Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
620/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESUNÇÃO LEGAL DE CULPA;
NEXO DE CAUSALIDADE ADEQUADA.
Data do Acordão: 09/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342º N.º1, 483º, 493º N.º 2, E 563º DO CC
Sumário: 1. A aplicação de herbicida pelo Réu, através de aspersão, consubstancia urna “actividade perigosa” dada a natureza tóxica do produto, sendo, por isso, aplicável norma do art. 493.º n.º 2 do CC, que estabelece urna presunção legal de culpa ( presunção juris tantum ).
2. Reclamando os Autores uma indemnização por danos alegadamente causados pela contaminação de ervas no seu terreno devida ao herbicida, as quais foram dadas de alimento a animais de raça bovina que adoeceram, competia-lhes provar o nexo de causalidade adequada entre a contaminação das ervas e a doença, como facto constitutivo do seu direito (art.342 n.º l do CC), já que a presunção de culpa não envolve qualquer presunção de causalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - Os Autores – A... e mulher B... – instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, acção declarativa, com forma de ordinário, contra os Réus – C... e mulher D....
Alegaram, em resumo:
Em Março de 1997, os Réus pulverizaram com herbicida uma propriedade contígua a um terreno onde os Autores procederam à colheita de erva para repasto ao seu gado bovino.
Os Réus não avisaram de tal facto os Autores e os seus animais, devido à ingestão das ervas, ficaram contaminados com o herbicida, produto tóxico, acabando por adoecerem tendo sido diagnosticada “ enterite hemorrágica “.
Foram sujeitas a tratamento, e para além da produção de leite, alguns deles ficaram estéreis.
Também a Autora esteve doente por ter ingerido leite produzido pelos animais intoxicados desta forma.
Em consequência sofreram prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.
Pediram a condenação dos Réus a pagarem-lhe, a título de indemnização, a quantia de 4.608.119$00, acrescida de juros de mora, desde a citação.
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
Por excepção, arguíram a ilegitimidade passiva da Ré mulher.
Por impugnação, alegaram que a doença dos animais não foi causada pela aplicação do herbicida.
Replicaram os Autores, contraditando a excepção dilatória.
No saneador julgou-se procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Ré mulher, absolvendo-se da instância, afirmando-se quanto ao mais a validade e regularidade da lide.
Por morte do Autor Manuel Oliveira da Silva, foral habilitados, para além da Autora, os filhos Ana Paula Melo Silva, Júlio Manuel Melo da Silva, Maria Cristina Melo da Silva e Dora Maria Melo da Silva ( fls.127 ).
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e absolver o Réu do pedido.
1.2. - Inconformada, a Autora MARIA DE LURDES BRANCO DE MELO interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º) - A Sentença proferida relativamente à matéria de facto enferma de deficiências e erros notórios que, dada a sua gravidade e relevância na apreciação das provas e na decisão final, importam, a anulação do julgamento (art. 712º, nº4, CPC):
A)- O Tribunal recorrido não deu resposta e omitiu o julgamento dos factos que vinham descritos no quesito 5 da Base Instrutória.
B)- A matéria constante do quesito 5 da Base Instrutória, além de ser determinante e essencial para uma correcta apreciação crítica e conjugação global de todos os factos - uma vez que estava ali em causa saber se o réu fez a aplicação do herbicida na data e no local onde a A. refere ter colhido a erva que deu aos animais - estava ainda dependente dos factos e da resposta a dar ao quesito 75 que remetia para o referido quesito 5.
C)- Os factos descritos na Sentença como constituindo a resposta ao quesito 75 (na parte em que remete para o prédio identificado no quesito 1, em vez de remeter para o prédio identificado no quesito 5, conforme se encontrava quesitado e foi julgado provado), está ferida de um erro notório e deixa transparecer a ideia de que os animais do réu também se alimentavam das mesmas ervas (sujeitas à acção do herbicida), que foram dadas aos animais da autora e que, apesar disso, não ficaram intoxicados.
D)- Tal erro de julgamento é deveras essencial para uma apreciação crítica e lógica e para a formação da convicção do julgador, tendo em conta uma apreciação global de todos os factos em discussão.
F)- A Sentença recorrida apresenta-se igualmente deficiente na descrição dos factos que correspondiam ao quesito 7 da Base Instrutória (cfr. ponto 7 de fls. 321 vº), em comparação com a resposta dada àquele quesito na decisão de fls. 316.
G)- Ao contrário do que se descreve no ponto 7 de fls. 321 vº, na resposta dada ao quesito 7 (fls 316), ficou bem vincada a ideia de que a autora colheu a erva potencialmente sujeita à acção do herbicida (conforme referido na al. A dos factos assentes e sua conjugação com a resposta dada ao quesito 8).
2º) - Os elementos de prova fornecidos pelo processo impunham uma decisão diferente nas respostas aos quesitos 15, 16, 17, 18, 20 e 75 da Base Instrutória, verificando-se, em tal matéria, um caso flagrante de errada apreciação e interpretação das provas produzidas que, fazendo fé na real existência de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, este Tribunal terá forçosamente que reparar, ao abrigo do disposto nos nºs. 2 e 3 do art. 712º do CPC.
A)- Admitindo desde logo, por mera hipótese, que este Tribunal não se decidia pela anulação do julgamento, dada a omissão de resposta ao quesito 5 da Base Instrutória, a resposta a dar a este quesito, face à confissão do réu de fls. 182, tinha que ser positiva.
B)- O quesito 15 merece uma resposta positiva, tendo em conta: os factos constantes da alínea A dos factos assentes e a resposta dada aos quesitos 7 e 8 (onde se refere que a A. colheu a erva junto à estrema e que o herbicida atingiu essa mesma erva); um exame crítico e seguindo um processo lógico e racional na apreciação das provas, nomeadamente pela resposta negativa aos quesitos 67 a 72 conjugado com o relatório da GNR junto a fls. 4 do processo apenso a estes autos; os depoimentos em sentido contrário das testemunhas ouvidas sobre a matéria.
C)- A matéria do quesito 16 também deve ser dada como provada por ser a única resposta lógica e aceitável perante os factos dados como provados nas respostas aos quesitos 9, 10, 12, 13 e 14 e a contradição daí derivada.
D)- Perante os factos dados como provados na alínea A dos factos assentes e as respostas aos quesitos 7 e 8, seguindo um critério e um raciocínio lógico, era forçoso concluir que as ervas que a autora colheu "junto à estrema" foram dadas de alimento às suas vacas (situação plenamente confirmada ainda pelas testemunhas ouvidas sobre essa matéria), implicando, por isso, uma resposta positiva ao quesito 17.
E)- Seguindo o já referido critério lógico e racional na apreciação das provas, custa perceber que o Tribunal, na resposta ao quesito 18, não tenha considerado provado que os animais da autora ficaram doentes por causa das ervas sujeitas ao herbicida aplicado pelo réu, bastando para tanto conjugar criteriosamente os factos constantes das respostas aos quesitos 7, 8, 17, 19, 21, 32, 33 e 34, aliado ao facto do conhecimento da generalidade das pessoas quanto à perigosidade e toxicidade natural dos herbicidas, sabendo ainda que a doença e as consequências detectadas nos animais são, pela experiência e conhecimento comum, adequadas e típicas à acção de um produto químico daquele tipo e tendo presente que o réu recusou identificar o produto em causa.
F)- Na resposta dada ao quesito 20 o Tribunal desprezou os depoimentos dos médicos veterinários ouvidos (um deles que fez o diagnóstico e aplicou a terapêutica adequada aos animais), que, juntamente com as demais testemunhas, não tiveram dúvidas em afirmar que, face aos sintomas e consequências detectadas nos animais, a intoxicação foi provocada pela ingestão de produtos químicos tóxicos.
G)- Ao decidir daquela forma o Tribunal violou as regras da experiência ou as legis artis daqueles peritos sem qualquer fundamento ou justificação e desprezou igualmente a relevância para aquela matéria das respostas negativas dadas aos quesitos 69 a 72.
H)- A resposta positiva dada ao quesito 75 (além do erro de que enferma já referido na alínea C) da 1ª conclusão), não encontra nenhum suporte documental ou testemunhal (antes pelo contrário), e só se entende por manifesto lapso do julgador.
3º) - Ao efectuar a aplicação de um herbicida (produto químico reconhecidamente tóxico e perigoso para a saúde de pessoas ou animais), através de pulverização com máquina a motor e deixando (ou não evitando), que esse produto atingisse as ervas da propriedade da autora e que esta destinava a alimentação dos seus animais, o réu praticou um acto ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual.
4º) - Além da presunção de culpa derivada da natural e conhecida perigosidade e toxicidade do produto químico utilizado (art. 493º, nº2, C.C.), ficou demonstrado que o réu não actuou com a diligência que se exigia a um bom pai de família, face às circunstâncias e meios empregues, tendo em conta que o réu sabia que aplicou um produto perigoso, sabia que a autora dava aquela erva aos animais, sabia que existia o perigo do produto se espalhar pelas ervas da autora, viu a autora colher a erva nos dias seguintes à pulverização e não a avisou nem assinalou a sua utilização sabendo ainda que tal produto não é detectado a olho nu.

5º) - Ao considerar que o réu aplicou o herbicida apenas na sua propriedade, contígua à da autora, a Meritíssima Juiz do Tribunal recorrido assentou a sua decisão quanto à inexistência de nexo causa-efeito entre a aplicação de herbicida pelo réu e a enterite hemorrágica detectada nos animais da autora, num pressuposto completamente errado e contrário aos factos julgados provados.
6º) - Ao julgar daquela forma o Tribunal interpretou mal os factos dados como provados, uma vez que ficou perfeitamente demonstrado que o réu permitiu que o herbicida atingisse também as ervas do prédio onde a autora colheu para dar de alimento aos seus animais (cfr. alínea A) dos factos assentes e respostas aos quesitos 7 e 8).
7º) - À luz da teoria da causalidade adequada consagrada no art. 563º do C.Civil, importava averiguar se a conduta do réu (aplicação de herbicida atingindo a erva da terra da autora e que esta apanhou para dar às vacas), abstractamente considerada e partindo da experiência comum, pode ser apontada como causa típica ou provável dos danos sofridos pelos animais, excluindo-se daquela responsabilidade as consequências atípicas ou anormais.
8º) - Em face daquela teoria não se mostrava essencial, ao contrário da fundamentação avançada pelo Tribunal recorrido, recolher amostras ou análises para determinar a origem da intoxicação dos animais.
9º) - Nesta perspectiva, o julgador não tomou em conta um dado essencial e de conhecimento da generalidade das pessoas (art. 514º, nº 1, CPC), que é o facto de um herbicida, seja ele qual for, constituir um produto altamente tóxico e perigoso, cuja ingestão provoca, sempre, consequências gravíssimas e por vezes fatais.
10º) - O que era essencial questionar era se a acção praticada pelo réu era de todo indiferente para a posterior verificação de um efeito daquele género, ou seja, se a ingestão de um produto herbicida é de todo indiferente à ocorrência de uma enterite, com hemorragias, risco de morte, lesões irrecuperáveis no sistema reprodutor dos animais e necessidade de abate.
11º) - Ainda ao contrário da fundamentação dada na Sentença recorrida, também não se mostrava essencial demonstrar qual o tipo ou quantidade de produto aplicado pelo réu ou que quantidade de erva ingerida pelos animais foi atingida por aquele, uma vez que, além de a demonstração de tais factos caber ao próprio réu (cfr. resposta negativa aos quesitos 67, 69, 71, 72 e 74), este foi ainda notificado, ao abrigo do art. 529º CPC, para identificar e juntar o rótulo do produto aplicado e não o fez, com as consequências daí derivadas em termos de ónus de prova (art. 519º, 2 CPC e 344º, 2 C.C.).
12º) - A doença e respectivas consequências (quase fatais), detectadas nos animais da autora após terem comido erva colhida junto à estrema daquelas propriedades e onde havia sido aplicado herbicida, mesmo abstraindo de dados científicos (análises) e apenas fazendo uso do conhecimento e da experiência comum, constitui um efeito mais que provável (para não dizer um efeito natural e típico), da ingestão de produtos químicos ou tóxicos do tipo de um herbicida.
13º) - Face a todo o circunstancialismo descrito nos autos e tendo presente a teoria da causalidade adequada consagrada no art. 563º do CPC (quer a nível naturalístico, quer ao nível jurídico), no caso dos autos, cabia ao réu afastar aquela dita relação de causalidade provável, natural e típica, demonstrando a existência de uma causa estranha que lhe não fosse imputável ou, por outro lado, que havia usado de todos os cuidados exigíveis naquelas circunstâncias e perante os meios empregues, para evitar os danos.
14º) - Encontram-se verificados nos autos todos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual por forma a imputar ao réu a responsabilidade pela reparação dos danos causados.
15º) - Tendo decidido de modo diverso, o Tribunal recorrido, além de ter decidido mal relativamente à matéria de facto, deixando a Sentença inquinada de deficiências e erros notórios que importam, senão a anulação do julgamento, pelo menos a sua nulidade, violou e interpretou incorrectamente os comandos legais já citados, nomeadamente, os artigos 514º, nº1, 519º, nº2, 653º, nº2, 659º, nº3, 668º, nº1, d), todos do Código de Processo Civil e ainda os artigos 344º, nº2, 483º, 493º, nº2 e 563º do Código Civil.
Contra-alegaram os apelados, sustentando a improcedência do recurso, designadamente por não ter existido erro na apreciação da prova.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Anulação do julgamento, por deficiência das respostas aos quesitos 5º e 75º da base instrutória;
b) - O erro na apreciação da prova quanto às respostas aos quesitos 15º, 16º, 17º, 18º e 20º
c) – Se estão comprovados os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente o nexo de causalidade adequada entre a actuação do Réu e os danos.


2.2. – O Recurso da matéria de facto:
2.2.1. – Considerações gerais:
A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Por isso, já ENRICO ALTAVILLA escrevia que " o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (" Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12 ).
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. MICHEL TARUFFO, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 nº2 do CPC ).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Como se refere no Ac da RC de 3/10/2000 ( C.J. ano XXV, tomo IV, pág.27 ), “ o tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção ( que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova ), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova ( com os mais elementos existentes nos autos ) pode exibir perante si “.
Mas a Relação pode ainda anular o julgamento, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos da matéria de facto ou quando considere indispensável ampliação desta, conforme determina o art.712 nº4 do CPC.
Pois bem, é com base nestes princípios que se passa a aquilatar do recurso de facto.
2.2.2. – As respostas aos quesitos 5º, 7º e 75º e a anulação do julgamento:
Ao quesito 2º - (“ Em Março de 1997, os Autores mantinham, em regime de entabulação permanente cinco vacas leiteiras ? “) – o tribunal respondeu – “Provado”.
Ao quesito 5º - (“ Entre os dias 1 e 10 de Março de 1997, o Réu fez uma aplicação de herbicida na terra designada “ Covelos “, sita em Beduido? “) – o tribunal respondeu:
- “ Provado que no início de Março de 1997, a Autora mantinha, em regime de entabulação permanente, cinco vacas leiteiras “.
Pretende a apelante a anulação do julgamento ( art.712 nº4 do CPC ), por o tribunal haver omitido a resposta ao quesito 5º, que se revela essencial para a decisão da causa.
A não se entender assim, deve alterar-se a resposta e considerar-se provado o quesito 5º, com base na confissão do Réu ( fls.182 ).
A resposta ao quesito 5º exorbita claramente o âmbito do facto controvertido, com o qual não tem a mínima conexão.
Tratando-se de resposta exorbitante, a mesma tem-se por não escrita, por aplicação analógica do art.646 nº4 do CPC.
Ao ter-se por não escrita, a consequência lógica é a de que o tribunal omitiu a resposta ao facto concretamente quesito em 5º.
Contrariamente à objecção dos apelados, esse facto revela-se essencial para a decisão da causa, conforme justificou a apelante.
Com efeito, os Autores alegaram ter sido nessa data e local que o Réu fez a aplicação do herbicida, onde aqueles recolheram a erva que deram aos animais e por causa disso vieram a adoecer, o que foi expressamente impugnado pelos Réus na contestação.
Em princípio impor-se-ia a anulação do julgamento, mas dada a confissão do Réu ( fls.182 ), e como melhor se alcança da gravação do seu depoimento, ( corroborado até pelo depoimento de determinadas testemunhas ), considera-se provado o facto do quesito 5º, tal como requereu a apelante.
De resto, e em bom rigor, os apelados não contestam a prova desse facto, como se extrai das suas contra-alegações.
E uma vez provado o quesito 5º, a resposta ao quesito 75º não enferma de qualquer contradição ou deficiência, sendo que existe lapso material da reprodução do facto na sentença ( ponto 52 ), que urge rectificar.
Ao quesito 7º - “ O produto aplicado pelo Réu espalhou-se pelas terras referidas em 1)? “ – o tribunal respondeu - “ Provado apenas que o produto aplicado pelo Réu atingiu erva do prédio onde a A. colheu e referido em A)”.
Na sentença consignou-se ( cf. ponto 7 ) como resposta ao quesito 7º “ o produto aplicado pelo Réu espalhou-se pelas terras referidas em 1 “.
Não correspondendo a descrição da sentença com as respostas aos quesitos 7º e 75º, impõe-se rectificar os pontos 7 e 52 ( do elenco dos factos provados ), por se tratar de erro material.
2.2.3. – A alteração das respostas aos quesitos 15º, 16º, 17º, 18º e 20º:
Ao quesito 15º - ( “ As ervas colhidas pelos Autores tinham sido afectadas pelo herbicida? “ ) – o tribunal respondeu – “Não provado”.
Pretende a apelante que se considere provado o quesito, porquanto os factos constantes da alínea A) dos factos assentes e a resposta dada aos quesitos 7º e 8º, conjugado com os depoimentos das testemunhas, impõe decisão diversa
Tendo o tribunal dado como provado que o produto ( herbicida ) aplicado pelo Réu atingiu erva do prédio onde a Autora colheu e referido em A) ( cf. resposta ao quesito 7º ), a consequência lógica leva inevitavelmente à prova positiva do quesito 15º), ou seja, de que as ervas colhidas pelos Autores foram afectadas pelo herbicida, tanto mais que o corte da erva se deu nos dias imediatos à pulverização ( alínea A/ ).
Por outro lado, isso mesmo resulta dos depoimentos das testemunhas Emília Craveiro, Silvério Oliveira, Maria Adozinda, que o tribunal a quo credibilizou, pelo menos nessa parte, como se evidencia até pela respectiva fundamentação ( fls.317 e 318 ).
Impõe-se considerar provado o quesito 15º).
Ao quesito 16º - ( “ O que os Autores desconheciam? “ – respondeu – “Não provado”.
Entende a apelante que o quesito deve ser dado como provado, por ser a única resposta lógica e aceitável perante os factos dados como provados nas respostas aos quesitos 9, 10, 12, 13 e 14 e a contradição daí derivada.
Nestes quesitos, o tribunal considerou provado que os Réus não avisaram os Autores de que tinham aplicado o herbicida para queimar as ervas, nem dos seus efeitos e não assinalou no local a utilização do produto.
Em primeiro lugar não pode haver logicamente contradição entre respostas positivas e respostas negativas, pois quanto a estas tudo se passa como se o facto não tivesse sido alegado.
Por seu turno, uma resposta negativa significa que não se provou o facto quesitado, mas já não a prova do contrário, o que desde logo inviabiliza o vício da deficiência, obscuridade ou contradição.
Da circunstância dos Autores não terem sido avisados pelo Réu sobre a aplicação do herbicida, não se pode, sem mais, presumir judicialmente que aqueles desconhecessem que as ervas ficaram afectadas pelo produto.
Ao quesito 17º - ( “ Os Autores deram tais ervas de alimento às suas vacas? “ – o tribunal respondeu:
- “ Provado que a A. deu de alimento às suas vacas ervas que colheu na propriedade confinante com a do R. e referida em A) “.
Por conseguinte, o tribunal a quo restringiu a resposta, no sentido de não considerar que os Autores tivessem dado de alimento às vacas a erva contaminada pelo herbicida.
Requer a apelante que se julgue provado que os Autores deram de alimento às suas vacas as ervas contaminadas pelo herbicida e recolhidas pela Autora, indicando como prova os depoimentos das testemunhas Jaime Rodrigues Melo, Vera Belo Marques, Emília Linhares Craveiro, Silvério Manuel Melo Oliveira e Maria Adozinda Melo Henrique Fonseca.
Ao quesito 18º - ( “ Logo após terem comido as ervas na propriedade referida em 1), as vacas dos AA. adoeceram? “ ) – o tribunal respondeu - “ Provado que as vacas da Autora estiveram doentes”.
Considera a apelante que a resposta deveria ter sido provada, com base nos mesmos depoimentos.
Ao quesito 20º ( “ Provocada pela ingestão de ervas contaminadas por produtos tóxicos? “ – o tribunal respondeu – não provado.
Sustenta a apelante que em face dos depoimentos das testemunhas Vera Marques e António José Caeiro Esteves, médicos veterinários, deveria ter sido dada resposta positiva.
A matéria dos quesitos 17º, 18º e 20º é de crucial importância para a decisão da causa, visto contenderem directamente com o problema do nexo de causalidade, sendo aqui que reside verdadeiramente a questão essencial colocada em recurso.
Numa primeira observação, e com todo o respeito, há que referir que as passagens transcritas pela apelante dos depoimentos das testemunhas, que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa, não traduzem a globalidade dos respectivos depoimentos, saindo, assim, claramente desvirtuados, quer porque são reproduzidas passagens avulsas, quer porque não reflectem, com rigor, toda a relação comunicacional estabelecida em audiência, designadamente, quando submetidas ao contra-interrogatório da parte contrária ou a esclarecimentos pertinentes levados a cabo pelo tribunal.
Como se extrai da fundamentação ( fls.318 ), o tribunal a quo, depois de fazer a análise crítica da prova testemunhal, não a considerou suficiente para julgar provado, por um lado, que os Autores dessem de comer às vacas as ervas contaminadas pelo herbicida, aplicado pelo Réu, e, por outro, que elas adoecessem por causa desse facto.
Muito embora não esteja explicitado, depreende-se, até pela resposta positiva ao quesito 76º), que, na ausência de prova pericial, designadamente ao exame das ervas, dos animais ou do leite, com vista a determinar cientificamente a causa da doença, o tribunal a quo considerou não serem concludentes os depoimentos das referidas testemunhas, ficando-se por um “ non liquet”.
A verdade é que nenhuma delas revelou ter conhecimento directo sobre esses factos e aquelas que estabeleceram uma relação entre a erva e a doença, fizeram-no por simples dedução, acabando por se transformar num depoimento opinativo.
Com o devido respeito, é o que resulta do depoimento integral de cada uma das testemunhas, Jaime Rodrigues Melo, Emília Linhares Craveiro, Silvério Manuel Melo Oliveira e Maria Adozinda Melo Henrique Fonseca.
A testemunha Silvério Oliveira, agricultor, quem fazia a limpeza dos estábulos dos Autores, deslocou-se ao local já depois das vacas haverem adoecido, e como referiu, se a Autora andava a dar as ervas aos animais, só pode ter sido das ervas, mas não tem a certeza se os animais que adoeceram comeram dessa erva, nem se a que viu no estábulo era da que havia sido colhida junto à estrema do terreno do Réu, afectada pelo herbicida.
Também o depoimento da testemunha Maria Adozinda que, apesar de afirmar que as vacas adoeceram devido às ervas contaminadas, não sabe se a Autora colheu ervas noutro local, embora fosse usual começar o corte num sítio e levá-lo até ao fim.
Do mesmo modo, ainda o depoimento de Emília Craveiro quando, por exemplo, à pergunta do senhor advogado, mandatário dos Autores, - “ Viu se elas ( as vacas ) tinham sido alimentadas com ervas daquela propriedade contaminada com o tal herbicida? “, - respondeu – “ Ora bom, portanto, como eu não estava a ver dar aos animais, só que naquela altura havia só essas ervas para lhes dar, não é, e as ervas é que se davam aos animais de leite (…) “.
Mas, em todo o caso, asseverou que os animais adoeceram por causa de terem comido dessa erva “de certeza absoluta”, sem que soubesse se os Autores também colhiam ervas para os animais de outras terras ( “ não posso especificar “ ).
Por seu turno, contrariamente ao alegado pelos Apelantes, também os depoimentos dos médicos veterinários, não apontam em sentido inverso ao decidido.
A testemunha Vera Marques, médica veterinária, foi quem tratou da doença das vacas, e com base na sintomatologia fez o diagnóstico de enterite hemorrágica, descreveu os sintomas que apontavam para a ingestão de um produto tóxico, tendo referido que a causa provável foi a contaminação das ervas por produtos tóxicos.
Porém, apenas se reportou às ervas devido à alteração dos hábitos alimentares que lhe foi comunicado pela Autora, mas em caso algum referiu que a intoxicação se devesse às ervas colhidas pela Autora na estrema do prédio com o do Réu.
A testemunha António Esteves, médico veterinário, director de serviço da área de melhoramento animal da PROLEITE, apenas soube da situação pelos comentários da Dra.Vera, que estava sob a sua responsabilidade, sem que tivesse tido qualquer contacto com os animais afectados, e daí afirmar “ para ser honesto, não sei a origem da intoxicação “.
Deste modo, e tendo em conta as considerações gerais sobre a impugnação da matéria de facto em 2ª Instância, acima expressas, a prova testemunhal indicada pela apelante não impõe decisão diversa, ou seja, a preconizada alteração das respostas aos quesitos 17º, 18º e 20º.
Em resumo, procede parcialmente o recurso de facto, passando-se a discriminar os factos provados, por ordem lógica e cronológica, com as referidas alterações.

2.3. - Os factos provados:
1) - Os AA. cultivam numa terra de cultura, denominada “Covelos”, no lugar de Beduíno, Alquerubim, Albergaria-a-Velha, milho e ervas para alimentação de bovinos (r.q.1º).
2) - No início de Março de 1997, os AA. mantinham, em regime de entabulação permanente, cinco vacas leiteiras (r.q.2º ).
3) - Das quais obtinham o leite (r.q.3º ).
4) - E as respectivas crias que destinavam à venda (r.q.4º).
5) - Entre os dias 1 e 10 de Março de 1997, o Réu fez uma aplicação de herbicida na terra designada “ Covelos “, sita em Beduido ( r.q.5º ).
6) - A aplicação de herbicida foi efectuada através de pulverização com máquina a motor, tendo o Réu usado aspersor (r.q.6º e 67º).
7) - O R. viu os AA. colherem ervas junto à estrema de ambas as propriedades confinantes nos dias imediatos à pulverização (al. A).
8) – O produto aplicado pelo Réu atingiu erva do prédio onde a A. colheu e referido em A) ( r.q.1º).
9) - Nomeadamente junto à linha de estrema com as mesmas (r.q.8º).
10) - O R. não avisou os AA. de que tinha aplicado herbicida para queimar as ervas (r.q.9º).
11) - Não assinalou no local a utilização do produto (r.q.10º).
12) - Não avisou os AA. de que, face à utilização do herbicida e ao instrumento de pulverização utilizado, poderia existir o risco de algumas ervas das terras referidas em 1) terem sido atingidas pelo dito produto(r.q.12º).
13) – A aplicação do produto herbicida não é detectada a olho nu nos primeiro 2/3 dias após a aplicação e, depois disso, a erva começa a ter aspecto ressequido (r.q.13º e 14º).
14) - As ervas colhidas pelos Autores tinham sido afectadas pelo herbicida ( r.q.15º).
15) - A A. deu de alimento às suas vacas erva que colheu na propriedade confinante com a do R. e referida em A) (r.q.17º).
16) – As vacas estiveram doentes (r.q.18º).
17) - Tendo-lhes sido diagnosticada uma enterite hemorrágica (r.q.19º).
18) - Estiveram afectadas pela referida enterite durante uma semana, com risco de morte (r.q.21º).
19) - As vacas foram sujeitas a tratamentos e acompanhamento por parte de veterinário (r.q.22º).
20) - As vacas eram: um bovino H373795, nascido a 12.9.93, um bovino H219012, nascido a 2.1.92, um bovino 3999596, nascido a 3.12.89, um bovino H479854, nascido a 28.2.95, um bovino H199229, nascido a 1.11.91 ( r.q.23º a 27º).
21) - Em consequência da enterite hemorrágica, verificou-se quebra na produção de leite das vacas ( r.q.28º).
22) - A produção de leite na exploração da A. foi de 2.754.5 em Fevereiro de 97, 2.371 em Março de 97, 2.720 em Abril de 97 e 2.526,5 em Maio de 97 ( r.q.29º e 30º).
23) - A A. retirava um lucro da venda de leite correspondente a cerca de 27% do preço final deste que era, em 1997, de 50$00/litro (r.q.31º).
24) - Os animais referidos em 19, em consequência da referida intoxicação, sofreram lesões irrecuperáveis ao nível do sistema reprodutor (r.q.32º).
25) - O que os deixou incapacitados para gerar novas crias e consequentes lactações (r.q.33º).
26) - Pelo que tiveram que ser abatidas ( r.q.34º).
27) - O número de lactações previsíveis em vida útil de cada um daqueles bovinos é de 7 (r.q.35º).
28) - Uma vaca, em regra, produz cerca de 25/l de leite por dia, durante 7 meses por ano e durante cerca de 7/8 anos (r.q.36º).
29) - E um vitelo por cada lactação (r.q.37º).
30) - O bovino 3999596 foi abatido a 31.1.98, no decurso da 6ª lactação, com que ficou prejudicada a produção de leite da 6ª lactação e 7ª lactação, e um vitelo (r.q.38º, 39º, 40º e 42º ).
31) - O bovino H479854 foi abatido a 31.1.98, no decurso da 1ª lactação, com o que ficou parcialmente prejudicada a 1ª lactação e as seis seguintes e seis vitelos ( r.q.43º, 44º, 45º e 47º).
32) - O bovino 199229 foi abatido em Outubro de 97, no decurso da 5ª lactação, com o que ficou prejudicada parcialmente a 5ª lactação e as duas seguintes e dois vitelos ( r.q.48º, 49º, 50º e 52º).
33) - O bovino H 219012 foi abatido em Junho/98, no decurso da 4ª lactação, com o que ficou prejudicada parcialmente a 4ª lactação e as 3 seguintes e três vitelos ( r.q.53º, 54º, 55º e 57º)
33) - Em medicamentos administrados às vacas durante o período de doença e em assistência veterinária, os AA. gastaram 37.789$00 ( r.q.58º).
34) - A A. mulher foi afectada por gastroenterite em consequência da ingestão de leite das vacas na pendência do tratamento que lhes estava a ser administrado (r.q.59º).
35) - Teve que receber assistência médica no serviço de urgências do Centro de Saúde de Albergaria-a-Velha em 17.3.97 (r.q.60º).
36) - Tendo ficado doente e incapacitada para o trabalho durante 8 dias ( r.q.61º).
37) - Gastou em assistência médica e medicamentos a quantia de 2.480$00 ( r.q.62º).
38) - Em consequência da intoxicação, a A. teve dores abdominais, náuseas e vómitos permanentes ( r.q.64º).
39) - Os RR. são agricultores e produtores agro-pecuários, tendo igualmente animais produtores de leite, igualmente alimentados com ervas do prédio identificado em 5 ( r.q.73º e 75º).
40) - Os AA. não tiveram o cuidado de, declarada a doença, proceder aos adequados testes determinativos da origem da mesma, seja nos animais, seja no seu leite ( r.q.76º).

2.4. – Da responsabilidade civil:
A pretensão indemnizatória dos Autores situa-se no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual e a sentença recorrida enquadrou-a na cláusula geral do art.483 do Código Civil ( CC ), fundamentando a improcedência da acção na falta de comprovação do nexo de causalidade entre a actuação do Réu e os danos apurados.
Em contrapartida, defende a apelante a verificação de todos os requisitos legais da obrigação de indemnização, incluindo o nexo de causalidade adequada, mas fê-lo no pressuposto da alteração da matéria de facto, o que não sucedeu, logo o recurso de direito está à partida comprometido.
São pressupostos da obrigação de indemnização, o facto ilícito ligado à conduta do Réu por nexo de imputação subjectiva ( a culpa ) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto (art.483 e segs. do CC ).
Como regra geral, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.487 nº1 C.C.).
O nº2 do art.493 C.C. estabelece uma presunção legal de culpa ( presunção "juris tantum" ) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa. Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 C.C., não se altera, contudo, o princípio do art.483 C.C. de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.
Havendo uma presunção legal, provar o facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido (art.344 nº1 e 350 nº1 C.C.), pelo que, neste contexto, desde que o lesado alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa, a lei presume, a partir desse facto ( base da presunção ), que o sinistro foi devido a culpa do agente ( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 122, pág.217).
Para além de determinar a inversão do ónus da prova (art.344 nº1 C.C.), o nº2 do art.493 agrava a medida da normal diligência do " bonus pater familias ", pois a perigosidade implica que o agente deve adoptar as providências especialmente adequadas a prevenir os danos, determinadas pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais actividades ou pelas regras da experiência comum (por ex., VAZ SERRA, BMJ 85, pág.376 e segs., e RLJ ano 102, pág. 379, Ac STJ de 17/2/77, BMJ 264, pág.166, de 4/10/84, BMJ 340, pág.370).
Deste modo, para afastar a responsabilidade, o lesante carece de demonstrar que levou a própria diligência " não menos que ao extremo limite ", pois " a previsibilidade do dano está " re ipsa " e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para terceiros " ( VAZ SERRA, BMJ 85, pág.376 e 377 ), e este rigor da prova liberatória leva a que alguns autores falem até de um " processo de objectivação " sobre as hipóteses de responsabilidade por actividades perigosas ( cf., por ex., FRANCESCO GALGANO, Diritto Privato, 2ªed., 1983,pág.343 ).
Não define a lei conceitualmente o que consiste a " actividade perigosa ", admitindo-se apenas genericamente que a perigosidade derive da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados, e, assim, só casuisticamente, em face das circunstâncias concretas, se poderá aquilatar do carácter perigoso do facto lesivo ( cf. P.LIMA-A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.1, 3ªed., pág.469).
Daí que a qualificação de uma actividade perigosa, para efeitos do nº2 do art.493 C.C., abalizada pela própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados, não se compadeça com uma construção apriorística, emergindo, porém, do " facto concreto ", como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um " direito de resultado ", em que releva a força criativa da jurisprudência, sendo, por isso, múltiplos e variados os exemplos jurisprudenciais de actividades perigosas.
Como critério de orientação tem-se adoptado a tese da maior probabilidade dos danos em comparação com as restantes actividades em geral. Neste sentido, escreve VAZ SERRA, apoiando-se na doutrina italiana, que actividades perigosas são as " que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada de outras actividades ", acrescentando que " a perigosidade da actividade deve existir no exercício da actividade considerada em abstracto, sem se atender, portanto, à inexperiência de quem a exerce " ( BMJ 85, pág.378 ).
Nesta perspectiva, a aplicação de herbicida pelo Réu, através de aspersão, consubstancia uma “ actividade perigosa “, dada a natureza tóxica do produto, sendo, por isso, aplicável norma do art.493 nº2 do CC.
Mas uma coisa é a culpa, outra o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano, como pressuposto autónomo do direito da responsabilidade civil, situado a montante daquele.
A lei civil ( art.563 do CC ) adoptou a teoria da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Assim, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo ( nexo de adequação ).
Para o efeito, releva a causalidade adequada na sua formulação negativa: a condição deixará de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequado para esse dano ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., pág.743 e segs., Ac STJ de 15/4/93, C.J. ano I, tomo 2, pág.59, de 15/1/2002, C.J. ano X, tomo I, pág.36 ).
O nexo de causalidade entre o facto e o dano coloca, assim, uma questão que constitui matéria de facto, a de estabelecer a realidade do evento naturalístico que foi condição do dano, e uma questão de direito, a da demonstração da adequação desse evento, em abstracto ou em geral, a causar o dano.
Porém, sempre competiria aos Autores a prova do nexo de causalidade entre essa omissão e o dano, como facto constitutivo do seu direito ( art.342 nº1 do CC ), já que a presunção de culpa não abrange também a presunção de causalidade, contrariamente ao defendido por MARIA CLARA SOTTOMAYOR ( BFDUC vol.LXXI, pág.411 ), a propósito do art.491 do CC ( responsabilidade dos pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores ).
Por isso, ainda que à situação seja aplicável a norma do art.493 nº2 do CC, tal como alegou a apelante, é apodíctico que a imputação objectiva constitui um facto constitutivo do direito à indemnização.
Daí que, “ se no caso do pressuposto da culpa, o lesado está dispensado do ónus da sua prova, por via da presunção de culpa do art. 493 nº 2 do CC decorrente da inversão do regime regra contido no art. 487, já no caso da prova relativa ao requisito da imputação da autoria dos factos aos réus, tal ónus pertence ao lesado, como pressuposto autónomo do dever de indemnizar e facto constitutivo do direito que se arroga, nos termos do art. 342 nº 1, do mesmo diploma “ ( cf., Ac do STJ de 4/11/2003 ( Azevedo Ramos ) e de 19/11/2003 ( Araújo Barros ), www dgsi.pt/jstj ).
Pois bem, face às respostas aos quesitos 17º, 18º e 20º, não lograram os Autores comprovar o nexo de causalidade adequada, já que não demonstraram, por um lado, que tivessem dado de alimento às vacas a erva contaminada pelo herbicida, aplicado pelo Réu, e, por outro, que os animais adoecessem devido à ingestão de ervas contaminadas com tal produto tóxico, o que significa a ausência de suporte factual para o nexo naturalístico.
Deste modo, porque a sentença recorrida não violou as normas legais indicadas nas conclusões do recurso, improcede a apelação.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar a Apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.
+++
COIMBRA, 21 de Setembro de 2004.