Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1325/06.7YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: SOCIEDADE IRREGULAR
MÚTUO
Data do Acordão: 11/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - 5º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 107º DO CCOM, 36º E 37º DO CSC, 114º DO CC
Sumário: Estamos perante uma sociedade irregular quando o contrato está inquinado por vícios de forma ou de fundo quer na pré-vida das sociedades quer ainda as sociedades de facto, sendo-lhe aplicável, nomeadamente nas suas relações com terceiros, as disposições das sociedades civis.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A... e B... vieram intentar acção com processo ordinário contra C... e D... terminando por pedir que se condenem os RR. a) a reconhecer que a dívida existente para com Francisco Vieira Santos e mulher foi contraída para aquisição por trespasse do estabelecimento comercial que identificam e para as obras efectuadas no mesmo. b) Em consequência esse reconhecimento e dado que só os RR. exploram o estabelecimento, fazendo seus os proventos que o mesmo gera, que eles RR são os únicos responsáveis pelo pagamento contraído em conjunto. c) Que de todas e quaisquer quantias que os AA. venham a pagar, em consequência do dito empréstimo, fiquem sub-rogados aos credores até ao montante dos pagamentos efectuados ou se assim não for entendido, d) Que os RR. sejam condenados a restituir aos AA. todas e quaisquer quantias que venham a pagar aos credores com base no enriquecimento sem causa.
Alegaram para tanto, que entre a Autora e Réus foi constituída uma sociedade irregular, a qual visava a exploração de um estabelecimento comercial, tendo ficado acordado que tal estabelecimento seria explorado em conjunto pelos Réus e pela Autora, suportando em comum os encargos do funcionamento e quinhoando nos lucros.
A exploração do estabelecimento iniciou-se em 1999, tendo este sido tomado de trespasse ao anterior proprietário pelo valor de Esc. 9.500.000$00.
Para proceder ao pagamento desse valor e para a realização de obras no estabelecimento, Autores e Réus, em conjunto, contraíram um empréstimo junto de Francisco Vieira dos Santos e Helena Gameiro Ângelo, no valor de Esc. 10.000.000$00.
A escritura pública de trespasse foi celebrada apenas a favor da Ré D..., apesar de o respectivo preço e o custo das obras haverem sido suportados em partes iguais entre Autores e Réus.
Passados três meses do início da exploração do estabelecimento, a Autora e os Réus concluíram que as receitas do mesmo não permitiam a projectada exploração em conjunto, tendo acordado que a Autora deixasse de trabalhar no estabelecimento e de integrar a sociedade que haviam constituído, ficando os Réus com os proventos só para si bem como o encargo de todas as dívidas.
Na sequência desse acordo, a Autora deixaria de prestar qualquer trabalho no estabelecimento.
Assim, os Réus comprometeram-se a assumir integralmente, e à sua custa, o pagamento da dívida contraída por Autores e Réus perante os mutuantes.
Não tendo os Réus pago aos credores qualquer quantia, estes accionaram os aqui Autores e Réus, para solidariamente lhe pagarem a quantia mutuada no prazo que fosse assinalado pelo Tribunal.
Na tentativa de conciliação realizada nesse processo, ficou a saber-se que os Réus não pretendem assumir integralmente a dívida, dívida essa que se destinou a adquirir um estabelecimento que é só dos Réus e que exploram em exclusivo, assim como se ficou a saber que os credores não se opunham a essa assunção de responsabilidade pelos Réus, desonerando os Autores de qualquer pagamento.
Atentas as finalidades do empréstimo (tomar de trespasse um estabelecimento comercial que se destinava a ser explorado, embora sob a forma de sociedade irregular, pela Autora e pelos Réus), o não pagamento daquele na totalidade por estes últimos constitui um enriquecimento ilegítimo à custa dos Autores, pois são os Réus que retiram os proventos que o estabelecimento gera.
Contestaram os Réus, alegando que nunca constituíram entre si qualquer sociedade, nem regular nem irregular; nunca a Autora interferiu fosse no que fosse no estabelecimento, nem sobre ele teve qualquer direito ou deu qualquer início de actividade como proprietária ou gerente do estabelecimento.
Negaram que o estabelecimento carecesse de obras ou que nele tenham sido executadas quaisquer obras. Aceitaram que a Autora e os Réus haviam contraído um empréstimo do montante de Esc. 10 000 000$00 junto de Francisco Vieira dos Santos e esposa, e que a escritura de trespasse fora outorgada pelos Réus porque assim tinha de ser, dado que tinham sido os Réus e apenas eles que haviam pago o respectivo preço.
Mais alegaram que a Autora trabalhara para os Réus no estabelecimento em questão, mas ali nada investira, nem pagara qualquer despesa ou mesmo parte do preço do trespasse.
Negaram ter assumido a responsabilidade dos Autores no pagamento do empréstimo supra referido.
Pediram a sua absolvição do pedido.
No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância, tendo sido elencados os factos provados e elaborada a Base Instrutória que não foram alvo de reclamações.
Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença a qual decidiu,
- Julgar parcialmente procedente por provada a acção e em consequência condenar os RR. a reconhecer que o empréstimo descrito na alínea B) dos factos provados foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse descrito na alínea A) dos Factos Provados e de outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular mencionada nas alíneas f) e g) dos Factos Provados.
- Julgar a acção parcialmente improcedente absolvendo-se os RR. do mais que é pedido.
Daí o presente recurso de Apelação interposto pelos RR. C... e mulher D..., os quais no termo da sua alegação pediram que se anule a decisão por constar como facto quesitado a matéria de direito contida no quesito 1º e caso assim se não entenda que se revogue a decisão e se substitua por outra em que se considere não ter existido qualquer sociedade irregular entre AA. e os RR.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A matéria contida no quesito lº é conclusiva.
2) Ela devia ter sido integrada por factos que a levassem, a serem provados, a essa conclusão.
3) Trata-se pois de matéria de direito, não quesitável, e decisiva para a boa decisão da causa, dela dependendo, em última instância o sucesso ou insucesso da acção.
4) A sociedade irregular tem todas as características da sociedade regular, com excepção, no caso presente, de não ter sido reduzida a escritura pública.
5) Tal significa que terá de resultar de um acordo que implique a definição de “tipo de sociedade, a firma, o objecto, a sede, o capital social, a quota de capital e a natureza da entrada de cada sócio,... ou seja dos elementos objectivos gerais e especiais do tipo de sociedade que se pretende constituir”.
6) Apesar de alguns destes elementos serem, no caso presente, intuitivos, os restantes necessitavam de prova, sem tibiezas.
7) Ora, em direito não tem qualquer valor a prova por “ouvir dizer”; e tal prova, “por ouvir dizer”, além de não ter valor quando o que se “ouviu dizer” vem da boca da A. ou do R., é até eivado do vício da nulidade já que das duas uma: ou o que se ouviu dizer contraria os articulados e não consta, porque não pode constar, da matéria quesitada ou não contraria e é inútil porque constitui mero repisar do que já foi alegado pela parte.
8) Se os AA. foram sócios da sociedade irregular que invocam não se compreende que não tivessem participado no trespasse (escritura); não tivessem suportado parte do seu preço; não tivessem estado presentes nas negociações preliminares; não tivessem uma única prova do pagamento de qualquer despesa; não tivessem encomendado um bem de consumo, um electrodoméstico; não tivessem participado na gestão do estabelecimento...etc, etc.
9) E, por outro lado, tivessem recebido vencimento mensal a esse título, como qualquer trabalhador por conta de outrem.
10) Os AA. não se “acautelaram”, apesar dos “avisos”, com um cheque, um documento escrito, uma presença em ocasiões em que era necessário decidir e revelar o seu interesse como sócios, mas mais que isso, pela boca da A. mulher, os AA manifestaram, durante o curto período de três meses de trabalho da esposa um certo interesse em entrar como sócia da exploração do estabelecimento.
11) Por isso violou a sentença o artsº 36º nº 2, 7º e 41º nº do Código das Sociedades Comerciais; artsº 342º nº 1 e 393 nº 2 do CC; artsº 511º nº 1 e 668º nº 1 al. c) do CPC, invocando-se desde já o disposto no artº 712º nº 1 alíneas a) e b) do CPC.
Contra-alegaram os apelados pedindo a anulação do julgamento, ou caso assim se não entenda, a improcedência da acção.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Por escritura pública outorgada em 19 de Janeiro de 1999, no 2º Cartório Notarial de Leiria, Ana Maria Bastos e marido Luís Manuel Soares Tomás declararam dar de trespasse a D..., que declarou aceitar, o seu estabelecimento comercial instalado e a funcionar no primeiro andar do prédio urbano, sito na Rua Machado dos Santos, freguesia e concelho de Leiria (Edifício Labéria), inscrito na matriz sob o artigo 3368º, pelo preço de Esc. 5.500.000$00 (A)).
2.1.2. Os Autores e os Réus, em conjunto, contraíram um empréstimo junto de Francisco Vieira dos Santos e mulher, Helena Gameiro Ângelo, residentes em Lot 84, Cross d’Entassi, Saint-Pons-les-Mures, Orimaud, França, no valor de Esc. 10 000 000$00 (B)).
2.1.3. A Autora mulher deixou de trabalhar no estabelecimento referido em A) e foi procurar emprego noutro local (C)).
2.1.4. Francisco Vieira Santos e Helena Gameiro Ângelo intentaram uma acção de fixação judicial de prazo contra os aqui Autores e Réus, no 5º Juízo Cível de Leiria, e sob o nº 31/01, para lhe pagarem a quantia mutuada de Esc. 10 000 000$00 no prazo que fosse assinalado pelo Tribunal, conforme certidão junta a fls. 28-36 que aqui se dá por reproduzida (D)).
2.1.5. Na tentativa de conciliação realizada no âmbito deste processo, os Réus não assumiram pagar integralmente a quantia em dívida, mas apenas a quantia de Esc. 5.000.000$00 (E)).
2.1.6. Entre a Autora mulher e os Réus foi constituída uma sociedade irregular que visava a exploração do estabelecimento de restaurante e café, denominado “Pratinho do Dia”, a funcionar no Edifício Labéria, Rua Machado dos Santos, em Leiria (1º).
2.1.7. Nos termos de tal acordo, o referido estabelecimento seria explorado em conjunto pelos Réus e pela Autora mulher, suportando, em comum, os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros (2º).
2.1.8. A exploração do estabelecimento iniciou-se no começo do ano de 1999 (3º).
2.1.9. O empréstimo referido em b) foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse mencionado em a) e de outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular mencionada na al. f) (4º).
2.1.10. O preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular mencionada na al. f) foram suportados por Autora e Réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles (5º).
2.1.11. Cerca de três meses após o início da exploração do estabelecimento, a Autora mulher deixou de trabalhar no estabelecimento e de integrar a sociedade irregular que havia constituído com os Réus (6.º e 7º).
2.1.12. São os Réus que retiram os proventos que o estabelecimento gera (11º) com os quais fazem face às diversas despesas do seu agregado familiar, como alimentação, vestuário, calçado, despesas com água e electricidade, despesas de saúde e despesas com lazer (12º).
2.1.13. O preço do trespasse foi pago com cheques emitidos pelos Réus (13º).
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2.2. Da reapreciação da matéria de facto.

Insurgem-se os apelantes contra as respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 5º e 7º.

Perguntava-se nos quesitos em causa respectivamente o seguinte:

Quesito 1º: Entre a Autora mulher e os Réus foi constituída uma sociedade irregular que visava a exploração do estabelecimento de restaurante e café denominado “Pratinho do Dia” a funcionar no Edifício Labéria, rua Machado dos Santos em Leiria?

Quesito 2º: Nos termos de tal acordo, o referido estabelecimento seria explorado em conjunto pelos Réus e pela Autora mulher suportando em comum os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros?

Quesito 3º: A exploração do estabelecimento iniciou-se no começo do ano de 1999?

Quesito 5º: O preço do trespasse e o custo de obras no estabelecimento foram suportados em partes iguais por Autores e Réus?

Quesito 7º: A Autora mulher e os Réus acordaram que aquela deixasse de trabalhar no estabelecimento e de integrar a sociedade irregular que haviam constituído?

O Tribunal respondeu de forma positiva aos quesitos 1º a 3º e restritivamente aos quesitos 5º e 7º a saber:

Quesito 5º: Provado que o preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular mencionados em 1º foram suportados por Autora e Réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles.

Quesitos 6º e 7º: Provado que cerca de três meses após o início da exploração do estabelecimento a Autora mulher deixou de trabalhar no estabelecimento e de integrar a sociedade irregular que havia constituído com os RR.

Os recorrentes entendem que estes quesitos deveriam ter obtido resposta negativa.

Vejamos:

Previamente à análise individualizada que iremos fazer destes quesitos deveremos dizer desde já que é incorrecta a formulação de um quesito que se reporta expressamente a uma “sociedade irregular “e deverá ser considerada não escrita a resposta ao mesmo no que concerne à parte afectada – artigo 646º do Código de Processo Civil. Entendemos na verdade que o facto de se dar por não escrita a resposta ao quesito na parte viciada não afecta necessariamente o restante, desde que seja factualidade isenta de considerações jurídicas. Também aqui entendemos que tem aplicação o princípio geral Utile per inutile non vitiatur, que postula o maior aproveitamento possível dos actos.
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Procedendo à revisão da prova e no tocante à resposta aos quesitos 1º, 2º, 3º e 5º verifica-se que os Apelantes esgrimem em abono da sua tese o facto de nenhuma das testemunhas ouvidas se ter referido à sua existência com conhecimento de causa, sendo certo que a notícia da mesma só vem de forma indirecta mencionada pelas mesmas nomeadamente as testemunhas dos AA., designadamente Acácio, Agostinho Bruno Lopes, Maria R. Curto, Amaral e José M. Baptista.
As testemunhas dos RR., dizem os mesmos, apontam para que a Autora era uma simples empregada.
Contudo as testemunhas dos RR. ou são seus familiares ou o conhecimento que têm dos factos é também indirecto “de ouvir dizer” tendo alegadamente como fonte o que lhes foi confiado pela Autora.
No entanto é o próprio Senhor Juiz que na fundamentação das respostas aos quesitos afasta, e bem, a prova testemunhal como elemento chave para emitir aquelas.
Todavia nem por isso deixam de existir factos indiciários que devidamente relacionados nos levam a propender para uma determinada prova. Na verdade esta não é exclusivamente testemunhal, podendo resultar de documentos com a mesma concatenados e conclusões a que se chega por inferência de determinados factos – numa palavra a prova por presunções – artigos 349º e 351º do Código Civil.
Atentemos assim no depoimento da testemunha Maria de Ramos Curto a qual referiu por seu conhecimento directo que a Autora e o Réu andaram ambos à procura de um estabelecimento para tomarem de trespasse. Acresce que a Autora referiu também à testemunha Acácio Correia Dias ter aberto um restaurante, sendo certo que na sequência disso distribuiu cartões no local onde trabalha. Este facto mostra-se de acordo com o cartão de fls. 173 onde se lê que a gerência cabe a C... e Cinda, sendo certo que este último era o nome por que era conhecida a Autora (Cfr. depoimento da testemunha Nelson José de Jesus Santos). Ora este facto não se compadece com a tese dos RR. segundo a qual a Autora seria meramente empregada do aludido restaurante, tanto mais que foi dito que os aludidos cartões foram mandados fazer pelo Réu marido. É certo que se mostra junto um cartão a fls. 176 para contrariar o de fls. 173 onde já não aparece o nome da Autora. No entanto a menção da necessidade de indicativo telefónico neste último, evidencia que é posterior ao primeiro onde tal requisito não vinha mencionado. Ora esta sequência está de acordo com a tese da Autora segundo a qual a partir de dada altura abandonou a “sociedade”.
Por outro lado e a corroborar a tese da Autora, está ainda o facto de A. e RR. terem contraído empréstimo junto de Francisco Vieira dos Santos e mulher – alínea B) dos factos assentes em que todos se consideraram devedores da quantia ali aludida. Tudo isto aponta para uma conclusão: a Autora estava activamente empenhada no negócio não sendo mera empregada dos RR.
Quanto à matéria do quesito 3º segundo o qual a exploração do estabelecimento teve lugar em 1999, tal deduz-se dos documentos 22 a 25 30, 177 e 178.
A resposta ao quesito 5º é de certa forma um corolário daquilo que se provou; o preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular mencionados em 1º foram suportados por Autora e Réus. No entanto não é possível avançar mais e referir o concreto dispêndio de cada uma das partes; não há elementos documentais em ordem a uma conclusão segura nesta matéria e a prova testemunhal não nos oferece qualquer certeza antes meras conjecturas sem substrato.
Foi respondido conjuntamente aos quesitos 6º e 7º e também nada há a alterar às respostas, para além da expressão “sociedade irregular” pelas razões supra-expostas.

Na sequência do exposto entendemos reformular as respostas aos pontos 2.1.6. a 2.1.11. dos factos provados de molde a que deles fique a constar o seguinte:

2.1.6. Entre a Autora mulher e os Réus foi estabelecido um acordo que visava a exploração do estabelecimento de restaurante e café, denominado “Pratinho do Dia”, a funcionar no Edifício Labéria, Rua Machado dos Santos, em Leiria (1º).
2.1.7. Nos termos de tal acordo, o referido estabelecimento seria explorado em conjunto pelos Réus e pela Autora mulher, suportando, em comum, os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros (2º).
2.1.8. A exploração do estabelecimento iniciou-se no começo do ano de 1999 (3º).
2.1.9. O empréstimo referido em b) foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse mencionado em a) e de outras despesas necessárias à realização do acordo negocial mencionado na al. f) (4º).
2.1.10. O preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento do acordo mencionado na al. f) foram suportados por Autora e Réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles (5º).
2.1.11. Cerca de três meses após o início da exploração do estabelecimento, a Autora mulher deixou de trabalhar no estabelecimento cessando o acordo negocial que havia constituído com os Réus (6º e 7º).


Mantêm-se as respostas mencionadas nos pontos 2.1.12. e 2.1.13.
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2.2. O Direito.

Sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal – artigos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil. Assim e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- A qualificação do acordo contratual celebrado entre A. e RR.
- O contrato de mútuo subjacente à presente acção e quem nele interveio. Reflexos a nível decisório.
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2.2.1. A qualificação do acordo contratual celebrado entre A. e RR.

A primeira questão que importa dilucidar consiste na qualificação do acordo contratual celebrado entre A. e RR..
A sentença apelada apontou in casu para a existência de uma sociedade irregular entre A. e RR. para cuja constituição teria sido necessário contrair um mútuo com Francisco Vieira dos Santos e mulher Helena Gameiro no valor de esc. 10 000 000$00. Essa importância ter-se-ia destinado a cobrir o valor das entradas dos sócios na aludida sociedade e bem assim à realização de obras na sede do estabelecimento onde aquela iria exercer a sua actividade.
O novo Código das Sociedades Comerciais não nos dá um conceito de sociedade irregular, deixando à Doutrina a tarefa de fixar os seus momentos essenciais e respectivos contornos. A própria existência desta nomenclatura, é hoje contestada por alguns Autores no domínio da actual LSC; de qualquer forma o citado Diploma não a abandonou por completo notando-se no aludido Código a título de exemplo um resquício quando à sociedade irregular se refere no artigo 174º nº 1 alínea e)[ De igual forma acolhem ainda esta terminologia Pereira de Almeida in “Sociedades Comerciais” Coimbra Editora 4ª Edição, 2006 pags. 301 ss; Paulo Olavo Cunha “Direito das Sociedades Comerciais” Almedina, Coimbra, pags. 172. Abandonando o conceito de sociedade irregular propugnando a adopção da terminologia de sociedade imperfeita cfr. Pinto Furtado “Curso de Direito das Sociedades Almedina, Coimbra, 2001, 4ª Edição pags 206 ss. Em sentido idêntico mas abordando a problema sob a temática de Sociedades em formação Engrácia Antunes “As Sociedades em Formação: sombras e luzes” in Cadernos de Direito Privado nº 14 pags. 25 ss.].
Em traços gerais poderá no entanto entender-se estarmos perante uma sociedade irregular “quando o contrato está inquinado por vícios de forma ou de fundo quer na pré-vida das sociedades quer ainda as sociedades de facto”[ Pereira de Almeida “Sociedades Comerciais Coimbra Editora, 4ª Edição, 2006, pags. 301. Paulo Olavo Cunha “Direito das Sociedades Comerciais” Almedina, Coimbra, pags. 172. Menezes Cordeiro “Manual de Direito das Sociedades” I Sociedades em Geral, Almedina, Coimbra 2004, pags. 436. João Labareda “Sociedades Irregulares – Algumas Reflexões” in “Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Almedina, Coimbra, 1988, pags. 205 ss. ].
Contrariamente ao que sucedia no domínio pleno do Código Comercial, em que globalmente se consideravam não existentes as sociedades com um fim comercial que se não constituíssem nos termos e segundo os trâmites indicados naquele Diploma, ficando todos quantos nela contrataram obrigados pelos respectivos actos pessoal, ilimitada e solidariamente – artigo 107º - optou agora o novo Código das Sociedades Comerciais por considerar na pré-vida da sociedade comercial uma evolução faseada até à sua constituição plena, sendo certo que enquanto não for cumprido tal iter estaremos perante uma sociedade imperfeita, uma sociedade comercial de facto. Assim de um modo geral os Autores destrinçam três fases naquele processo de constituição:
a) O simples uso de uma firma comum ou de qualquer meio criador de uma falsa aparência de sociedade – artigo 36º nº 1 do CSC.
b) Actividade com base num acordo constitutivo de sociedade comercial que ainda não foi celebrado por escritura pública – artigo 36º nº 2 do CSC.
c) Período compreendido entre a celebração da escritura e o registo definitivo – 37º nº 1 do CSC[ Cfr. Pinto Furtado Curso de Direito das Sociedades Comerciais 4ª Edição 2001, pags. 207 ].
Os factos provados no que ora interessa considerar, expurgados de conclusões jurídicas, apontam para um acordo estabelecido entre a Autora mulher e os Réus visando a exploração do estabelecimento de restaurante e café, denominado “Pratinho do Dia”, a funcionar no Edifício Labéria, Rua Machado dos Santos, em Leiria.
Nos termos de tal acordo, o referido estabelecimento seria explorado em conjunto pelos Réus e pela Autora mulher, suportando, em comum, os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros.
Todavia não foi adoptada uma firma conforme a uma sociedade comercial, já que faltam as indicações exigidas por lei em tal caso pelo Código das Sociedades Comerciais – cfr. artigo 10º. Sendo assim, não pode concluir-se estarmos em face de uma sociedade comercial[ Cfr. José de Oliveira Ascensão “Direito Comercial” Volume IV, Sociedades Comerciais. Lisboa 1993, pags 20 ss, considera expressamente aplicável neste caso o regime das sociedades civis.
Coutinho de Abreu “Curso de Direito Comercial” II, Das Sociedades, pags. 144.]. Todavia como os sócios iniciaram a sua actividade ainda antes de ter sido celebrada a pertinente escritura pública, são aplicáveis nomeadamente nas suas relações com terceiros, as disposições sobre sociedades civis – artigo 36º nº 2 do Código Civil, desde logo o artigo 996º do Código Civil ao estatuir nos seus números 1 e 2 que pelas dívidas sociais respondem a sociedade e pessoal e solidariamente todos os sócios, concedendo-se porém ao sócio demandado para pagamento dos débitos da sociedade, que exija a prévia excussão do património social. Trata-se no fundo de um reflexo do princípio do favor societatis ao restringir o mais possível os efeitos da invalidade/nulidade da sociedade, tendo em linha de conta a segurança dos negócios jurídicos, nomeadamente os já realizados com terceiros.
Esta solução está aliás de harmonia com os princípios gerais. O Direito Civil é direito comum regulando todas as situações que não lhe sejam retiradas por lei especial, salvo indicação em contrário; na medida em que esta sociedade não é acolhida pela lei comercial, irá cair no domínio da sociedade civil[ Cfr. Oliveira Ascensão Ob e loc. Cit.]. No fundo estamos perante uma solução semelhante à já preconizada por Ferrer Correia no domínio do Código anterior e segundo a qual as sociedades irregulares se convertem em sociedades civis[ Cfr A. citado “Aditamento às Lições de Direito Comercial” 1966.].
Assim sendo, e muito embora com fundamentos nem sempre coincidentes entendemos que nada há a censurar à sentença apelada na medida em que considerou estarmos em face de uma sociedade irregular.
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2.2.2. O contrato de mútuo subjacente à presente acção e quem nele interveio. Reflexos a nível decisório.

Estatui o artigo 1 142º do Código Civil que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Resulta dos factos provados que os Autores e os Réus, em conjunto, contraíram um empréstimo junto de Francisco Vieira dos Santos e mulher, Helena Gameiro Ângelo, residentes em Lot 84, Cross d’Entassi, Saint-Pons-les-Mures, Orimaud, França, no valor de Esc. 10 000 000$00, o qual se destinou ao pagamento do valor do trespasse mencionado em a) e de outras despesas necessárias à realização do acordo negocial mencionado na al. f) (4º).
Na sequência do que já dissemos, poderemos assentar que em relação aos mutuantes – o que não está aqui em causa – os mutuários respondem nas relações externas nos termos do artigo 996º do Código Civil ex vi artigo 36º nº 2 do CSC supracitado, sendo solidária a sua responsabilidade.
No que toca às relações internas entre os sócios referiremos desde já que não logrou a Autora provar que ao abandonar “a sociedade” decorridos que foram três meses de exercício conjunto, os RR. tivessem assumido o pagamento da totalidade do empréstimo contraído de esc. 10 000 000$00 junto dos mutuantes. Na verdade tiveram resposta negativa os quesitos 8º e 9º que a esta matéria se reportavam. Resulta daí que a prova do que a Autora eventualmente terá a haver no âmbito desta “sociedade” só poderá obter-se assim que se processe à liquidação do seu património nos termos do disposto nos artigos 1 122º do Código de Processo Civil – aplicável às sociedade irregulares por força do artigo 36º nº 2 do CSC.
Deverá pois a Autora, a fim de resolver o problema dos pedidos que formula, promover a declaração de nulidade da sociedade nos termos do artigo 52º do CSC. Tal determinará a entrada da sociedade em liquidação a que se procederá nos termos do artigo 1 122º ss do Código de Processo Civil, caso a liquidação seja judicial[ Acs. desta Relação de Ac. da Rel. de Coimbra de 24-2-1993 (R. 137/92) in Col. de Jur., 1993, 1, 54; ]. Será através dessa liquidação que irá proceder-se ao apuramento exacto dos direitos e deveres dos sócios no contexto da sociedade em causa e bem assim à regularização de créditos e dívidas[ Cfr. para maiores desenvolvimentos A. Reis “Processos Especiais” II, maxime pags. 277 ss. ].
Nesta conformidade conclui-se, embora com outra fundamentação, que bem se andou em primeira instância ao considerar provada apenas o pedido formulado na alínea a) do petitório, o que dita a confirmação da sentença.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) É incorrecto formularem-se quesitos onde se pergunta o que quer que seja reportado a uma dita “sociedade irregular”, expressão de clara conotação jurídica.
2) No entanto, de acordo com o princípio do maior aproveitamento dos actos, não deverá ser declarada não escrita a totalidade da resposta ao quesito, se nele houver matéria de facto que apurada permita ao Tribunal uma conclusão jurídica.
3) Tendo sido concluído um acordo entre A. e RR. para a exploração em conjunto de um estabelecimento comercial, suportando, em comum, os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros, mas sem firma válida ou escritura pública estamos perante uma “sociedade irregular” também hoje chamada de “sociedade imperfeita”.
4) A esta entidade, que não pode considerar-se como sendo uma sociedade comercial são aplicáveis, nomeadamente nas suas relações com terceiros, as normas das sociedades civis.
5) Tendo A. e RR. contraído um mútuo no montante de esc. 10 000 000$00 junto de terceiros e não se tendo provado que os RR. tivessem assumido a totalidade do pagamento da dívida, a prova do que a Autora eventualmente terá a haver no âmbito desta sociedade só poderá obter-se assim que se processe à liquidação do seu património nos termos do disposto nos artigos 1 122º do Código de Processo Civil – aplicável às sociedades irregulares por força do artigo 36º nº 2 do CSC.
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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim embora com diversa fundamentação a sentença apelada.
Custas pela apelante.