Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/05.1TTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
APOSENTADO
FUNÇÃO PÚBLICA
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 78º E 79º DO ESTATUTO DA APOSENTAÇÃO (DEC. LEI Nº 498/72)
Sumário: I – Nos termos do artº 78º do Estatuto da Aposentação (Dec. Lei nº 498/72, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 215/87, de 29/05), os aposentados não podem exercer funções públicas ou a prestação de trabalho remunerado nas empresas públicas, excepto se se verificarem algumas das seguintes circunstâncias: a) quando exerçam funções em regime de prestação de serviços nas condições previstas na al. a) do nº 2 do artº 1º do Estatuto da Aposentação.

II – A posterior desvirtuação de uma situação de facto, quando ocorra uma prestação de serviços por um aposentado numa empresa pública, com a introdução prática de estigmas indiciadores de uma subalternização funcional, de contornos próximos de uma subordinação jurídica, não pode converte o contrato de prestação de serviços em contrato de trabalho subordinado, apenas legitimando o prestador de serviços a pôr termo ao acordo celebrado.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –

- A..., casado, com os demais sinais dos Autos, demandou no Tribunal do Trabalho de Viseu o R. «C...» em acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, pedindo a final a condenação deste a ver declarada a nulidade do despedimento de que foi alvo, porque ilícito, por inexistência de justa causa averiguada em processo disciplinar, declarando-se a subsistência do vínculo laboral por tempo indeterminado, com a consequente reintegração do A. no seu posto de trabalho, com a categoria, funções e antiguidade que lhe são devidas, sem prejuízo da opção pela indemnização legal, até à prolação da sentença.

Alegou para o efeito, em resumo útil, que as partes celebraram em 11.6.2003 um contrato de prestação de serviços, na modalidade de ‘avença’, a que foi aposta uma’Adenda’ em 4.9.2003, ao abrigo do qual o A. se obrigou, no âmbito das tarefas de Acessor Jurista, a desempenhar, com autonomia técnica e científica, as funções inerentes aos ramos da ciência jurídica ou outras funções adequadas à sua habilitação profissional, nomeadamente preparação, instrução e instauração de processos administrativos e judiciais para cobrança de dívidas hospitalares.
O contrato em causa, embora rotulado de prestação de serviços, caracterizava-se, na prática, como um verdadeiro contrato individual de trabalho, por tempo indeterminado, de acordo com a factualidade que descreve.
Face à ilicitude do despedimento, pretende ser reintegrado, deixando a eventual opção pela indemnização de antiguidade em aberto até ao momento próprio.

- Frustrada a tentativa de conciliação a que se procedeu na Audiência de Partes, a sociedade R. veio contestar, deduzindo ainda pedido reconvencional, a que o A respondeu.

- Com absolvição do A. da reconvenção deduzida, com fundamento na incompetência material do Tribunal, prosseguiram os Autos a sua normal tramitação.
Discutida a causa, proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente, com absolvição da sociedade R. do pedido.

- Irresignado, o A. veio apelar.
Alegando, concluiu assim:
[…]
Termos em que revogando-se a douta sentença e substituindo-se por outra que dê provimento ao recurso, condenando o Réu C... no pedido, se fará a habitual JUSTIÇA.

- Respondeu o recorrido, concluindo, em resumo útil, que as partes podem celebrar um contrato de trabalho ou de prestação de serviços ou qualquer outro tipo contratual, nominado ou não, consoante os seus interesses ou vontades, sendo que, depois de firmado, se impõe às partes que o cumpram pontualmente e segundo os princípios da boa fé.
O recorrente, a partir do momento em que foi desligado do serviço por efeito da aposentação não podia, por imperativo legal, exercer funções remuneradas ao serviço do Estado, de institutos públicos ou de empresas públicas, excepto em regime de mera prestação de serviços e nas condições previstas na alínea a) do n.º2 do art. 1.º e nos demais casos permitidos pela Lei, conforme se dispõe no Estatuto da Aposentação – art. 78.º do D.L. n.º 498/72, de 9 de Dezembro.


Aqui chegados os Autos e recolhidos que se mostram os vistos legais devidos – tendo o Exm.º P.G.A. emitido proficiente Parecer no sentido do improvimento da impugnação, a que ainda respondeu o recorrente – cumpre decidir.

II –

A – DOS FACTOS.
Vem assente a seguinte factualidade:
[…]

B – CONHECENDO.
Como resulta da leitura do acervo conclusivo – por onde se afere e delimita o objecto e âmbito da impugnação, como é sabido, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso e aquelas cuja solução tenha ficado prejudicada pela decisão dada a outras – o apelante dissente da juízo firmado na sentença por continuar a entender, basicamente, que, tendo embora celebrado originalmente um contrato de prestação de serviço com a R., na modalidade de ‘avença’, com autonomia técnica e científica, em funções inerentes ao ramo da ciência jurídica, passou, em certo momento da constância desse vínculo, a desempenhar funções subordinadas, nomeadamente a partir da nomeação do Dr. D... como novo responsável e coordenador do Gabinete Jurídico, o qual assumiu o controlo, direcção, avaliação e fiscalização de toda a actividade desenvolvida pelo A….
…Mais tendo ficado provado que, a partir de Dezembro de 2003, toda a actividade do recorrente se traduziu na dependência a ordens, regras e orientações do R. empregador, com o conteúdo da sua actividade a ser pautado pela existência de subordinação jurídica
…E, por isso, o recorrente passou a estar vinculado ao R., desde a última data referida, por uma relação jurídica de trabalho subordinado, configurando a ‘denúncia’ comunicada pela carta de 18.2.2005 um despedimento ilícito, não precedido de processo disciplinar e sem justa causa.


Vejamos então.
O A. – como alegou oportunamente e resulta da factualidade seleccionada – foi funcionário público, ora aposentado, tendo cessado as funções de Assessor Principal Jurista da carreira técnica superior, que exercia no quadro de pessoal do R., ‘C...’, em 31.3.2003.
Logo no dia seguinte (1.4.2003) iniciou funções, como contratado, celebrando com o R., em 11.6.2003, um contrato de prestação de serviços, na modalidade de ‘Avença’, com efeitos reportados àquela data, tudo conforme documento referido na alínea a) do alinhamento factual constante da decisão, que temos presente.
Nos seus termos o A. obrigou-se, ‘no âmbito das tarefas de assessor-jurista, a desempenhar, com autonomia técnica e científica, funções inerentes aos ramos da ciência jurídica ou outras funções adequadas à sua habilitação profissional, no domínio dos objectivos prosseguidos’ pela R., nomeadamente a preparação, instrução e instauração de processos administrativos e processos judiciais para cobrança de dívidas hospitalares, intervindo nos respectivos julgamentos em que não é obrigatória a constituição de advogado, podendo ainda ser incumbido de elaborar informações e emitir pareceres técnico-jurídicos, bem como instruir processos de averiguações, de inquérito ou disciplinares’.


E, visto o alegado no petitório, conjugado com ‘nomen juris’ dado ao contrato e com as demais cláusulas que integraram tal acordo – doc. de fls. 16-18, elaborado com a participação directa da testemunha Dr. E..., por banda da demandada, na sua qualidade de ‘administrador executivo’ da R., ao tempo, que …explicitou o teor/objecto do mencionado contrato e veio a concluir que o mesmo traduzia a vontade e o interesse das partes…como se consignou na fundamentação da decisão de facto, a fls. 263, interveniente/depoente que, tal como o A., também é licenciado em Direito – não deixa de chamar a nossa atenção a circunstância de, numa sequência, sem hiato, entre a aposentação e a celebração do contrato sujeito o A. continuar ao serviço da R. – inclusive mantendo sempre o mesmo gabinete de trabalho (letra h) do rol dos factos assentes, fls. 258)
Contrato esse em cujo clausulado, não obstante intitulado de contrato de prestação de serviços (neste, por definição, a obrigação contratada é apenas de resultado, …certo resultado do trabalho, ‘ut’ art. 1154.º do C.C.) se misturam elementos típicos da figura vizinha do contrato de trabalho (art. 1152.º do C.C.), como, v.g., a sujeição a horário de trabalho, ‘faltas justificadas’ destinadas à recuperação física e psíquica, em paralelo com os dias de férias do regime geral do contrato individual de trabalho, inclusão no mapa/plano de férias referente ao GJ, com gozo das mesmas em períodos previamente acordados com a R. (cfr. alíneas f) e ll) dos factos assentes) …
O que, tudo concertado, contextualiza e torna assim imediatamente compreensível a (…aparentemente drástica) conclusão que se estampou na proposição que integra o segundo período de fls. 269 (sic: ‘O A. e a R., tendo perfeito conhecimento das circunstâncias que determinaram a continuidade dos serviços do primeiro…decidiram-se pela elaboração do contrato dito nas alíneas a) a l) e pretenderam, por certo, conformar a situação concreta ao figurino legal tido por ‘adequado’ no pressuposto, nomeadamente, de que o A. se encontrava então em situação de funcionário público aposentado e a demandada era uma empresa pública estadual-sociedade anónima de capitais inteiramente públicos – no entanto temos de convir que se tratou de um negócio em fraude à lei, já que se procurou contornar uma proibição legal – cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1980, pg. 433’).


Com efeito, sabido que o A., enquanto outorgante no falado ‘contrato de prestação de serviços’, se achava já desligado do serviço para efeitos de aposentação, (o que, como bem se disse, constitui o meio normal de cessação da relação jurídica de emprego dos funcionários públicos – art. 28.º/1 do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro), não poderia ignorar-se o que a propósito se dispõe no Estatuto da Aposentação, (Decreto-Lei n.º 498/72, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio), maxime nos seus arts. 78.º e 79.º.
Nos seus termos, ’os aposentados (…) não podem exercer funções públicas ou a prestação de trabalho remunerado nas empresas públicas, excepto se se verificarem algumas das seguintes circunstâncias: a) Quando exerçam funções em regime de prestação de serviços nas condições previstas na alínea a) do n.º2 do art. 1.º; …(hipótese que ao caso interessa e basta).

A razão de ser desta limitação é perfeitamente compreensível e está correctamente explicitada na decisão sob protesto.
Com ela lembramos – na citação aí feita, que também acompanhamos – que a incapacidade, como regra, para o aposentado exercer funções públicas visa evitar a duplicação de rendimentos a cargo do Estado relativamente ao mesmo beneficiário e simultaneamente viabilizar políticas de emprego público, com a criação de novos empregos e a renovação dos quadros técnicos e administrativos.
As excepções previstas salvaguardam, por norma, a impossibilidade de vinculação em termos de trabalho subordinado, seja para o exercício de funções que o agente já exercia antes da aposentação, seja para o exercício de novas funções.

E, pelo que decorre do sobredito, as partes terão pretendido – ao menos formalmente e em alguma medida – acautelar a situação, respeitando o comando do art. 78.º do Estatuto da Aposentação.
São inequívocos indicadores disso, apesar de tudo, o teor das cláusulas 6.ª e 9.ª do contrato formalizado (doc. de fls. 17-18) em que se consignou nomeadamente que qualquer dos outorgantes pode denunciar o contrato, sendo que em qualquer dos casos de cessação referidos não haverá lugar a indemnização (cl.ª 6.ª, n.ºs 1 e 3) e ‘O presente contrato não confere ao 2.º outorgante a qualidade de Agente da Administração Pública ou de trabalhador do 1.º outorgante’ (cl.ª 9.ª).


A posterior desvirtuação da situação de facto, na alegada perspectiva do A., com a introdução prática de estigmas indiciadores de uma subalternização funcional, de contornos próximos da ora pretextada subordinação jurídica, (situação esta que terá despoletado, afinal, a sua reacção...), não poderia ter o sortilégio de converter o convénio inicial, celebrado/querido como sendo um ‘contrato de prestação de serviços’, num contrato de trabalho ‘proprio sensu’ – como certamente se convirá numa segunda reflexão – por a isso se opor expressamente a Lei.
A alteração das circunstâncias, se relevantes para questionar os termos daquele, legitimaria, o A., isso sim, a pôr termo ao acordo celebrado, denunciando-o com esse fundamento, no pressuposto – por si aliás relembrado a fls. 290 das doutas alegações – de que o contrato outorgado o foi de boa-fé e de espontânea e livre vontade.

Sempre se dirá – e a observação não deixa de caber seguramente na elasticidade da reclamada postura de boa-fé das partes… – que a autonomia técnica e científica pressuposta no falado ‘contrato de prestação de serviços’, e pela qual se bate ciosamente o A., não é um conceito absoluto, como tal praticável, não sendo por isso vedado, em tese, qualquer tipo de intervenção da entidade credora do resultado do trabalho a que aquele se obrigou.
Mesmo no genuíno contrato de prestação de serviço (v.g. o mandato e mais impressivamente a empreitada) não se discute a possibilidade de intervenção mais ou menos apertada e constante do dono da obra em aspectos relevantes da execução, seja fornecendo meios destinados à consecução do resultado, seja fiscalizando os trabalhos.
(Vide, ‘inter alia’, Monteiro Fernandes, ‘Direito do Trabalho’, 13.ª Edição, pgs. 144 e 160).

A manutenção do contrato de ‘Avença’ não era, por isso, ontologicamente incompatível com a existência de um Conselho de Administração da R. ou mesmo com um coordenador do GJ (Gabinete Jurídico), no qual se inseria a actividade desenvolvida pelo A.


Apesar da descrição e análise que se fez na decisão revidenda sobre as transformações por que passou o R. ‘C...’ relativamente à sua conformação jurídica, (desde a Lei 27/2002, de 8/11, ao Decreto-Lei n.º 287/2002, de 10/12, até mais recentemente ao Decreto-Lei n.º 233/05, de 29/12, que converteu o C... de sociedade anónima em ‘EPE’, Entidade Pública Empresarial) – visando demonstrar que o objectivo do legislador foi o de optimizar tão-só o modelo de gestão, dentro da estratégia de controlo das despesas, mas sempre sem pôr em dúvida a sua natureza de uma entidade pública (não deverá confundir-se a empresarialização da gestão dos serviços públicos com a sua privatização) – ainda assim o Recorrente insiste, sem razão, em que o seu formato, ao tempo, (o actual retirou-lhe a feição ‘S.A.’, como se disse acima), não seria incompatível com a interdição/limitação do art. 78.º do EA (Estatuto da Aposentação), pretendendo ser havido como trabalhador subordinado do R.!
Mas – pergunta-se – teria o A. realmente querido vincular-se então ao R. por um contrato de trabalho, após ter sido desligado do serviço para efeitos de aposentação?
Cremos convictamente que não, ao tempo.
Mas se sim, não se percebe por que aceitou vincular-se (…de boa-fé e de espontânea e livre vontade) mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços, onde expressamente se salvaguardou cláusula no sentido de que esse contrato não conferia ao A., aí 2.º outorgante, a qualidade de trabalhador do R.!

Como bem refere o Exm.º PGA no seu Parecer, a fls. 330, a (eventual) alteração das condições de trabalho não gera automaticamente uma alteração da natureza do contrato celebrado, sendo que, a verificar-se um qualquer desvio relevante, o A. tinha direito, sim, a exigir que a execução do mesmo correspondesse aos termos contratados…ou a denunciá-lo com esse fundamento, como dissemos acima.
Para que houvesse alteração do tipo/natureza do contrato formalizado seria necessária a existência de um acordo de vontades válido nesse sentido.
Não é o caso, evidentemente.

A construção jurídica da sentença ‘sub judicio’ e o enquadramento normativo em que assenta mostram-se acertados, sendo a solução eleita isenta de reparo ou censura.
Nela bem se percepcionou o que afinal se visou com a manutenção do A. após 31.3.2003, iniciando funções como contratado, a coberto da celebração do falado ‘contrato de Avença’.
Confirma-o o Apelante, ele mesmo, na conclusão 3.ª: o A. detinha a qualidade de Director do Gabinete Jurídico, em que até então, (até à entrada da Dr.ª B... como presidente do Conselho de Administração do R., em 7.11.2003), vinha prestando a sua actividade com inteira autonomia e independência…


A denúncia do falado ‘contrato de Avença’ não poderia prefigurar-se, no descrito contexto, como constituindo um despedimento ilícito e sem justa causa, como veio reclamar-se, sem qualquer razão.

O assim ajuizado não pode pois deixar de ser ratificado.
Vamos terminar.
___

III –

Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se julgar improcedente a Apelação, confirmando inteiramente a sentença impugnada.
Custas pelo recorrente.
***

Coimbra,