Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HELDER ROQUE | ||
Descritores: | INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA ABUSO DE DIREITO NULIDADE | ||
Data do Acordão: | 04/22/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 9.º; 11.º ; 280.º; 424º;405º, Nº 1, 406º, Nº 1, 762º, Nº 1, 804º, Nº 1, 805º, NºS 1 E 2, A) E 559º, Nº 1, DO CÓDIGO CIVIL. ARTIGOS 456º, NºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. | ||
Sumário: | 1. A admissibilidade da interpretação extensiva das normas de natureza excepcional, restringe-se à situação em que o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos no artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas que o legislador, ao formular a norma, exprimiu-se, restritivamente, dizendo menos do que queria. 2. Não é sustentável afirmar-se que o legislador não soube distinguir o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, potencialmente, alvo dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, que se podem estabelecer entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida, a ponto de ser necessário generalizar o seu universo. 3. Ocorre a situação do abuso de direito quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite. 4. A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, por litigância de má fé, condiciona a respectiva condenação, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA: A...., residente em ….., propôs a presente acção, com processo ordinário, contra B...., residente em ….., pedindo que, na sua procedência, este seja condenado a pagar à autora a quantia de 4.800.000$00 (23.942,30€), acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000, alegando, para o efeito, e, em suma, que, por contrato-promessa de compra e venda, celebrado por escrito particular, em 4 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu comprar a C....e marido, D...., e estes prometeram vender aquela ou a pessoa por si indicada, a fracção autónoma, infradiscriminada, pelo preço acordado de 16.500.000$00, tendo entregue, no acto da assinatura do contrato, aos promitentes vendedores, a título de sinal e princípio de cumprimento, a importância de 1.500.000$00, devendo a restante parte do preço ser paga, no acto da escritura. Por seu turno, continua a autora, mediante contrato-promessa de cessão de posição contratual, celebrado por escrito particular, em 5 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu ceder ao réu e este prometeu adquirir-lhe, por 4.800.000$00, a posição contratual que ela detinha no aludido contrato-promessa de compra e venda, declarando a autora ter recebido, a título de sinal e princípio de pagamento, do preço da prometida cessão, a quantia de 3.300.000$00, mas que, de facto, não foi paga, acordando ainda, no contrato-promessa de cessão, que, até à data da escritura de compra e venda, a celebrar entre o réu e os promitentes vendedores da fracção, aquele pagaria à autora a restante parte do preço, o que não se verificou, e que a importância a pagar pelo réu aos vendedores da fracção, no acto da escritura notarial, seria de 15.000.000$00, que acresceria ao valor do sinal já pago pela autora e, por fim, foi acordado, verbalmente, entre autora e réu, que a totalidade de tal preço seria paga, de uma só vez, na data da celebração da escritura de compra e venda. A escritura outorgada entre os vendedores e o réu celebrou-se, em 30 de Março de 2000, e, na mesma altura, este entregou à autora, para pagamento do preço da cessão, um cheque, no montante de 4.800.000$00, que esta depositou, mas cujo pagamento foi recusado, em 3 de Abril de 2000, pela entidade bancária sacada, com fundamento em "cheque revogado por falta ou vício na formação da vontade", devolvido ao Serviço de Compensação do Banco de Portugal, em 4 de Abril de 2000, e, posteriormente, ao titular da conta onde fora depositado. Na contestação, o réu alega, em síntese, que a “Ideia-4”, que mediava o negócio, apresentou-lhe o contrato-promessa de cessão da posição contratual, já subscrito pela autora, informando-o que o preço do negócio era o de 19.800.000$00, apondo o réu a sua assinatura, em 5 de Fevereiro de 2002, mas não tendo entregue 3.300000$00, a título de sinal, nem 1.500000$00, conforme o que resultava do seu teor. A “Ideia-4”, antes da celebração da escritura respeitante ao contrato prometido, agendada para 30 de Março de 2000, exigiu a emissão do cheque de 4.800.000$00, já referido, a fim de ser apresentado a pagamento, após a celebração da dita escritura, tendo o réu, posteriormente, ordenado à Caixa Geral de Depósitos para não proceder ao seu pagamento, alegando “falta ou vício na formação da vontade”. Aquando da outorga da escritura, o vendedor mostrou-se surpreendido com preço, que não correspondia ao contratado, e manifestou a vontade de a não assinar, tendo os representantes da “Ideia-4” garantido que as contas seriam feitas, de acordo com o preço declarado, concretizando-se, então, a escritura, mas recusando-se, depois, a rever e a aceitar as contas com base no preço de 19.800.000$00. Que a autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento, tendo o seu nome e assinatura sido utilizados, por E...., seu pai, que, na posse dos conhecimentos que lhe advinham do cargo que desempenha, na “Ideia 4”, viu a possibilidade de obter lucros na transacção do imóvel, sendo certo que o contrato assinado pela autora só foi efectuado para proporcionar aquele os aludidos ganhos, em prejuízo dos proprietários do apartamento. Considerando que eram os proprietários do apartamento e não a autora quem tinha que receber o preço de 19.800.000$00, o réu assumiu a obrigação de lhes pagar a quantia de 3.300.000$00, para perfazer aquela importância, o que veio a cumpriu, alguns dias depois. Finalmente, alega a nulidade decorrente do disposto no artigo 18°, n°2, b), do Regime Jurídico das Sociedades de Mediação Imobiliária, aprovado pelo DL nº 77/99, de 16 de Março, concluindo pela improcedência da acção. A sentença julgou nulo o contrato-promessa de cessão da posição contratual, a que aludem os artigos 4º e seguintes dos factos provados, e, em consequência, na improcedência da acção que a autora instaurou contra o réu, absolveu-o do pedido contra si formulado, condenando, porém, a autora como litigante de má fé, numa multa de seis UC’s. Com a assinatura do dito contrato, a autora pagou aos Mais foi acordado, no identificado contrato-promessa de compra e venda, que a fracção seria vendida à autora A.... ou a pessoa por si indicada – C). Mediante contrato-promessa de cessão da posição contratual, celebrado por escrito particular, em 5 de Fevereiro de 2000, a autora prometeu ceder ao réu, e este, por seu turno, prometeu adquirir-lhe, pelo preço de 4.800.000$00, a posição contratual que ela detinha no identificado contrato-promessa de compra e venda - D). De acordo com a cláusula terceira deste identificado Mais se acordou, no contrato-promessa de cessão da posição Igualmente se estabeleceu, no contrato-promessa de cessão Porque nada tivesse sido pago à autora, relativamente ao A escritura notarial de compra e venda da identificada O réu, em cumprimento do que acordara com a autora, para Depositado o cheque, no Banco Bilbao Vizcaya, mediante Em princípios de Janeiro de 2000, através de anúncio De imediato, o réu encarregou a sua irmã ……. de averiguar Em dia do mês de Janeiro de 2000, anterior ao dia 15, a Aí sendo atendida, por um funcionário, que dizia chamar-se O funcionário da sociedade mediadora informou-a de que o O réu, ao tomar conhecimento das condições de venda, de Cerca de 15 dias após o primeiro contacto e, por ter sido Apondo o réu a sua assinatura, em 5 de Fevereiro de A "Imobiliária", dois ou três dias antes da escritura do No acto da escritura de compra e venda, o identificado D….. mostrou-se surpreendido, aquando da E manifestou a vontade de não assinar a escritura, nestas Os representantes da “Ideia 4”, presentes na outorga da Pelo que se concretizou a escritura – 15º. De seguida, o vendedor apresentou-se, nas instalações da O réu foi, então, abordado, no dia 31 de Março de 2002, pelo Esclareceu, então, o referido D....que o preço O D....era, totalmente, desconhecedor dos preços Nestas circunstâncias, ordenou a sua mãe, R……, que assinasse o contrato-promessa de venda, junto aos Esta é doente e, também, desconhecedora dos ditos preços – 21º. Em 7 ou 8 de Fevereiro, a referida R……assinou o contrato-promessa e recebeu de F....dois Este F....identificava-se como sendo gerente A autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento – 24º. O seu nome e assinatura foram utilizados, pelo dito Pinto Cardoso, que, na posse dos conhecimentos que lhe advêm do cargo O réu, porque acreditou na versão do proprietário João Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir. As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes: I – A questão da violação da ordem pública e do abuso de direito. II – A questão da litigância de má fé.
I. DA ORDEM PÚBLICA E DO ABUSO DE DIREITO
A autora pede a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 4.800.000$00 (23.942,30€), proveniente do incumprimento, por parte deste, de um contrato-promessa de cessão da posição contratual, por sua vez, enxertado num contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, em que aquela era promitente compradora, mas cuja posição cedeu a este último, sendo certo que a autora pagou, a título de sinal, alusivo ao contrato-promessa de compra e venda, a importância de 1.500.000$00. O contrato-promessa, a que mais, explicitamente, se poderia chamar contrato-promessa de contratar, consiste na convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam a celebrar determinado contrato, a que se dá o nome genérico de contrato prometido, que assumem uma obrigação que tem por objecto uma prestação de facto positivo, isto é, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido[1]. A cessão da posição contratual, consagrada pelo artigo 424º, nº 1, do Código Civil (CC), constitui o meio dirigido à circulação da relação contratual, isto é, à transferência, «ex negotio», por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cedido), para um terceiro (cessionário), do complexo das posições activas e passivas criadas por um contrato. O efeito típico principal desta cessão de contrato consiste na transferência da posição contratual, com a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, passando todas as situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, a figurar na titularidade do cessionário[2]. Este instituto implica sempre a existência de dois contratos distintos, ou seja, o contrato inicial ou básico, celebrado, originariamente, entre o cedente e o cedido, de que resulta o conjunto de direitos e obrigações que constitui o objecto da cessão, e o contrato-instrumento da cessão, que é realizado, posteriormente, entre o cessionário e o cedente, para a transmissão da posição que este último tinha no contrato-base[3]. Regressando ao caso decidendo, numa síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que a autora declarou prometer comprar a C....e marido, D...., que, por seu turno, declararam prometer vender aquela ou à pessoa por si indicada, a fracção autónoma em análise, mediante o preço acordado de 16.500.000$00, tendo, na ocasião, pago aos promitentes vendedores, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.500.000$00, sendo que a restante parte do preço da prometida compra e venda, no montante de 15.000.000$00, deveria ser paga, no acto da escritura notarial de compra e venda. Porém, a autora prometeu ainda ceder ao réu, e este, por seu turno, prometeu adquirir-lhe, pelo preço de 4.800.000$00, a posição contratual que aquela detinha no supraidentificado contrato-promessa de compra e venda, sendo certo que, dos termos do contrato-promessa de cessão da posição contratual, resulta o acordo no sentido de que, até à data da escritura de compra e venda, a celebrar entre o réu e os promitentes vendedores da fracção, aquele pagaria à autora a restante parte do preço da prometida cessão de posição contratual, no valor de 1.500.000$00, o que não se verificou, tal como aconteceu com a importância de 3.300.000$00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço da prometida cessão, e bem assim como que a importância a pagar pelo réu aos vendedores da fracção, no acto da escritura notarial, seria de 15.000.000$00, que acresceria ao valor do sinal, já pago pela autora, perfazendo-se 16.500.000$00, ou seja, o preço acordado para a prometida venda. Mas, porque nada foi pago à autora, relativamente ao Efectivamente, o réu, em cumprimento do que acordara com a autora, para pagamento do preço da cessão da posição contratual, fez-lhe entrega de um cheque, no montante de 4.800.000$00, mas cujo pagamento foi recusado, por ordem do mesmo, pela entidade bancária sacada, com fundamento em "cheque revogado por falta ou vício na formação da vontade”, por ter acreditado na versão do promitente vendedor, segundo a qual este teria sido burlado no preço da venda do apartamento. Assim sendo, ficou provado que o réu não pagou à autora a contrapartida de 4.800.000$00, pela posição de cessionário no contrato que esta operou em seu favor, independentemente de se ter demonstrado que apenas pagou aos promitentes vendedores cedidos a quantia de 15.000.000$00, e não o montante de 1.500.000$00, respeitante ao sinal entregue a estes últimos pela cedente, mas que esta não reclama, na presente acção. Por isso, tudo está em saber se a autora tem direito a exigir do réu o quantitativo de 4.800.000$00, pela contrapartida não satisfeita da cessão da posição contratual no contrato-promessa de compra e venda, ou antes, como sustenta a sentença recorrida, que julgou nulo o contrato-promessa de cessão da posição contratual, por contrário à ordem pública. Estipula o artigo 280º, nº 2, do CC, que “é nulo o negócio jurídico contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”, enquanto que o artigo 334º, do mesmo diploma legal, define o abuso de direito, quando for ilegítimo o seu exercício, em virtude de o titular exceder, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Neste particular, ficou demonstrado que a autora jamais teve a intenção de adquirir o apartamento, apondo o seu nome e assinatura nos contratos-promessa, por iniciativa de E...., que, na posse dos conhecimentos que lhe advêm do cargo que desempenhava na aludida entidade imobiliária, “Ideia 4”, pois que se identificava como seu gerente, viu, por essa via, a possibilidade de obtenção de lucros com a transacção do aludido imóvel. Efectivamente, tendo-se convencionado no contrato-promessa o preço de 16500000$00 pela compra e venda do imóvel objecto do contrato prometido, e que seria o valor a receber pelos promitentes vendedores, a autora, por força da promessa de cessão da posição contratual, receberia a contrapartida de 4.800.000$00, o que, à partida, é lícito, ao abrigo do princípio da liberdade negocial, consagrado pelo artigo 405º, nº 1, do CC. Subsiste, porém, uma dificuldade que consiste no facto de a empresa de intermediação imobiliária que presidiu à elaboração de ambos os contratos se ter servido da pessoa de E...., o qual, na posse dos conhecimentos que lhe advinham do cargo que nela desempenhava, sendo certo que se identificava como sendo gerente da mesma, embora este estatuto se não tenha provado, concebeu o esquema de poder alcançar ganhos com a transacção daquela fracção autónoma. Dispõe, a este propósito, o artigo 18°, n°2, b), do Regime Jurídico das Sociedades de Mediação Imobiliária, aprovado pelo DL nº 77/99, de 16 de Março, que “está expressamente vedado às empresas: intervir como parte interessada em negócio cujo objecto coincida com o objecto material do contrato de mediação do qual seja parte, nomeadamente comprar ou constituir outros direitos reais, arrendar e tomar de trespasse, para si ou sociedade de que sejam sócias, bem como para os seus sócios, administradores ou gerentes e seus cônjuges e descendentes e ascendentes do 1.º grau...”. Porém, não ficou provada a qualidade de sócio, administrador ou gerente do referido E...., na empresa de intermediação imobiliária em causa, bem podendo tratar-se de um dos seus funcionários, uma vez que se demonstrou que desempenhava um cargo na mesma, sendo certo que o campo de previsão da norma, acabada de transcrever, apenas tipifica como susceptíveis de preencher a violação dos seus comandos, a qualidade de sócio, administrador ou gerente ou seus cônjuges, descendentes e ascendentes do 1º grau. E, tratando-se de uma norma de natureza excepcional, por oposição às normas gerais, por regular um sector restrito de relações com uma configuração especial, consagrando, para o efeito, uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele sector de relações[4], não comporta aplicação analógica, embora admita interpretação extensiva, em conformidade com o disposto pelo artigo 11º, do CC. Porém, no caso das normas excepcionais, a interpretação extensiva só é possível quando o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos pelo artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, tendo-se o legislador, ao formular a norma, exprimido, restritivamente, dizendo menos do que queria (minus dixit quam voluit), sendo, por isso, necessário alargar o respectivo texto. Não foi este, manifestamente, o propósito do legislador que distinguiu, perfeitamente, o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, não generalizando o seu universo, antes o circunscrevendo ao núcleo mais forte e, potencialmente, mais desencadeador dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida. Por outro lado, a obtenção de lucros, por parte dos promitentes compradores que apenas figuram no contrato-promessa, se e enquanto não indicarem a pessoa do comprador efectivo no contrato prometido, como, expressamente, foi previsto naquele, é uma realidade relativamente vulgar, como forma de realizar investimentos rápidos e de remuneração bem sucedida. A isto acresce que o contrato-promessa, incluindo as condições que do mesmo ficaram a constar, foi celebrado entre a autora, como promitente compradora, e a procuradora dos promitentes vendedores, Rosa Nunes da Para tanto, bastava que, no acto da celebração da escritura pública respeitante ao contrato prometido, acabasse por aparecer o réu, saindo de cena a autora, promitente compradora, porquanto o contrato-promessa de compra e venda previa a possibilidade de aquela indicar outra pessoa como compradora, recebendo a remuneração suplementar que o negócio lhe permitisse obter, consoante o preço final acordado para o contrato prometido. O réu sabia, aliás, que tinha que pagar o preço da intervenção de um terceiro no circuito comercial, por assim dizer, um parasita, que nada acrescentava ao produto final do bem, mas apenas fazia aumentar o seu preço, porquanto estava obrigado a pagar o preço da compra e venda do imóvel aos vendedores e o preço da intermediação do cedente da posição contratual, sem a qual o negócio se não concretizaria. Com efeito, quando o réu foi informado, por um funcionário da sociedade mediadora, de que os proprietários da fracção estavam dispostos a vendê-la, pelo preço de 19.800.000$00, comunicou-lhe, de imediato, o seu desejo de a adquirir. Sabia, assim, o réu de todos os meandros do negócio, designadamente, o preço final da fracção autónoma, ainda que o mesmo fosse decomposto em dois segmentos, um deles, no montante de 16500000$00, para os vendedores, e o outro, no quantitativo de 4.800.000$00, como contrapartida da autora cedente. Pelo exposto, não se afigura, com o devido respeito, que os contratos-promessa celebrados e que se discutem nos autos, violem os princípios da ordem pública ou representem um manifesto excesso do exercício, pela autora, dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Aliás, o abuso de direito verifica-se quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite. Consequentemente, não se tendo provado que a autora tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ou tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, não incorreu em litigância de má fé, razão pela qual se não mantém a condenação em multa, como decorre da sentença recorrida. Por outro lado, a autora foi confrontada com o efeito surpresa resultante da condenação em multa, a título de litigância de má fé, pela sentença recorrida. Com efeito, as normas contidas no artigo 456º, nºs 1 e 2, do CPC, não são inconstitucionais, na parte relativa à condenação em multa, por litigância de má fé, desde que interpretadas no sentido de tal condenação estar condicionada pela prévia audição dos interessados que com a mesma possam vir a ser atingidos. No caso em análise, a autora não foi ouvida sobre a sua hipotética condenação como litigante de má fé, quer porque o Exº Juiz, oficiosamente, não tomou essa iniciativa, antes de decidir, quer porque, igualmente, o réu, no articulado da contestação, ou, subsequentemente, não deduziu o pedido de condenação daquela em litigância de má fé. Porém, o regime instituído com as apontadas normas, quando interpretadas no sentido de a condenação em multa, por litigância de má fé, não pressupor a prévia audição do interessado, em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma anunciada e previsível condenação, ofende o princípio constitucional fundamental do acesso aos Tribunais, que tem implícita a proibição da indefesa, de modo a evitar que o mesmo seja confrontado com uma decisão condenatória, cujos fundamentos, de facto e de direito, não teve oportunidade de contraditar, em homenagem ao princípio da igualdade das partes, bem explicitado no artigo 3º, nºs 2 e 3, do CPC[5]. A prévia audição dos interessados condiciona a condenação, por litigância de má fé, revelando-se, assim, indispensável ao exercício do princípio do contraditório, que se encontra ao serviço do princípio da igualdade das partes, segundo o qual cada uma destas é chamada a deduzir as suas razões, de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras[6], condição «sine qua non» do cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões que constituam uma verdadeira surpresa, em violação do estipulado no artigo 18º, da Constituição da República. Ora, tendo-se omitido a indispensável audição prévia da autora, cometeu-se a nulidade a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do CPC, com reflexos na decisão da causa, face à preterição do direito de defesa da imputação, por parte daquela, o que sempre importaria a anulação da sentença recorrida, na parte em que foi condenada como litigante de má fé. Nesta conformidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 424º e seguintes, 405º, nº 1, 406º, nº 1, 762º, nº 1, 804º, nº 1, 805º, nºs 1 e 2, a) e 559º, nº 1, todos do CC, e 456º, nºs 1 e 2, do CPC, condena-se o réu a pagar à autora a quantia de 23.942,30€, acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000 e até integral cumprimento, absolvendo-se a autora da condenação em litigância de má-fé.
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CONCLUSÕES:
I – A admissibilidade da interpretação extensiva das normas de natureza excepcional, restringe-se à situação em que o intérprete, ao reconstituir a parte do texto da lei, segundo os critérios estabelecidos no artigo 9º, do CC, conclua pela certeza de que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas que o legislador, ao formular a norma, exprimiu-se, restritivamente, dizendo menos do que queria. II – Não é sustentável afirmar-se que o legislador não soube distinguir o campo dos agentes das empresas de intermediação imobiliária e seus familiares, potencialmente, alvo dos efeitos nocivos das ligações, nem sempre lineares, que se podem estabelecer entre a mediação imobiliária e os interesses particulares que patrocina e em que se acha envolvida, a ponto de ser necessário generalizar o seu universo. III – Ocorre a situação do abuso de direito quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas não já de uma cláusula contratual, livremente, aceite. IV - A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, por litigância de má fé, condiciona a respectiva condenação, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa.
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DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, condenando o réu a pagar à autora a quantia de 23.942,30€, acrescida de juros, à taxa legal, desde 30 de Março de 2000 e até integral cumprimento, e absolvendo a autora da condenação em litigância de má-fé.
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Custas, a cargo do réu.
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