Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
568/09.6TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CASO JULGADO
ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
PRESCRIÇÃO
JUROS
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE OURÉM – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.51, 497, 671, 672 CPC, 279, 309, 310, 311, 323 CC
Sumário: 1– A decisão que julga extinta uma acção executiva para pagamento de quantia certa, com base na inexequibilidade do título executivo, não forma caso julgado material (artigo 671.º, n.º1 do Código de Processo Civil) e não pode ser invocada a título de excepção de caso julgado em posterior acção executiva entre as mesmas partes e com base no mesmo título.

2 – A exequibilidade do título afere-se pela lei em vigor à data da instauração da acção executiva.

3 – Face ao disposto no n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil, o prazo de prescrição em curso interrompe-se mesmo que o devedor não chegue a ser citado.

4– A dívida de juros está sujeita ao prazo de prescrição de cinco anos previsto na al. d) do artigo 310.º do Código Civil e só passa a ficar sujeita ao prazo ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º do mesmo código, se passar, após vencidos os respectivos juros, a fazer parte do dispositivo de uma sentença ou integrar a dívida exarada num título executivo posterior.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrentes/ExecutadosA (…) e esposa M (…) residentes em Resouro, Urqueira, 2490-000 Vila Nova de Ourém.

Recorrida/Exequente  Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL.


*

I. Relatório.

A exequente instaurou contra os executados a acção executiva, com processo comum, para pagamento de quantia certa, de que esta oposição é apenso, tendo como título executivo um documento particular, assinado pelos executados, datado de 13 de Novembro de 1987, denominado «Escrito Particular para Empréstimo Concedido por Fiança», em cujo texto se faz referência a um empréstimo no montante de 23.300.000$00 (€116.219,91 euros), com data de vencimento em 12 de Novembro de 1988.

Os executados deduziram oposição à execução, alegando, em síntese, que a dívida de capital que consta do título executivo se encontra prescrita, por terem decorrido mais de 20 anos sobre o seu vencimento, assim como os juros peticionados.

A exequente contestou a oposição sustentando que correu termos uma acção executiva pelo 2.º Juízo do mesmo tribunal, sob o n.º 226/1994, cujo título executivo era o mesmo que agora funda a presente execução, a qual terminou por absolvição da instância.

Acontece que os agora oponentes foram citados nessa execução, acto este que interrompeu o prazo de prescrição, nos termos previstos no n.º 1 do art. 323.º, do Código Civil, e abriu um novo prazo de 20 anos que ainda não se completou.

Perante este articulado, os executados apresentaram novo requerimento onde invocaram o caso julgado formado na anterior acção executiva n.º 226/1994, invocada pela exequente, onde o título executivo, que é mesmo documento, foi considerado como destituído de força executiva, devido ao facto das assinaturas dos executados estarem apenas reconhecidas notarialmente por semelhança, quando a lei, no caso o artigo 51.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Reforma do Código de Processo Civil introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, exigia o reconhecimento presencial.

No despacho saneador conheceu-se do mérito da oposição.

Julgou-se improcedente a excepção da prescrição, quer quanto ao capital quer relativamente aos juros, bem como da excepção do caso julgado.

Resumidamente, quanto à prescrição do capital, considerou-se que os executados foram citados na mencionada acção executiva n.º 226/1994, no dia 3 de Novembro de 1994, acto este que interrompeu o prazo de prescrição de 20 anos em curso, voltando a correr desde então novo prazo de 20 anos cujo termo ocorre apenas no ano de 2014.

Relativamente aos juros vale o mesmo prazo de 20 anos, porque, nos termos do n.º 1 do artigo 311.º do Código Civil, o direito aos juros está plasmado em título executivo.

No que concerne à excepção de caso julgado considerou-se que este reveste a natureza de caso julgado formal, o qual só teve eficácia dentro do processo onde se formou, ou seja, na acção executiva n.º 226/1994, não valendo fora dela, como ocorre com a presente execução.

Por conseguinte, como o documento que serve de título executivo tem agora exequibilidade face às actuais leis processuais, considerou-se que nada obstava a que pudesse dar origem a nova execução.

Concluiu-se pela improcedência da oposição.

b) Os executados recorrem invocando, em resumo, as seguintes razões:

Em primeiro lugar, insistem na excepção do caso julgado, referindo que o título executivo é o mesmo em ambas as execuções e foi já decidido no âmbito da acção executiva n.º 226/1994 que este documento não tinha força executiva, pelo que a decisão a proferir nesta execução não pode impor um benefício que foi afastado na decisão anterior.

Assim, não pode ser instaurada nova acção executiva baseada na mesma causa de pedir, no mesmo título executivo.

Em segundo lugar, invocam que a nova lei processual resultante da Reforma do Código de Processo Civil, operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, ao deixar de exigir a assinatura reconhecida por notário nos documentos particulares não pode ter efeito retroactivo, antes a sua força executiva tem de ser verificada à luz da lei em vigor na data da sua constituição.

Em terceiro lugar, quanto à prescrição relativa à dívida de capital, argumentam que o prazo de prescrição se iniciou em 12 de Novembro de 1988, data em que se venceu a primeira das duas prestações previstas no contrato, a qual não foi paga, levando, nos termos do contrato, ao vencimento imediato da segunda prestação.

Ora, o mutuário, a pessoa que os ora executados afiançaram, não foi citado naquele primeiro processo executivo n.º 226/1994 e, sendo assim, não foi interrompida quanto a ele a prescrição, razão que leva a considerar que não pode ter-se a mesma como interrompida em relação aos executados, seus fiadores, na medida em que a obrigação dos executados é acessória da obrigação assumida pelo mencionado mutuário e se esta prescreveu, prescreveu também a dos fiadores.

Em quarto lugar, quanto à dívida de juros, sustentam que não constituindo o documento em causa título executivo, então o prazo de prescrição dos juros é de cinco anos e não de 20 anos, como se considerou na sentença.

c) A exequente contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

II. Objecto do recurso.

O objecto do recurso consiste, nas quatro questões que ficaram indicadas na anterior alínea b).

III. Fundamentação.

a) Matéria de facto.

 A matéria provada relativa às questão a decidir, face aos documentos juntos e acordo das partes, é esta:

1- A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…), CRL, instaurou, em 18 de Abril de 2009, uma acção executiva, com processo comum, destinada a obter o pagamento de quantia certa, em relação à qual estes autos de oposição são um seu apenso, fundada em documento, datado de 13 de Novembro de 1987, assinado pelos executados, na qualidade de fiadores de (…), mutuário, e pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Urqueira, CRL, denominado «Escrito Particular para Empréstimo Concedido por Fiança», no montante de 23.300.000$00 (hoje €116.219,91 euros), em quatro prestações anuais de 5 825 000$00, com vencimento em 12 de Novembro de 1988, 12 de Novembro de 1989, 12 de Novembro de 1990 e 12 de Novembro de 1991.

Mais consta que pelos executados foi dito que ficam por fiadores e principais pagadores do primeiro outorgante e solidariamente entre si e com ele se obrigam ao pagamento da dívida confessada, juros e demais despesas na forma estipulada no presente escrito, renunciando a todo o benefício ou direito que de qualquer  modo possa limitar, restringir ou anular esta obrigação.

2 - Correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Ourém, a execução ordinária com o n.º 226/94, apresentada em juízo em 04 de Outubro 1994, na qual foi exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e executados (…).

3 - O título executivo dado à execução nos autos referidos no ponto «2» é exactamente o mesmo que foi junto com o requerimento executivo a que os presentes autos correm apensos.

4 - Os ora executados/oponentes foram citados em 03 de Novembro de 1994 no âmbito desta acção executiva n.º 226/94, referida no ponto 2.

5 - A citação do executado, mutuário e afiançado (…) foi ordenada nessa execução n.º 226/94, tendo este executado interposto recurso de agravo de tal despacho. O agravo foi reparado e na respectiva decisão, de 26 de Abril de 1995, revogou-se o despacho que tinha ordenado a sua citação (cfr. certidão de fls. 37 a 51).

6 - Mais tarde, por decisão de 8 de Novembro de 1995, proferida na execução n.º 226/94, foi esta julgada extinta, com fundamento na inexequibilidade do título executivo, por não terem sido reconhecidas presencialmente por notário as assinaturas dos executados e devido ao montante da dívida exequenda exceder a alçada da Relação, nos termos do disposto o artigo 51.º, n.º 2 Código de Processo Civil, na redacção anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.

Esta decisão transitou em julgado em 22 de Novembro de 1995 (cfr. certidão de fls. 37 a 51).

7 - Por escritura pública lavrada no 1.º Cartório Notarial de Leiria, em 18 de Setembro de 1996, consta como primeira outorgante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Leiria, CRL e como segunda outorgante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Urqueira, Cooperativa de responsabilidade Limitada, tendo ambos dito que «conforme as deliberações das respectivas Assembleias Gerais atrás mencionadas» procedem à fusão das Cooperativas «Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Leiria, CRL» e «Caixa Crédito Agrícola Mútuo de Urqueira Cooperativa de Responsabilidade Limitada», por incorporação desta naquela. Que esta fusão é efectuada por incorporação, nos termos do disposto nos artigos 72.º e 8.º do Código Cooperativo e artigo 97.º do Código das Sociedades Comerciais, operando-se a transferência global do património da incorporada para a Cooperativa incorporante…».

b) Apreciação dos fundamentos do recurso.

1 - Em primeiro lugar, vejamos se ocorre a excepção de caso julgado no que respeita à decisão que incidiu sobre o documento denominado «Escrito Particular para Empréstimo Concedido por Fiança», no qual os agora executados figuram como fiadores, e que o considerou inexequível devido ao factos das assinaturas dos obrigados não estarem reconhecidas presencialmente por notário.

Os executados afirmam que ocorre esta excepção porque, em 8 de Novembro de 1995, foi proferida decisão na execução n.º 226/94 a julgá-la extinta, com fundamento na inexequibilidade do respectivo título executivo, por não terem as assinaturas dos executados sido reconhecidas presencialmente por notário e o montante da dívida exequenda exceder a alçada da Relação, nos termos do disposto o artigo 51.º, n.º 2 Código de Processo Civil, na redacção anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.

Esta decisão transitou em 22 de Novembro de 1995.

Ora, o título julgado inexequível é exactamente o mesmo título que agora serve de título executivo a esta execução.

Tendo sido já considerado entre as mesmas partes que este título é inexequível, tal decisão não pode agora ser desrespeitada por outra que o considere exequível, por se opor a isso o caso julgado já formado acerca desta questão entre as mesmas partes.

Vejamos.

O n.º 1 do artigo 671.º, do Código de Processo Civil, dispõe que «Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro. Têm o mesmo valor que esta decisão os despachos que recaiam sobre o mérito da causa».

Por sua vez, o artigo 672.º, do Código de Processo Civil, determina que «Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo».

Temos, por conseguinte, dois tipos de decisões que geram também dois tipos diferentes de caso julgado, o designado caso julgado material, previsto no n.º 1 do artigo 671.º, do Código de Processo Civil, que incide sobre a relação material controvertida, tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele e o caso julgado formal, previsto no artigo 672.º, do Código de Processo Civil, que nos diz que a decisão que recaia unicamente sobre a relação processual tem força obrigatória apenas dentro do processo onde foi tomada.

Exemplificando este último caso, dizem-nos os Autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que «Se, em acção de reivindicação instaurada por um só dos comproprietários contra o detentor da coisa, o despacho saneador houver decidido, sem impugnação, que o autor é parte legítima, não obstante a excepção da ilegitimidade suscitada pelo réu, não pode o advogado deste levantar de novo a questão na discussão final da causa, nem o juiz pode julgá-la em termos diferentes na decisão final, sem violar o caso julgado formal» ([1]).

Mas, como diz, o artigo 672.º, do Código de Processo Civil, este caso julgado vale apenas para o processo onde a decisão foi proferida, esgotando-se aqui o seu poder de intervenção.

Ao invés, o caso julgado material vale dentro do processo e fora dele, podendo, por isso, ao contrário do caso julgado formal, ser invocado como excepção noutros processos.

No ensino do Prof. Alberto dos Reis, «O caso julgado material forma-se mediante uma sentença de mérito, isto é, mediante sentença que conheça da relação jurídica substancial, declarando os direitos e obrigações respectivos. É a esta declaração que pretende garantir-se estabilidade, segurança e firmeza, porque representa a atribuição de determinados benefícios ou bens da vida; garante-se, por via da força e autoridade do caso julgado, isto é, pela afirmação de que a sentença não poderá ser mais alterada nem desrespeitada.

O caso julgado formal constitui-se mediante sentença de forma, isto é, mediante sentença que incide unicamente sobre a relação processual.

(…) Suponhamos agora que, proposta acção de investigação de paternidade ilegítima, o processo finda por uma sentença que absolve o réu da instância com fundamento na ilegitimidade deste ou na nulidade de todo o processo. Esta sentença, uma vez transitada, constituirá caso julgado formal; obstará a que a questão por ela resolvida seja novamente suscitada no mesmo processo, mas não impedirá que, em nova acção de investigação de paternidade, se profira decisão que lhe seja contrária.

O benefício meramente processual, que o réu obteve com a primeira sentença, não encontra protecção na segunda causa. Entende-se que, não tendo a sentença anterior recaído sobre o objecto essencial do litígio, não tendo atribuído a qualquer das partes os bens ou as vantagens substanciais a que aspirava, não há razão forte para dar estabilidade, fora do processo, à decisão proferida» ([2]).

Prosseguindo.

Como não se afigura que possa haver qualquer discordância em relação à interpretação da lei que fica exposta, a questão que se coloca neste momento consiste em saber se a decisão tomada em 8 de Novembro de 1995, no âmbito da execução n.º 226/94, que julgou extinta a execução, com fundamento na inexequibilidade do respectivo título executivo, é qualificável como uma decisão que incidiu sobre o mérito da causa ou sobre a relação processual.

Se se concluir que a decisão incidiu sobre o mérito da causa, então o respectivo caso julgado estende-se a este processo; se se entender que a decisão se manteve no âmbito da relação processual, nenhuma influência pode exercer neste processo.

As decisões sobre o mérito da causa são as que conhecem do pedido, pelo que exercem efeitos no âmbito da existência, modificação ou extinção de direitos que são invocados como causa de pedir (de personalidade, de crédito, reais, de natureza familiar, sucessória ou outros), e cujo exercício, como referiu Alberto dos Reis (ver supra), confere acesso a benefícios ou bens da vida.

As decisões sobre questões de forma conhecem de vícios ou irregularidades de natureza processual capazes de influir na validade da relação jurídica processual, conduzindo à absolvição ou à extinção da instância ([3]) e impedem que se chegue a conhecer das questões acerca dos direitos invocados.

Os recorrentes referem-se ao título executivo como sendo a causa de pedir, mas não têm razão, pois a causa de pedir no caso reside no mútuo e no seu incumprimento. O título executivo é apenas o documento, o suporte físico, material, onde está vertida a causa de pedir.

Passando ao caso concreto, verificamos que o pedido consistiu na pretensão de obter o pagamento coercivo da quantia exequenda com base na dívida do mutuário afiançado e na relação de fiança.

É esta a relação substancial que serve de causa de pedir à execução, relativa, pois, a um direito de crédito.

Nada se decidiu no âmbito da execução n.º 226/94 acerca deste mútuo, se ele existiu, se se modificou ou extinguiu.

A decisão consistiu na extinção da instância executiva, não com base no pagamento da dívida ou no apuramento de um qualquer facto extintivo do alegado direito de crédito, mas sim no facto de se ter considerado que o título executivo onde estava exarada a constituição da dívida e a relação de fiança, não tinha força executiva, isto é, em termos práticos, não tinha capacidade para dispensar a exequente de demandar previamente os executados em acção declarativa para avaliação judicial da sua pretensão de pagamento contra eles ([4]).

Decidiu-se que aquele documento não tinha capacidade para pôr em pé a própria relação processual executiva onde se iria exigir o pagamento coactivo da dívida invocada.

Esta decisão é, claramente, uma decisão relativa à constituição da relação jurídica processual entre as partes e o tribunal.

Não é uma decisão relativa ao mérito da acção executiva.

Sendo assim, a decisão tomada na execução n.º 226/94 nunca pode ser invocada com sucesso como excepção de caso julgado na presente execução, na medida em que só as decisões sobre o mérito da causa dão origem à excepção de caso julgado invocável noutro processo.

E como se disse a decisão tomada na execução n.º 226/94 foi uma decisão sobre a relação jurídica processual e não sobre o mérito da causa.

Não ocorre, pois, uma situação qualificável como se caso julgado.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2 - Passando à segunda questão.

Os executados alegam que a lei processual posterior à formação do documento que serve de título executivo, resultante da Reforma do Código de Processo Civil, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e que dispensou o reconhecimento notarial das assinaturas dos executados, não pode ter efeito retroactivo.

Assim, a força executiva do título executivo invocado tem de ser verificada à luz da lei que vigorava na data da sua formação.

Também não assiste razão aos executados, pois a lei que altera os pressupostos que conferem exequibilidade a um documento é de aplicação imediata e aplica-se aos documentos já constituídos e aos que vierem a constituir-se.

Nesta parte, adere-se à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciou sobre problemática semelhante ([5]) no Assento n.º 9/93, publicado no DR, I Série -A, de 18 de Dezembro de 1993, nos termos da qual «O artigo 51.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, é de aplicação imediata, mesmo em execuções pendentes».

Considerou-se neste assento que «O citado artigo 51.º, n.º 1, é uma típica norma de direito processual. Para além de incluída no Código de Processo Civil, ela não interfere com a validade e força probatória dos títulos de crédito nem com o conteúdo ou substância dos direitos subjectivos por eles conferidos, o que é regulado pela lei substantiva, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual. Na verdade, a definição dos requisitos de um documento, para que possa valer como título executivo, está directamente relacionada com esse segundo aspecto, ou seja, com o meio processual adequado à defesa do direito material (cf. A. Castro, Acção Executiva..., p. 52). A aplicação no tempo das leis processuais, na falta de regulamentação especial no Código de Processo Civil, deve basear-se nos princípios consignados no artigo 12.º do Código Civil.

(…) No caso em apreciação, deveria ter sido intentada acção declarativa e não executiva, mas, na pendência desta, entrou em vigor uma nova lei, que permite o uso da segunda.

Tanto pelas regras enunciadas como pelo elementar princípio de economia processual, a execução instaurada deve prosseguir: não há qualquer obstáculo à aplicabilidade imediata da lei nova; a julgar-se extinta a execução, o exequente poderia intentar outra, imediatamente, o que redundaria em inutilização de processado tornado válido por essa lei.

Não relevam, em sentido contrário, os argumentos do acórdão recorrido, uma vez que a nova lei, com a dispensa do reconhecimento notarial da assinatura do devedor, não regula o efeito jurídico do acto de subscrição do título de crédito mas simples aspecto de natureza processual, e a questão das custas tem regras próprias, não sendo susceptível de influenciar o sentido da decisão.

Acresce que, mesmo quanto às leis substantivas que «apenas regulam o modo de realização judicial de um direito», é geralmente defendida a sua aplicação imediata (Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 23, e Vaz Serra, Revisão de Legislação de Jurisprudência, ano 102.º, p. 189)».

Ou seja, face aos critérios estabelecidos no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, a lei que altera os pressupostos de exequibilidade de um documento incide sobre o conteúdo de relações jurídico-processuais e nestes casos a nova lei «… abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor» (parte final do n.º 2, do artigo 12.º, do Código Civil).

Improcede, por conseguinte, este argumento.

3 - Vejamos agora a terceira questão colocada, que respeita à prescrição relativa à dívida de capital.

 Os executados argumentam que o prazo de prescrição se iniciou em 12 de Novembro de 1988, data em que se venceu a primeira das duas prestações previstas, a qual não foi paga, levando, nos termos do contrato, ao vencimento imediato da segunda prestação.

Afirmam também que o mutuário (…), a pessoa que afiançaram, não foi citado naquele processo executivo n.º 226/94, motivo pelo qual tem de se considerar que quanto a ele não foi interrompido o prazo da prescrição.

Como a obrigação dos executados é acessória da obrigação assumida pelo mencionado mutuário, os executados gozam da prescrição que se completou em relação ao mutuário (…).

Vejamos.

Este argumento parte de uma premissa que não se verifica, isto é, o decurso do prazo da prescrição em relação ao mutuário por não ter existido interrupção do prazo em relação a ele.

Face ao que consta do processo, tudo indica que, efectivamente, o mutuário (…) não chegou a ser citado.

Mas também não há dúvida que ele interveio no processo, pois recorreu do despacho que ordenou a sua citação e obteve decisão favorável do próprio tribunal que o mandou citar.

Ora, o n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil dispõe que «Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias».

Por conseguinte, nos termos desta norma, instaurada a acção, o prazo de prescrição que esteja a correr interrompe-se por mero efeito da instauração da acção contra o devedor logo que decorram os mencionados cinco dias.

O que implica que baste o acto da instauração da acção para interromper o prazo prescricional.

Isto porque o efeito interruptivo, sendo como é automático, ocorre logo que passem os mencionados cinco dias, sendo irrelevante, depois, que a citação venha ou não a efectuar-se, podendo-se concluir que esta nada acrescenta ao efeito interruptivo já verificado, não existindo uma segunda interrupção.

O que se compreende se se olhar ao fundamento material da prescrição.

Como referiu Aníbal de Castro, «…a prescrição tem por fundamento específico a recusa de protecção a um comportamento contrário ao direito, a negligência do titular, e ainda a necessidade de obviar, em face do decurso do tempo, à dificuldade de prova por parte do sujeito passivo da relação jurídica…» ([6]).

Ora, o credor ao instaurar a acção revela um comportamento contrário ao que está na base da existência da prescrição e daí que o legislador lhe tenha concedido uma forma de obter um dos efeitos típicos da citação quando, por razões que não lhe são imputáveis, o tribunal não efectua a citação em prazo razoável, que a lei estipulou ser de cinco dias.

Verifica-se, por conseguinte, ser irrelevante a inexistência do acto formal de citação do mutuário (…)

Decorridos cinco dias sobre a instauração da acção o prazo da prescrição foi interrompido.

Consta dos documentos juntos que a acção n.º 226/1994 deu entrada em juízo no dia 4 de Outubro de 1994 (data que consta do carimbo de entrada do papel na secretaria colocado na primeira página da petição – ver fls 67 dos presentes autos – tratando-se de uma terça-feira).

Verifica-se, por conseguinte, de acordo com a regra da 1.ª parte da al. a), do artigo 279.º do Código Civil, que a interrupção ocorreu no dia 10 de Outubro de 1994.

Como a interrupção inutiliza todo o prazo decorrido até então e dá início a novo prazo, nos termos do n.º 1 do artigo 326.º e n.º 2 do artigo 327.º do Código Civil, verifica-se que o novo prazo prescricional de 20 anos só se atinge em 2014.

Não existe, pelo exposto, prescrição relativamente à dívida de capital.

4 – Vejamos agora se ocorreu prescrição quanto à dívida de juros.

Na sentença sustentou-se que não, sob o argumento de que os juros estavam cobertos pelo título executivo e, quando assim é, ficam sujeitos ao prazo prescricional de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil, tal como o capital.

Nesta parte não se acompanha a sentença.

Com efeito, no artigo 311.º do Código Civil, declara-se que «O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito o este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.

2. Quando, porém, a sentença ou o outro título se referir a prestações ainda não devidas, a prescrição continua a ser, em relação a elas, a de curto prazo».

Isto significa que os juros previstos num contrato ou resultantes da lei caso passem, uma vez vencidos (pois só a partir desta data começa a correr o prazo de prescrição) a integrar a parte dispositiva de uma sentença ou passem a fazer parte da dívida exarada num outro título executivo, ficam sujeitos ao prazo de prescrição ordinário.

Como advertiu Anselmo de Castro «…quando se trata de “outro título executivo”, a substituição pelo prazo ordinário só opera sendo o título posterior à dívida e não já quando contemporâneo» ([7]).

O que se compreende, pois a incorporação da dívida de juros na parte decisória de uma sentença ou num título executivo posterior ao facto que gerou a dívida de juros, mostra que o credor manifestou a vontade de receber o seu montante, deixando, por isso mesmo, de existir qualquer razão para distinguir a dívida de juros da dívida de capital.

Ora, no caso dos autos, não há qualquer título executivo posterior ao documento onde estão previstos os juros.

Dito de outra forma, os juros previstos no documento denominado «Escrito Particular para Empréstimo Concedido por Fiança», para poderem ficar fora do alcance do prazo prescricional de cinco anos, teriam, após vencimento, de passar a ficar incorporados noutro título executivo, momento a partir do qual deixavam de estar sujeitos ao prazo de prescrição de cinco anos e passavam a estar sujeitos ao prazo de vinte anos.

Ora, como se disse, não existe qualquer outro título executivo ou sentença, razão pela qual tem de se concluir que a invocação da prescrição quanto aos juros é operante.

E opera em relação ao juros vencidos há mais de cinco anos, considerando a data da citação dos executados ou o quinto dia posterior ao da instauração da acção (interrupção da prescrição – artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil), valendo o primeiro que haja ocorrido.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente. Confirma-se a sentença recorrida, salvo na parte relativa à decisão sobre a prescrição dos juros que se revoga. Declara-se a prescrição da dívida de juros pedida relativamente aos juros vencidos além dos cinco anos que antecedem a data da citação dos executados ou o quinto dia posterior ao da instauração da acção, valendo o primeiro que haja ocorrido, ficando a execução extinta nesta parte.

Custas pelos executados e exequente de acordo com o vencimento e decaimento, sendo o decaimento da exequente o relativamente aos juros que se consideraram abrangidos pela prescrição.


*

Coimbra, 5 de Julho de 2011.

Alberto Ruço ( Relator )

Judite Pires

Carlos Gil



[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 308/309, Coimbra 1985.

[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 96/97, 3.ª edição (reimpressão), Coimbra 1981.
[3] Cfr. Antunes Varela…, ob. cit., pág.667.

[4] O Prof. Alberto dos Reis escreveu a propósito da razão de ser da existência de títulos executivos de natureza extrajudicial que a explicação da precedência do processo de execução sobre o processo de declaração residia nas necessidades do comércio jurídico, na conveniência de favorecer o desenvolvimento do crédito, o que aconselhava a possibilidade do credor ter à sua disposição um título que, «...em caso de não cumprimento da obrigação por parte do credor, lhe permitisse entrar logo na via executiva, sem ter de percorrer o caminho longo e áspero da acção declarativa.

Quando as circunstâncias são de molde a fazer crer que o direito de crédito existe realmente, quando o instrumento de obrigação se encontra revestido de formalidades que dão a garantia de que a execução movida com base nele não será injusta, atribui-se ao título eficácia executiva e poupa-se ao credor o dispêndio de actividade, tempo e dinheiro que representa o exercício da acção declarativa» - Processo de Execução, I, pág. 82, 3.ª edição.
[5] No caso do assento 9/93, a questão colocou-se em relação a um cheque cuja inexequibilidade era certa face à redacção do artigo 51.º do Código de Processo Civil, anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, e que estava em vigor à data da sua emissão e à data da própria instauração da execução. A nova redacção do mencionado artigo 51.º passou a dispensar o reconhecimento notarial nos extractos de factura, letras, livranças e cheques, situação que, mais tarde, o Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, estendeu aos demais escritos particulares.

[6] A Caducidade, 2.ª ed. pág. 27/28, Livraria Petrony/1980.

[7] Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 280, 3.ª edição, Coimbra Editora/1977.