Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
415/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 9.º; 11.º ; 280.º; 424º;405º, Nº 1, 406º, Nº 1, 762º, Nº 1, 804º, Nº 1, 805º, NºS 1 E 2, A) E 559º, Nº 1, DO CÓDIGO CIVIL. ARTIGOS 456º, NºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: 1. A admissibilidade da interpretação extensiva das normas de natureza excepcional, restringe-se à situação em que o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos no artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas que o legislador, ao formular a norma, exprimiu-se, restritivamente, dizendo menos do que queria.
2. Não é sustentável afirmar-se que o legislador não soube distinguir o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, potencialmente, alvo dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, que se podem estabelecer entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida, a ponto de ser necessário generalizar o seu universo.
3. Ocorre a situação do abuso de direito quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite.
4. A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, por litigância de má fé, condiciona a respectiva condenação, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A...., residente em ….., propôs a presente acção, com processo ordinário, contra B...., residente em ….., pedindo que, na sua procedência, este seja condenado a pagar à autora a quantia de 4.800.000$00 (23.942,30€), acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000, alegando, para o efeito, e, em suma, que, por contrato-promessa de compra e venda, celebrado por escrito particular, em 4 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu comprar a C....e marido, D...., e estes prometeram vender aquela ou a pessoa por si indicada, a fracção autónoma, infradiscriminada, pelo preço acordado de 16.500.000$00, tendo entregue, no acto da assinatura do contrato, aos promitentes vendedores, a título de sinal e princípio de cumprimento, a importância de 1.500.000$00, devendo a restante parte do preço ser paga, no acto da escritura.

Por seu turno, continua a autora, mediante contrato-promessa de cessão de posição contratual, celebrado por escrito particular, em 5 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu ceder ao réu e este prometeu adquirir-lhe, por 4.800.000$00, a posição contratual que ela detinha no aludido contrato-promessa de compra e venda, declarando a autora ter recebido, a título de sinal e princípio de pagamento, do preço da prometida cessão, a quantia de 3.300.000$00, mas que, de facto, não foi paga, acordando ainda, no contrato-promessa de cessão, que, até à data da escritura de compra e venda, a celebrar entre o réu e os promitentes vendedores da fracção, aquele pagaria à autora a restante parte do preço, o que não se verificou, e que a importância a pagar pelo réu aos vendedores da fracção, no acto da escritura notarial, seria de 15.000.000$00, que acresceria ao valor do sinal já pago pela autora e, por fim, foi acordado, verbalmente, entre autora e réu, que a totalidade de tal preço seria paga, de uma só vez, na data da celebração da escritura de compra e venda.

A escritura outorgada entre os vendedores e o réu celebrou-se, em 30 de Março de 2000, e, na mesma altura, este entregou à autora, para pagamento do preço da cessão, um cheque, no montante de 4.800.000$00, que esta depositou, mas cujo pagamento foi recusado, em 3 de Abril de 2000, pela entidade bancária sacada, com fundamento em "cheque revogado por falta ou vício na formação da vontade", devolvido ao Serviço de Compensação do Banco de Portugal, em 4 de Abril de 2000, e, posteriormente, ao titular da conta onde fora depositado.

Na contestação, o réu alega, em síntese, que a “Ideia-4”, que mediava o negócio, apresentou-lhe o contrato-promessa de cessão da posição contratual, já subscrito pela autora, informando-o que o preço do negócio era o de 19.800.000$00, apondo o réu a sua assinatura, em 5 de Fevereiro de 2002, mas não tendo entregue 3.300000$00, a título de sinal, nem 1.500000$00, conforme o que resultava do seu teor.

A “Ideia-4”, antes da celebração da escritura respeitante ao contrato prometido, agendada para 30 de Março de 2000, exigiu a emissão do cheque de 4.800.000$00, já referido, a fim de ser apresentado a pagamento, após a celebração da dita escritura, tendo o réu, posteriormente, ordenado à Caixa Geral de Depósitos para não proceder ao seu pagamento, alegando “falta ou vício na formação da vontade”.

Aquando da outorga da escritura, o vendedor mostrou-se surpreendido com preço, que não correspondia ao contratado, e manifestou a vontade de a não assinar, tendo os representantes da “Ideia-4” garantido que as contas seriam feitas, de acordo com o preço declarado, concretizando-se, então, a escritura, mas recusando-se, depois, a rever e a aceitar as contas com base no preço de 19.800.000$00.

Que a autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento, tendo o seu nome e assinatura sido utilizados, por E...., seu pai, que, na posse dos conhecimentos que lhe advinham do cargo que desempenha, na “Ideia 4”, viu a possibilidade de obter lucros na transacção do imóvel, sendo certo que o contrato assinado pela autora só foi efectuado para proporcionar aquele os aludidos ganhos, em prejuízo dos proprietários do apartamento.

Considerando que eram os proprietários do apartamento e não a autora quem tinha que receber o preço de 19.800.000$00, o réu assumiu a obrigação de lhes pagar a quantia de 3.300.000$00, para perfazer aquela importância, o que veio a cumpriu, alguns dias depois.

Finalmente, alega a nulidade decorrente do disposto no artigo 18°, n°2, b), do Regime Jurídico das Sociedades de Mediação Imobiliária, aprovado pelo DL nº 77/99, de 16 de Março, concluindo pela improcedência da acção.

A sentença julgou nulo o contrato-promessa de cessão da posição contratual, a que aludem os artigos 4º e seguintes dos factos provados, e, em consequência, na improcedência da acção que a autora instaurou contra o réu, absolveu-o do pedido contra si formulado, condenando, porém, a autora como litigante de má fé, numa multa de seis UC’s.
Desta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, com a condenação do réu no cumprimento da obrigação resultante do contrato-promessa de cessão da posição contratual e a absolvição da autora da sanção que lhe foi aplicada, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O contrato promessa de compra e venda e o contrato promessa de cessão de posição contratual, celebrados entre a recorrente e os promitentes vendedores e o promitente cessionário, são válidos.
2ª - O disposto no artigo 18°, 2, b), do DL 77/99, de 16 de Março, relativo ao exercício da actividade imobiliária, é taxativo quanto às pessoas visadas, quando dispõe que: "Está, expressamente vedado às empresas...b) Intervir como parte interessada em negócio cujo objecto coincida com o objecto material do contrato de mediação do qual seja parte, nomeadamente comprar ou construir outros direitos reais, arrendar e tomar de trespasse, para si ou sociedade de que sejam sócias, bem como para seus sócios, administradores ou gerentes e seus cônjuges e descendentes e ascendentes do 1ograu;...".
3ª - O pai da recorrente, E...., não é, nem nunca foi, sócio, administrador ou gerente da mediadora ldeia-4.
4ª - O pai da recorrente não estava abrangido pela proibição do artigo 18°, 2, b), do DL 77/99, de 16 de Março.
5ª - Os contratos promessa de compra e venda e cessão de posição contratual celebrados pela recorrente foram-no de boa fé, com transparência, seriedade e honestidade.
6ª - Os promitentes vendedores receberam a totalidade do sinal e princípio de pagamento.
7ª - O preço de venda, declarado na escritura de compra e venda foi de 15.750.000$00.
8ª - Não houve qualquer acordo simulatório quanto a qualquer dos dois contratos.
9ª - O recorrido, tendo entregue à recorrente, aquando da escritura de compra e venda um cheque do montante acordado para a cessão de posição contratual, considerou, expressamente ter esta cumprido a sua parte no negócio, e quis cumprir a sua.
10ª - A recorrente ao deduzir a pretensão que deduziu, na convicção da sua razão não fez uso indevido do processo para obter qualquer efeito contrário à lei, nem deduziu pretensão que não tivesse fundamento, pelo que não deve ser sancionada como se tivesse actuado de má fé.
11ª - A Meritíssima Juiz a quo não dando provimento à pretensão da ora recorrente, violou os artigos 18°, nº 2, b), do DL 77/99, 280°, nº 2, e 281°, do C. Civil, e 756°, do C. P. Civil.
12ª - Encontra-se o recorrido na obrigação de pagar à recorrente a quantia de € 23.942,30, tal como se peticionou.
O réu não apresentou contra-alegações.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Por contrato-promessa de compra e venda, celebrado por escrito
particular, em 4 de Fevereiro de 2000, a autora declarou prometer comprar a C....e marido, João
Eduardo da Rocha Oliveira, ali representados por Rosa Nunes da
Rocha, a fracção autónoma, tipo T-3, designada pelas letras "AJ",
para habitação, correspondente ao oitavo andar, trás, esquerdo,
com um lugar de estacionamento, do prédio urbano, sito na Rua
Dr. Mário Sacramento, n°51, freguesia da Glória, concelho de Aveiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n°1200, e inscrito na matriz predial respectiva, sob o artigo n°4023,
mediante o preço acordado de 16.500.000$00 - A).

Com a assinatura do dito contrato, a autora pagou aos
promitentes vendedores, através da representante destes, a título
de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.500.000$00,
sendo-lhe prestada a competente quitação, sendo que a restante
parte do preço da prometida venda, no montante de 15.000.000$00,
deveria ser paga, no acto da escritura notarial de compra e venda – B).

Mais foi acordado, no identificado contrato-promessa de compra e venda, que a fracção seria vendida à autora A.... ou a pessoa por si indicada – C).

Mediante contrato-promessa de cessão da posição contratual, celebrado por escrito particular, em 5 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu ceder ao réu, e este, por seu turno, prometeu adquirir-lhe, pelo preço de 4.800.000$00, a posição contratual que ela detinha no identificado contrato-promessa de compra e venda - D).

De acordo com a cláusula terceira deste identificado
contrato-promessa de cessão da posição contratual, a autora
declarou ter recebido, a título de sinal e princípio de pagamento do
preço da prometida cessão, a quantia de 3.300.000$00, sendo certo
que tal importância não lhe foi, de facto, paga - E).

Mais se acordou, no contrato-promessa de cessão da posição
contratual, que, até à data da escritura de compra e venda, a
celebrar entre o réu e os promitentes vendedores da fracção,
aquele pagaria à autora a restante parte do preço da prometida
cessão da posição contratual, no valor de 1.500.000$00, o que não
se verificou - F).

Igualmente se estabeleceu, no contrato-promessa de cessão
da posição contratual, que a importância a pagar pelo réu aos
vendedores da fracção, no acto da escritura notarial, seria de
15.000.000$00, que acresceria ao valor do sinal já pago pela
autora, perfazendo 16.500.000$00, preço acordado para a
prometida venda - G).

Porque nada tivesse sido pago à autora, relativamente ao
preço da prometida cessão da posição contratual, nos prazos
fixados, foi acordado, verbalmente, entre autora e réu, que a totalidade de tal preço seria paga, de uma só vez, na data da celebração da escritura de compra e venda - H).

A escritura notarial de compra e venda da identificada
fracção autónoma, entre os vendedores, C…. e marido, D...., e o comprador, B...., veio a celebrar-se, em 30 de
Março de 2000 - I).

O réu, em cumprimento do que acordara com a autora, para
pagamento do preço da cessão da posição contratual, fez entrega
dum cheque, sacado sobre a conta n°7531018256, por si titulada,
na Caixa Geral de Depósitos, do montante de 4.800.000$00,
datado de 30 de Março de 2000 - J).

Depositado o cheque, no Banco Bilbao Vizcaya, mediante
ordem do réu, foi recusado o seu pagamento, em 3 de Abril de 2000, pela
entidade sacada, com fundamento em "Cheque revogado por falta
ou vício na formação da vontade", devolvido ao Serviço de
Compensação do Banco de Portugal, em 4 de Abril de 2000 e,
posteriormente, ao titular da conta onde fora depositado - L).

Em princípios de Janeiro de 2000, através de anúncio
publicado, no "Diário de Aveiro", o réu teve conhecimento do
referido negócio, que estava a ser mediado, pela “Ideia 4 - Sociedade ……, Ldª”, com local de atendimento,
na Rua Direita……… - 3°.

De imediato, o réu encarregou a sua irmã ……. de averiguar
o estado do imóvel e as condições de venda - 4°.

Em dia do mês de Janeiro de 2000, anterior ao dia 15, a
referida ….. deslocou-se à sociedade de mediação,
mencionada na resposta ao ponto nº 3 - 5°.

Aí sendo atendida, por um funcionário, que dizia chamar-se
Virgílio, que a acompanhou ao referido apartamento – 6º.

O funcionário da sociedade mediadora informou-a de que o
preço era abaixo do corrente no mercado, sendo que os
proprietários da fracção estavam dispostos a vender pelo preço de 19.800.000$00 - 7°.

O réu, ao tomar conhecimento das condições de venda, de
imediato, informou a imobiliária do seu desejo de adquirir o
apartamento - 8°.

Cerca de 15 dias após o primeiro contacto e, por ter sido
necessária a consulta à entidade bancária financiadora da
aquisição, a “Ideia-4” apresentou ao réu o contrato, mencionado em D), já subscrito pela autora, pessoa que o réu não conhece,
nem nunca viu - 9°.

Apondo o réu a sua assinatura, em 5 de Fevereiro de
2002 - 10°.

A "Imobiliária", dois ou três dias antes da escritura do
contrato prometido, exigiu a emissão do cheque de folhas 9 dos
autos, com o propósito de ser apresentado a pagamento, após a
celebração da escritura de compra e venda - 11°.

No acto da escritura de compra e venda, o identificado D….. mostrou-se surpreendido, aquando da
sua leitura, ao ser confrontado com o preço de 19.800.000$00, que
não correspondia ao contratado – 12
º.

E manifestou a vontade de não assinar a escritura, nestas
condições - 13°.

Os representantes da “Ideia 4”, presentes na outorga da
escritura, para vencer a resistência do vendedor, deram-lhe garantias de que as contas seriam feitas, de
acordo com o preço declarado - 14°.

Pelo que se concretizou a escritura – 15º.

De seguida, o vendedor apresentou-se, nas instalações da
”Ideia 4”, sendo atendido, por um tal ….., que se recusou a
rever e a aceitar as contas, com base no preço referido de 19.800.000$00 - 16°.

O réu foi, então, abordado, no dia 31 de Março de 2002, pelo
D….., que se queixou da “Ideia 4”, dizendo que tinha sido
burlado por ela, prejudicando-o no preço do apartamento - 17°.

Esclareceu, então, o referido D....que o preço
estabelecido para a venda tinha sido de 16.500.000$00, por não ter
aparecido proposta melhor, segundo os representantes da “Ideia 4” – 18
º.

O D....era, totalmente, desconhecedor dos preços
de mercado dos imóveis - 19°.

Nestas circunstâncias, ordenou a sua mãe, R……, que assinasse o contrato-promessa de venda, junto aos
autos, subscrito pela Miriam, e recebesse o respectivo sinal - 20°.

Esta é doente e, também, desconhecedora dos ditos preços – 21º.

Em 7 ou 8 de Fevereiro, a referida R……assinou o contrato-promessa e recebeu de F....dois
cheques, um, no valor de 500.000$00, sacado sobre o Banco Bilbao e
Vizcaya, e outro de 1.000.000$00, sacado sobre o Banco Nacional
Ultramarino, relativos a contas pessoais daquele – 22
º.

Este F....identificava-se como sendo gerente
da “Ideia 4” - 23°.

A autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento – 24º.

O seu nome e assinatura foram utilizados, pelo dito Pinto Cardoso, que, na posse dos conhecimentos que lhe advêm do cargo
que desempenha na “Ideia 4”, viu a possibilidade de obter lucros na
transacção do dito imóvel - 25°.

O réu, porque acreditou na versão do proprietário João
Eduardo, deu instruções ao Banco para não pagar o cheque de
4.800.000$00 - 27°.
                                                               *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da violação da ordem pública e do abuso de direito.

II – A questão da litigância de má fé.

            I. DA ORDEM PÚBLICA E DO ABUSO DE DIREITO

A autora pede a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 4.800.000$00 (23.942,30€), proveniente do incumprimento, por parte deste, de um contrato-promessa de cessão da posição contratual, por sua vez, enxertado num contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, em que aquela era promitente compradora, mas cuja posição cedeu a este último, sendo certo que a autora pagou, a título de sinal, alusivo ao contrato-promessa de compra e venda, a importância de 1.500.000$00.

O contrato-promessa, a que mais, explicitamente, se poderia chamar contrato-promessa de contratar, consiste na convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam a celebrar determinado contrato, a que se dá o nome genérico de contrato prometido, que assumem uma obrigação que tem por objecto uma prestação de facto positivo, isto é, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido[1].

A cessão da posição contratual, consagrada pelo artigo 424º, nº 1, do Código Civil (CC), constitui o meio dirigido à circulação da relação contratual, isto é, à transferência, «ex negotio», por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cedido), para um terceiro (cessionário), do complexo das posições activas e passivas criadas por um contrato.

O efeito típico principal desta cessão de contrato consiste na transferência da posição contratual, com a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, passando todas as situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, a figurar na titularidade do cessionário[2].

Este instituto implica sempre a existência de dois contratos distintos, ou seja, o contrato inicial ou básico, celebrado, originariamente, entre o cedente e o cedido, de que resulta o conjunto de direitos e obrigações que constitui o objecto da cessão, e o contrato-instrumento da cessão, que é realizado, posteriormente, entre o cessionário e o cedente, para a transmissão da posição que este último tinha no contrato-base[3].

Regressando ao caso decidendo, numa síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que a autora declarou prometer comprar a C....e marido, D...., que, por seu turno, declararam prometer vender aquela ou à pessoa por si indicada, a fracção autónoma em análise, mediante o preço acordado de 16.500.000$00, tendo, na ocasião, pago aos promitentes vendedores, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.500.000$00, sendo que a restante parte do preço da prometida compra e venda, no montante de 15.000.000$00, deveria ser paga, no acto da escritura notarial de compra e venda.

Porém, a autora prometeu ainda ceder ao réu, e este, por seu turno, prometeu adquirir-lhe, pelo preço de 4.800.000$00, a posição contratual que aquela detinha no supraidentificado contrato-promessa de compra e venda, sendo certo que, dos termos do contrato-promessa de cessão da posição contratual, resulta o acordo no sentido de que, até à data da escritura de compra e venda, a celebrar entre o réu e os promitentes vendedores da fracção, aquele pagaria à autora a restante parte do preço da prometida cessão de posição contratual, no valor de 1.500.000$00, o que não se verificou, tal como aconteceu com a importância de 3.300.000$00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço da prometida cessão, e bem assim como que a importância a pagar pelo réu aos vendedores da fracção, no acto da escritura notarial, seria de 15.000.000$00, que acresceria ao valor do sinal, já pago pela autora, perfazendo-se 16.500.000$00, ou seja, o preço acordado para a prometida venda.

Mas, porque nada foi pago à autora, relativamente ao
preço da prometida cessão de posição contratual, nos prazos
fixados, foi acordado, verbalmente, entre autora e réu, que a totalidade de tal preço seria paga, de uma só vez, na data da celebração da escritura de compra e venda, que veio a ocorrer, entre os promitentes vendedores e o promitente comprador, em 30 de Março de 2000.

Efectivamente, o réu, em cumprimento do que acordara com a autora, para pagamento do preço da cessão da posição contratual, fez-lhe entrega de um cheque, no montante de 4.800.000$00, mas cujo pagamento foi recusado, por ordem do mesmo, pela entidade bancária sacada, com fundamento em "cheque revogado por falta ou vício na formação da vontade”, por ter acreditado na versão do promitente vendedor, segundo a qual este teria sido burlado no preço da venda do apartamento.

Assim sendo, ficou provado que o réu não pagou à autora a contrapartida de 4.800.000$00, pela posição de cessionário no contrato que esta operou em seu favor, independentemente de se ter demonstrado que apenas pagou aos promitentes vendedores cedidos a quantia de 15.000.000$00, e não o montante de 1.500.000$00, respeitante ao sinal entregue a estes últimos pela cedente, mas que esta não reclama, na presente acção.

Por isso, tudo está em saber se a autora tem direito a exigir do réu o quantitativo de 4.800.000$00, pela contrapartida não satisfeita da cessão da posição contratual no contrato-promessa de compra e venda, ou antes, como sustenta a sentença recorrida, que julgou nulo o contrato-promessa de cessão da posição contratual, por contrário à ordem pública.

Estipula o artigo 280º, nº 2, do CC, que “é nulo o negócio jurídico contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”, enquanto que o artigo 334º, do mesmo diploma legal, define o abuso de direito, quando for ilegítimo o seu exercício, em virtude de o titular exceder, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Neste particular, ficou demonstrado que a autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento, apondo o seu nome e assinatura nos contratos-promessa, por iniciativa de E...., que, na posse dos conhecimentos que lhe advêm do cargo que desempenhava na aludida entidade imobiliária, “Ideia 4”, pois que se identificava como seu gerente, viu, por essa via, a possibilidade de obtenção de lucros com a transacção do aludido imóvel.

Efectivamente, tendo-se convencionado no contrato-promessa o preço de 16500000$00 pela compra e venda do imóvel objecto do contrato prometido, e que seria o valor a receber pelos promitentes vendedores, a autora, por força da promessa de cessão da posição contratual, receberia a contrapartida de 4.800.000$00, o que, à partida, é lícito, ao abrigo do princípio da liberdade negocial, consagrado pelo artigo 405º, nº 1, do CC.

Subsiste, porém, uma dificuldade que consiste no facto de a empresa de intermediação imobiliária que presidiu à elaboração de ambos os contratos se ter servido da pessoa de E...., o qual, na posse dos conhecimentos que lhe advinham do cargo que nela desempenhava, sendo certo que se identificava como sendo gerente da mesma, embora este estatuto se não tenha provado, concebeu o esquema de poder alcançar ganhos com a transacção daquela fracção autónoma.

Dispõe, a este propósito, o artigo 18°, n°2, b), do Regime Jurídico das Sociedades de Mediação Imobiliária, aprovado pelo DL nº 77/99, de 16 de Março, que “está expressamente vedado às empresas: intervir como parte interessada em negócio cujo objecto coincida com o objecto material do contrato de mediação do qual seja parte, nomeadamente comprar ou constituir outros direitos reais, arrendar e tomar de trespasse, para si ou sociedade de que sejam sócias, bem como para os seus sócios, administradores ou gerentes e seus cônjuges e descendentes e ascendentes do 1.º grau...”.

Porém, não ficou provada a qualidade de sócio, administrador ou gerente do referido E...., na empresa de intermediação imobiliária em causa, bem podendo tratar-se de um dos seus funcionários, uma vez que se demonstrou que desempenhava um cargo na mesma, sendo certo que o campo de previsão da norma, acabada de transcrever, apenas tipifica como susceptíveis de preencher a violação dos seus comandos, a qualidade de sócio, administrador ou gerente ou seus cônjuges, descendentes e ascendentes do 1º grau.

E, tratando-se de uma norma de natureza excepcional, por oposição às normas gerais, por regular um sector restrito de relações com uma configuração especial, consagrando, para o efeito, uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele sector de relações[4], não comporta aplicação analógica, embora admita interpretação extensiva, em conformidade com o disposto pelo artigo 11º, do CC.

Porém, no caso das normas excepcionais, a interpretação extensiva só é possível quando o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos pelo artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, tendo-se o legislador, ao formular a norma, exprimido, restritivamente, dizendo menos do que queria (minus dixit quam voluit), sendo, por isso, necessário alargar o respectivo texto.

Não foi este, manifestamente, o propósito do legislador que distinguiu, perfeitamente, o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, não generalizando o seu universo, antes o circunscrevendo ao núcleo mais forte e, potencialmente, mais desencadeador dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida.

Por outro lado, a obtenção de lucros, por parte dos promitentes compradores que apenas figuram no contrato-promessa, se e enquanto não indicarem a pessoa do comprador efectivo no contrato prometido, como, expressamente, foi previsto naquele, é uma realidade relativamente vulgar, como forma de realizar investimentos rápidos e de remuneração bem sucedida.

A isto acresce que o contrato-promessa, incluindo as condições que do mesmo ficaram a constar, foi celebrado entre a autora, como promitente compradora, e a procuradora dos promitentes vendedores, Rosa Nunes da
Rocha
, que ficou ciente do preço acordado, sendo certo que, no próprio acto, recebeu a quantia alusiva ao sinal, bem podendo a remuneração acrescida que o promitente comprador convencionou com o cessionário, vir a acontecer, mesmo sem a celebração do contrato-promessa de cessão da posição contratual.

Para tanto, bastava que, no acto da celebração da escritura pública respeitante ao contrato prometido, acabasse por aparecer o réu, saindo de cena a autora, promitente compradora, porquanto o contrato-promessa de compra e venda previa a possibilidade de aquela indicar outra pessoa como compradora, recebendo a remuneração suplementar que o negócio lhe permitisse obter, consoante o preço final acordado para o contrato prometido.

O réu sabia, aliás, que tinha que pagar o preço da intervenção de um terceiro no circuito comercial, por assim dizer, um parasita, que nada acrescentava ao produto final do bem, mas apenas fazia aumentar o seu preço, porquanto estava obrigado a pagar o preço da compra e venda do imóvel aos vendedores e o preço da intermediação do cedente da posição contratual, sem a qual o negócio se não concretizaria.

Com efeito, quando o réu foi informado, por um funcionário da sociedade mediadora, de que os proprietários da fracção estavam dispostos a vendê-la, pelo preço de 19.800.000$00, comunicou-lhe, de imediato, o seu desejo de a adquirir.

Sabia, assim, o réu de todos os meandros do negócio, designadamente, o preço final da fracção autónoma, ainda que o mesmo fosse decomposto em dois segmentos, um deles, no montante de 16500000$00, para os vendedores, e o outro, no quantitativo de 4.800.000$00, como contrapartida da autora cedente.

Pelo exposto, não se afigura, com o devido respeito, que os contratos-promessa celebrados e que se discutem nos autos, violem os princípios da ordem pública ou representem um manifesto excesso do exercício, pela autora, dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Aliás, o abuso de direito verifica-se quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite.

Consequentemente, não se tendo provado que a autora tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ou tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, não incorreu em litigância de má fé, razão pela qual se não mantém a condenação em multa, como decorre da sentença recorrida.

Por outro lado, a autora foi confrontada com o efeito surpresa resultante da condenação em multa, a título de litigância de má fé, pela sentença recorrida.

Com efeito, as normas contidas no artigo 456º, nºs 1 e 2, do CPC, não são inconstitucionais, na parte relativa à condenação em multa, por litigância de má fé, desde que interpretadas no sentido de tal condenação estar condicionada pela prévia audição dos interessados que com a mesma possam vir a ser atingidos.

No caso em análise, a autora não foi ouvida sobre a sua hipotética condenação como litigante de má fé, quer porque o Exº Juiz, oficiosamente, não tomou essa iniciativa, antes de decidir, quer porque, igualmente, o réu, no articulado da contestação, ou, subsequentemente, não deduziu o pedido de condenação daquela em litigância de má fé.

Porém, o regime instituído com as apontadas normas, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa, por litigância de má fé, não pressupor a prévia audição do interessado, em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, ofende o princípio constitucional fundamental do acesso aos Tribunais, que tem implícita a proibição da indefesa, de modo a evitar que o mesmo seja confrontado com uma decisão condenatória, cujos fundamentos, de facto e de direito, não teve oportunidade de contraditar, em homenagem ao princípio da igualdade das partes, bem explicitado no artigo 3º, nºs 2 e 3, do CPC[5].

A prévia audição dos interessados condiciona a condenação, por litigância de má fé, revelando-se, assim, indispensável ao exercício do princípio do contraditório, que se encontra ao serviço do princípio da igualdade das partes, segundo o qual cada uma destas é chamada a deduzir as suas razões, de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras[6], condição «sine qua non» do cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões que constituam uma verdadeira surpresa, em violação do estipulado no artigo 18º, da Constituição da República.

Ora, tendo-se omitido a indispensável audição prévia da autora, cometeu-se a nulidade a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do CPC, com reflexos na decisão da causa, face à preterição do direito de defesa da imputação, por parte daquela, o que sempre importaria a anulação da sentença recorrida, na parte em que foi condenada como litigante de má fé.

Nesta conformidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 424º e seguintes, 405º, nº 1, 406º, nº 1, 762º, nº 1, 804º, nº 1, 805º, nºs 1 e 2, a) e 559º, nº 1, todos do CC, e 456º, nºs 1 e 2, do CPC, condena-se o réu a pagar à autora a quantia de 23.942,30€, acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000 e até integral cumprimento, absolvendo-se a autora da condenação em litigância de má-fé.

                                                     *

CONCLUSÕES:

I – A admissibilidade da interpretação extensiva das normas de natureza excepcional, restringe-se à situação em que o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos no artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas que o legislador, ao formular a norma, exprimiu-se, restritivamente, dizendo menos do que queria.

II – Não é sustentável afirmar-se que o legislador não soube distinguir o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, potencialmente, alvo dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, que se podem estabelecer entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida, a ponto de ser necessário generalizar o seu universo.

III – Ocorre a situação do abuso de direito quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite.

IV - A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, por litigância de má fé, condiciona a respectiva condenação,  revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, condenando o réu a pagar à autora a quantia de 23.942,30€, acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000 e até integral cumprimento, e absolvendo a autora da condenação em litigância de má-fé.

                                                      *

 

Custas, a cargo do réu.


[1] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 211; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, 2006, 379 a 383; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 101 e 102; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1986, reimpressão, I, 453 a 455, 480 e 481.
[2] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, 72 e 450.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 347 e nota 2.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 6ª edição, revista e ampliada, 1965, 76. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 1983, 95.
[5] TC, Acórdão nº 440/94, DR, II série, nº 202, de 1 de Setembro de 1994; Acórdão nº 103/95, DR, II série, nº 138, de 17 de Junho de 1995; e Acórdão nº 357/98, de 12 de Maio de 1998, in http://www.tribunalconstitucional.pt
[6] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 377.