título, a qualquer indemnização.

Verifica-se que não há outros danos de natureza patrimonial a indemnizar além dos que ficaram abrangidos na restauração natural.

Com efeito, a indemnização pedida com base na falta da água para rega não procede porque a abertura do poço foi um acto lícito e a lei não prevê que possa haver lugar a indemnização num caso como este.

Por conseguinte, a obrigação de indemnizar que recai sobre os Réus é apenas a que ficou acima mencionada relativa à restauração natural do terreno do prédio.

Face ao exposto, o recurso procede.


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No que respeita à distribuição das custas um vez que são feitos vários pedidos, mas não é possível atribuir um valor certo a cada um deles, afigura-se que colocando de um lado os pedidos em que os Autores obtêm êxito e aqueles em que decaem, a divisão das custas deve fazer-se em partes iguais no que respeita à acção.

No que respeita ao recurso, apesar da matéria de facto não ter sido alterada na totalidade consoante o preconizado pelos Réus, em termos práticos o recurso procede na totalidade, pelo que as custas do recurso são a cargo dos Autores.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e:

1 - Altera-se a matéria de facto nos termos que ficaram indicados no texto.

2 - Revoga-se parcialmente a sentença no que respeita à parte em que condenou os Réus a (a) absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou ponham em causa os direitos adquiridos pelos Autores, como titulares da herança aberta por óbito de J (…), sobre as águas subterrâneas do prédio dos Réus, (b) a taparem o poço que os Réus abriram no seu prédio e (c) a indemnizar os Autores enquanto titulares da herança pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, à excepção da condenação constante da sentença relativa à restauração natural do terreno (3.º § após «Pelo exposto:»).

Custas da acção na proporção de metade para cada uma das partes; as do recurso são a cargo dos Autores.


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Alberto Ruço ( Relator )

Judite Pires

Carlos Gil



[1] Todos os artigos citados no texto que não tenham indicação do diploma de origem pertencem ao Código Civil.
[2] Pires de Lima/Antunes Varela – Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 319. Coimbra: Coimbra Editora, 1987.
[3] As «infiltrações» a que alude esta norma respeitam a águas que foram conduzidas a partir de outro prédio para o prédio onde são exploradas, tendo-se provocado por acção do homem o desvio do curso natural de uma corrente, nascente ou veio subterrâneo, portanto através de obras ou qualquer outro processo de manipulação (processo não natural).
Pretende-se que estas águas não percam a natureza que tinham pelo facto de terem sofrido a acção do homem (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., pág. 324).
[4] Ob. cit. pág. 323. Ver também Manuel Henrique Mesquita – Direitos Reais (Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967), pág. 218, e Tavarela Lobo – Manual do Direito das Águas, Vol. II, pág. 70 e seguintes. Coimbra: Coimbra Editora, 1990.

[5] Ac. do STJ de 30 de Maio de 2006, CJ/STJ – Ano XIV-II-103.