Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
52/07.2TBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GRAÇA SANTOS SILVA
Descritores: EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
HOMOLOGAÇÃO
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 175.º E 182.º DA OTM
Sumário: 1. A inclusão de duas novas cláusulas numa regulação de poder paternal obtida por acordo dos pais constituí alteração ao mesmo e não rectificação de erro material, desde que do conteúdo do acordo homologado não resulte que se escreveu coisa manifestamente diferente do que se queria escrever;
2. A alteração da regulação do poder paternal pode resultar de acordo dos pais, sem a verificação dos pressupostos do nº 1 do artº 182º da OTM, aplicando-se-lhe então, ab initio, o regime do artigo 182º nº 4 da OTM;
3. A alteração da regulação do poder paternal só é válida mediante a efectivação da conferência a que alude o artº 175º da OTM, devendo resultar de declarações pessoalmente emitidas pelos pais.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes desta 2ª secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I- Relatório:
A....intentou contra B....a presente acção de regulação do poder paternal, relativa à filha de ambos, C...., nascida em 16/5/2003, pedindo a guarda da menor, o estabelecimento de um regime de visitas adequado à convivência da menor com o pai, e a fixação de uma pensão de alimentos por parte do requerido.
Efectuada conferência nos termos do artº 175º da OTM, em 29 de Maio de 2007, foi obtido acordo entre os progenitores, presentes, que foi homologado por sentença, no próprio acto. É o seguinte o teor do acordo constante dessa acta:
1- O poder paternal é atribuído a ambos os progenitores ficando a menor C.... confiada à guarda e cuidados da mãe.
2- O pai poderá visitar a menor sempre que quiser sem prejuízo das suas actividades e descanso e sem perturbação da vida da requerente, devendo contactá-la para o efeito.
3- A menor passará a Consoada e o Natal com um dos progenitores e o dia de Ano Velho e de Ano Novo com outro, de forma anualmente alternada, começando no ano de 2007 a passar a Consoada e Natal com a requerente.
4- A menor passará o dia de Páscoa alternadamente, com o pai e com a mãe, começando no ano de 2008 a passá-lo com o requerido pai.
5- A menor passará com o pai uma semana na Páscoa, uma em Junho, uma em Julho, uma em Agosto e uma no Natal, sendo que as de Junho, Julho e Agosto deverão ser acordadas previamente.
6- A mãe poderá nestes períodos visitar a criança avisando telefonicamente o pai.
7- A requerente compromete-se a preparar psicologicamente a menor de forma a que, a partir de Setembro de 2007, passe a frequentar o infantário.
8- O pai contribuirá a título de alimentos com a quantia de € 100,00 mensais a depositar na conta da Caixa Geral de Depósitos cujo NIB é 003506180002417500031.
9- O pai depositará o abono da menor em conta desta a abrir na Caixa Geral de Depósitos.
10- O requerido pai contribuirá, ainda, com metade das despesas extraordinárias de educação e saúde, onde a creche se inclui.
Em 14/6/07, o requerido veio a Tribunal pedir a rectificação do acordo, por ter verificado que do mesmo faltavam duas cláusulas que tendo sido acordadas pelas partes, não foram efectivamente ditadas pelos respectivos Mandatários, que foi quem ditou o teor do acordo para a acta, que seriam, respectivamente a 3ª e a 4ª, com o seguinte teor:
“O pai poderá conviver com a menor uma a duas horas por dia ao fim da tarde antes da hora de jantar.
Os fins-de-semana serão passados, alternadamente, com o pai e com a mãe, devendo o pai ir buscar a menor Sábado até às 10:00 e entregá-la Domingo até às 22:00”.
Notificada a A., na pessoa do seu mandatário, do acima mencionado, e para “esclarecer se concorda com o aditamento ao acordo”, nada disse.
Foi proferido despacho, do qual consta que “não pode ser concedida a rectificação pretendida pelo requerido” face à falta de valor do silêncio da requerente, sendo, no entanto, que as “novas cláusulas pretendidas se têm de considerar incluídas de forma claramente mais lata e abrangente na cláusula 2ª do acordo, já obtido e expresso”.
Notificados os Mandatários das partes, veio o, então, Mandatário da A., introduzir um requerimento no processo, com o seguinte teor: “A…., Requerente melhor identificada nos autos, em que é Requerido, B…., vem atento o despacho de fls.49, comunicar, a V.Exa que a não oposição à requerida rectificação do acordo de regulação do exercício do poder paternal, resultou do facto da Requerente se conformar com o aí alegado, por corresponder ao efectivamente acordado”.
Notificada a parte contrária, e tendo-se o MP pronunciado pela homologação da “pretendida alteração do acordo de regulação” (transcrição do despacho que mandou os autos ao MP para o efeito), foi proferido o seguinte despacho:
“ Na sequência do nosso despacho de fls. 54, veio agora o Ministério Público declarar nada ter a opor à pretendida alteração ao regime acordado entre as partes processuais nestes autos quanto à regulação do exercício do poder paternal relativamente à menor C.....
Assim, face ao exposto, determina-se o aditamento ao acordo de fls. 39 a 41, entre a cláusula 2ª e a cláusula 3ª das seguintes:
“3ª - O pai poderá conviver com a menor uma a duas horas por dia ao fim da tarde antes da hora de jantar.
4ª - Os fins-de-semana serão passados, alternadamente, com o pai e com a mãe, devendo o pai ir buscar a menor Sábado até às 10:00 e entregá-la Domingo até às 22:00.”
Em consequência do aditamento que se acaba de determinar, deverão ainda as cláusulas 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 9ª e 10ª ser renumeradas respectivamente para 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 9ª, 10ª, 11ª e 12ª.
Os aditamentos e renumerações que se acabam de determinar vão agora homologados por sentença nos mesmos e precisos termos em que o foi o acordo originário de fls. 39 a 42, sendo as partes processuais condenadas a cumprir agora também as novas cláusulas por si pretendidas nos seus precisos termos.
Notifique”.
Este despacho foi notificado ao MP, e aos mandatários das partes.
Do supra transcrito despacho foi interposto recurso pela requerente, pedindo a sua revogação e substituição por outro que indefira o pedido de rectificação e alteração do regime acordado nos autos, ou, e sem prescindir a revogação do despacho recorrido e citada a recorrente para os efeitos do art. 175º por efeito do n.° 2 do art. 184º da O.T.M., sem prejuízo do Tribunal " a quo", decidir procedentes as nulidades invocadas, alterando a decisão no sentido exposto.
Foram apresentadas as seguintes conclusões:
“ I- As duas cláusulas em causa constituem uma alteração da regulação do poder paternal já transitada em julgado.
II- Tais cláusulas não foram negociadas pelas partes, designadamente pela recorrente, que também não foi notificada, citada ou consultada pelo seu mandatário para tal modificação.
III- Caso tivesse sido consultada, opor-se-ia a tal alteração porquanto vem criar instabilidade à menor até porque nem sequer ficou definida a hora de jantar e a entrega da menor no Domingo ás 10 horas é extremamente tardia.
IV- A falta de citação da Ré para alteração da regulação do poder paternal e respectiva conferência são causas de nulidade, o que se invoca.
V- A alteração do acordo viola e interpreta erradamente o disposto no n. 1 do art. 667°. do C. P. Civil, o disposto no art. 182º., ds. 1, 3 e seguintes, 184°., nºs. 1 e 2 art.s 175°., 177º. e 178°, ( por remissão) da OTM, devendo ser interpretados como acima se expõe .
Contra-alegou o requerido, pronunciando-se pela legalidade do despacho.
II- Questões a decidir:
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs e 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC, na versão anterior ao D.L. nº 303/07 de 24/8), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – fine - do artº 660º nº2 do CPC).
O tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, mas, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” (referido naquele normativo) não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Acs. do STJ, de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Compulsadas as conclusões da motivação do presente recurso, e as contra-alegações, verifica-se que a questão que importa apreciar é aferir se a introdução das duas cláusulas constitui uma alteração da regulação do poder paternal, ou uma rectificação do texto em que ele foi vertido.
III- Fundamentos:
Antes de mais uma nota: a questão que se coloca no recurso tem uma vertente jurídica, a apreciar, mas também tem uma vertente humana. Quanto a esta última, constata-se, que ambos os mandatários originais das partes estão de acordo em que era vontade das partes introduzir aquelas cláusulas no acordo de regulação, o que só não foi feito por lapso. Ambos os mandatários estiveram presentes, o requerido também, e a requerida igualmente. É de estranhar que apenas a requerida não tenha dado pelo acordo que todos são unânimes em dizer que foi efectuado na altura, e agora venha levantar a questão da sua falta de anuência, desconhecimento, e tudo o mais. Na pressuposição, e perante declaração expressa dos mandatários de que o acordo original, ditado pelos mesmos, conteve de facto uma omissão, a Mma Juiz “corrigiu-o”, para que o constante dos autos fosse conforme com a vontade das partes. E eis-nos, quando não, a discutir em matéria de recurso aquilo que humanamente parecia fiável no processo….., com a renúncia do mandatário da A., que esteve presente na conferência, pelo meio.
Analisando numa perspectiva exclusivamente jurídica, temos que o requerido, ao efectuar o seu pedido de introdução no texto do acordo das duas cláusulas em causa, fê-lo com recurso à figura da rectificação.
A Juiz no despacho que profere, ordenando o cumprimento do contraditório, faz menção à figura do aditamento.
No despacho em que indefere o requerido, por falta de manifestação de vontade da A., reporta-se à figura da rectificação.
O requerimento em nome da A. a dar acordo ao pedido pelo requerente, refere-se à rectificação.
O despacho a dar conhecimento ao MP do pedido e resposta, fala de alteração do acordo, tal como aquele que defere o requerido, que se reporta expressamente à “alteração ao regime acordado entre as partes”.
É caso para averiguar qual a figura jurídica que está em causa no requerimento e despacho final sobre ele proferido.
Sobre a rectificação de erros materiais rege o artº 667º do CPC, segundo o qual o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, pode corrigir erros de escrita, de cálculo, ou inexactidões devidas a omissão ou lapso manifesto.
Seguindo Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, e RLJ 87º-144 e 84º-166, há que distinguir erro material de erro de julgamento. E só o erro material cabe na previsão normativa em apreço, o que implica que o juiz tenha escrito coisa diversa do que queria escrever, não havendo coincidência entre o teor da decisão e a vontade real do seu autor. “É necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreenda claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for a aplicação do artº 667º é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material”. “Para que o juiz possa rectificar a sentença com base na existência erro material não basta que afirme a sua existência, sendo necessário também que esse erro seja evidenciado pelo contexto da decisão” – Ac RC de 21/4/92 em BMJ 435º-710.
Como é entendimento unânime, a regra em causa aplica-se igualmente aos actos das partes.
Independentemente do facto de terem sido ou não as partes a ditar os termos do acordo, que é irrelevante, o certo é que a sentença homologatória integrou os termos do mesmo no seu seio, ou seja, faz caso julgado quanto aos termos que dele constam.
Nada no texto do acordo, acima integralmente transcrito, indicia que a omissão das cláusulas em causa tenha resultado de lapso manifesto, ou seja, que não se tenham feito constar as mencionadas cláusulas, por lapso, não obstante terem sido objecto de acordo das partes.
Não estamos assim em face de qualquer situação de rectificação de erro material.
Um aditamento é um acrescento a qualquer coisa, ex novo, fruto de um ulterior processo de criação de vontade, e subsequente manifestação.
O aditamento da regulação de um acordo de poder paternal redunda, naturalmente, numa alteração do mesmo.
Não sendo mera rectificação de erro material, resta ser alteração do acordo relativo ao exercício do poder paternal. E para esta solução, além do regime geral já mencionado, contribui definitivamente o regime próprio do estabelecimento e alteração do exercício do poder paternal.
A titularidade do poder paternal pertence, por regra, a ambos os pais – artº 1878º do CC.
Nos casos de separação ou divórcio há que regular o exercício do poder paternal, uma vez que deixa de haver a comunhão de vida que pressupõe o exercício conjunto e permanente desse poder - dever. A lei admite, como excepção, a continuidade do exercício conjunto, desde que ambos os pais, no processo próprio, o declarem pretender, mas exige a regulamentação judicial do mesmo ( artº 174º da OTM), que poderá ser efectuada a requerimento de qualquer dos progenitores ou, caso estes não a peçam, do curador de menores. E pode ser feita através de acordo dos pais ( acordo prévio ao pedido de actuação jurisdicional, formado em sede de conferência, ou manifestado até ao trânsito em julgado da decisão) que, respeitando as normas substantivas aplicáveis ( artº 1905º do CC), ou não havendo acordo, através de sentença judicial, nos termos do artº 180º da OTM.
Daqui resulta que, havendo acordo dos pais (que são as pessoas que, por princípio, estão melhor colocadas para apreciar das necessidades e conveniências dos seus filhos, e como tal avaliar o que é do seu interesse) o papel do juiz, verificado que esteja que esse acordo não contende com o interesse do menor, e abrange o destino do menor, a fixação de alimentos, e a forma da sua prestação, é de pura conversão do acordado em sentença, através da respectiva homologação.
Isso pressupõe, no entanto, que a manifestação de vontade dos pais seja pessoalmente transmitida ao juiz ( artº 175º nº 2 da OTM), ou na sua absoluta impossibilidade, por uma mandatário com poderes especiais para o efeito.
Resumindo, no que interessa: a regulação do poder paternal pode ser suscitada pelos pais, que podem acordar nos respectivos termos, sendo válido o acordo desde que resulte de manifestação de vontade, feita de forma pessoal, e que respeite os interesses do menor, e seja tutelada por sentença.
Mutatis mutandis, o mesmo se passa quanto à alteração do regulado. Não obstante o disposto no artº 182º da OTM, que prevê apenas hipóteses de incumprimento e alteração substancial superveniente de circunstâncias, crê-se que nada obsta a que ambos os pais, por acordo, entendam que é conveniente proceder à alteração dos termos da regulação em vigor, e o submetam à apreciação do tribunal, que verificadas as circunstâncias supra referidas de validade do acordo, o alterará.
É certo que no caso dos autos, as duas cláusulas em apreço podem considerar-se integradas na cláusula 2º, mas são especificações importantes do modo como se deve proceder ao seu cumprimento.
E, na conformidade, a alteração (ainda que por pura especificação, mas alteração) da regulação do poder paternal vigente, pretendida através da inclusão das mencionadas cláusulas, carecia de ser feita considerando os procedimentos adequados à manifestação pessoal de vontades de ambos os pais, junto da Mmª Juiz. O que não foi feito. Não foi efectuada qualquer conferência de pais, nem sequer foi dado conhecimento pessoal aos pais do requerido pelos respectivos mandatários, e exigida a sua pronúncia pessoal sobre o assunto. Mostra-se assim violado o primado do respeito pela vontade dos pais, pessoal e efectivamente manifestada no processo, e por arrastamento o disposto no artº 182º nº 4, e 175º a 180º da OTM.
Nestas circunstâncias não resta senão julgar o recurso procedente, e revogar a decisão recorrida, indeferindo à requerida alteração da regulação do poder paternal.
IV- Decisão:
Acorda-se, pois, em dar provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, e indeferir à requerida alteração da regulação do poder paternal.
Custas do incidente na primeira instância e do recurso pelo recorrido, fixando-se a taxa de justiça de uma UC pelo incidente.