Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1098/06.3TBCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: COSTA FERNANDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 03/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA - COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 493º, 1 E 503º, 1 DO CÓD. CIVIL
Sumário: Não podendo o sinistro imputar-se a culpa de qualquer das rés e estando, como está, afastada a responsabilidade pelo risco, em face da culpa (exclusiva) do sinistrado, inexiste obrigação de indemnizar os danos.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório:
A... , viúva, residente na X... Santa Comba Dão, propôs a presente acção declarativa, com processo comum, na forma ordinária, contra:
B..., com sede no Y.......... Lisboa;
C.....Seguros ., com sede social na W...... Lisboa;
D....., com sede na Z........Lisboa;
E.... Seguros com sede social na K.... Lisboa,
Peticionando que as rés sejam condenadas a pagar-lhe o montante global de 80.000,00 €, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decor- rentes da morte de seu marido, F... , para além de juros de mora, à taxa legal, contados sobre essa quantia, desde a data da citação e até integral cumpri- mento.
Fundamentou a sua pretensão num sinistro ferroviário, ocorrido, em 30-05-2003, na Linha do Norte, perto da passagem de nível da Pedrulha, Coimbra, em que um com- boio da terceira ré colheu mortalmente seu marido.
Responsabilizou a primeira ré, por não ter dotado a via de protecções físicas que impedissem a circulação junto da linha.
Demandou a terceira ré, por ser a entidade que explorava a circulação do com- boio interveniente no sinistro.
As restantes foram demandadas, na qualidade de seguradoras das outras duas.
A terceira ré (C P) contestou, alegando a prescrição do direito invocado, questão que veio a ser decidida (em sentido negativo, no saneador), e sustentando que:
- Não teve qualquer responsabilidade na ocorrência do sinistro, porquanto a linha é pertença da primeira ré (B...), cabendo a si apenas a missão de fazer circu- lar os comboios;
- O maquinista ao seu serviço, logo que avistou o sinistrado, que seguia sobre a via, buzinou mas ele não reagiu, e, apesar de ter accionado o sistema de travagem do comboio, não conseguiu parar antes do embate;
- Sinistrado seguia com uma taxa de alcoolemia de 2,86 gramas, não sendo de excluir a hipótese de suicídio.
Concluiu pela sua absolvição do pedido.
A primeira ré (B...) alegou, no essencial, a factualidade que ficou referida, quanto ao modo como se deu o sinistro, acrescentado que não teve culpa na sua ocor- rência, vincando ser proibida a circulação de pessoas junto das linhas de caminho de ferro e que não é possível financeiramente vedar toda a extensão das mesmas.
Concluiu que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva da vítima, devendo ser absol- vida do pedido.
A segunda ré (C...) foi demandada no pressuposto de que existia um con- trato de seguro si e a B..., tendo ambas negado a existência do mesmo.
A quarta ré (E...) foi também demandada no pressuposto de que existia um contrato de seguro entre ela e a CP, tendo ambas negado a sua existência.
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Por sentença de fls. 465 a 474, a acção veio a ser julgada improcedente.
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A autora recorreu da sentença, pretendendo que a mesma seja revogada, julgando-se a acção procedente, devendo a ré B... responder a título de culpa, ou, no mínimo, responder, tal como a ré CP, com base na responsabilidade pelo risco.
A recorrente alegou, tendo retirado as seguintes conclusões:
1ª Seu marido foi vítima de acidente ferroviário que determinou directamente a sua morte;
2ª Tal acidente ocorreu porque o falecido, circulando numa Rua da Pedrulha que desemboca directamente numa passagem de nível, entrou, antes da passagem de nível, por um caminho de terra batida, por onde os habitantes da Pedrulha circulam;
3ª E circulam, porque a zona residencial da Pedrulha está dividida da zona dos campos de cultivo, pela via férrea;
4ª O tal caminho de terra batida, apesar de limitado pela via férrea, onde circu- lam centenas de comboios por dia, a velocidades de 140 quilómetros hora, não tem qualquer sinalização ou vedação;
5ª A B...., é a gestora e responsável pelas infra-estruturas ferroviárias, e pelo teor da legislação em vigor, ao tempo do acidente, compete-lhe determinar os locais onde a segurança pública exija a vedação e ao Governo apreciar;
6ª Ora, no local, dividindo uma povoação com milhares de habitantes e com um caminho que a segue, a par e passo, linha devia estar vedada e bem vedada;
7ª Não é manifestamente o que se verifica: sem qualquer sinalização ou veda- ção, acede-se a tal caminho lado a lado com a via férrea;
8ª Não há qualquer justificação, nem legalidade, ao abrigo da referida legislação, para que tal acesso e caminho não estejam vedados;
9ª Assim, se por um lado se pode admitir a culpa da B... na produção do aci- dente, por manifesta incúria e irresponsabilidade, é inquestionável que a responsabili- dade pelo risco, quer para a B..., quer para a CP, detentora do comboio, máquina altamente perigosa, sobretudo se pensarmos tal máquina de ferro a circular a 140 qui- lómetros por hora;
10ª Cita-se, por todos, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de Junho de 2008, Apelação nº 801/2002.C1, onde na interpretação lei, nomeada- mente do art. 505º do Código Civil, se entende ser de excluir a responsabilidade objec- tiva do detentor do veículo, quando o acidente for unicamente devido ao próprio lesado ou a terceiro, não tendo contribuído a particular natureza daquele para ampliação do dano;
11ª No caso em apreço, são efectivamente determinantes, a particular natureza do veículo - um comboio -, a velocidade, o seu peso, a verdadeira brutalidade do referido veículo, animada a 140 quilómetros por hora, sempre no âmbito da CP, e por outro lado a B..., manter o acesso à linha, onde circula este verdadeiro monstro, sem qualquer sinalização ou vedação;
12ª Atinge-se o caminho de terra batida, sem passar pela passagem de nível, e circula-se sem qualquer defesa ou vedação, lado a lado com a linha, meio onde pas- sam os comboios a 140 quilómetros por hora;
13ª Tais meios mecânicos e atitudes deveriam ter sido ponderados na análise do caso em apreciação, sendo que a omissão de tal consideração, é contrário ao disposto na lei, nomeadamente artigos 499º e seguintes do Código Civil;
14ª Também a lei ferroviária vigente, foi claramente ignorada pela B..., que não propôs, nem promoveu a vedação daquele troço de via férrea, junto da povoação e dividindo mesmo a zona habitacional da zona de campos de cultivo da mesma popula- ção.
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A primeira ré (B...) respondeu, consignando que a sentença recorrida deve ser confirmada.
A terceira ré (CP) contra-alegou, propugnando pela confirmação da sentença recorrida, referindo, em síntese, que:
1. O sinistro resultou de culpa exclusiva da vítima, não sendo enquadrável no regime da responsabilidade pelo risco;
2. De acordo com o art. 23º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, nenhuma pessoa estranha ao serviço pode transitar nas linhas, sendo do senso comum que, para além de ilegal, é manifestamente perigoso e irres- ponsável a circulação de peões junto ao carril exterior da via férrea;
3. Ao invés do que a recorrente sustenta, e em conformidade com o que foi decidido no Ac. do STJ, de 06-11-2008, Proc. 08B3331, os arts. 505º e 570º, 1, não comportam a concorrência entre culpa exclusiva do lesado e o risco da actividade do agente;
4. A lei civil portuguesa adoptou a formulação negativa da teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercede- ram no caso concreto.
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O recurso foi admitido como apelação, com efeito devolutivo.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II. Questões a equacionar:
Uma vez que o âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 690º, 1, e 684º, 3, do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Dec.-Lei nº303/207, de 24/VIII), importa apreciar as questões que delas fluem. Assim, «in casu», há que equacionar:
a) Da eventual culpa da ré B...;
b) Da responsabilidade pelo risco da ré B...;
c) Da responsabilidade pelo risco da ré CP.
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III. Fundamentação:
A) Factos provados:
1. A ré B..., é uma empresa pública com personalidade jurídica, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, gestora e responsável pela infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacio- nal.
Estão no âmbito das suas funções e competências a construção, instalação e renovação da infra-estrutura ferroviária, compreendendo, designadamente o respectivo estudo, planeamento e desenvolvimento, o comando e controlo da circulação, bem como a promoção, coordenação, desenvolvimento e controlo de todas as actividades relacionadas com a infra-estrutura ferroviária.
São infra-estruturas ferroviárias as bermas, pistas, muros de vedação, valas, etc. – a) da «especificação»;
2. A ré D...., é uma empresa pública ope- radora de transportes ferroviários de passageiros e mercadorias.
Explora a circulação dos veículos ferroviários que circulam na «Linha do Norte» que faz a ligação entre Lisboa e Porto.
Dividida em «unidades de negócio», a denominada UVIR, é a unidade de via- gens interurbanas e regionais, prestadora de serviços de passageiros de médio e longo
curso – b) da «especificação»;
3. F.... faleceu no dia 30 de Maio de 2003 – c) da «especi- ficação»;
4. F... desceu a pé a rua que se vê na fotografia de folhas 31 (documento n.º 9), denominada Rua da Casadinha, e, imediatamente antes de chegar à linha de caminho de ferro, virou à sua esquerda pelo caminho de terra batida que se vê na mesma fotografia, o qual é o resultado da passagem dos habitantes da Pedrulha para os seus campos de cultivo, situados nas margens da linha - resp. ao quesito 3;
5. Uma vez que a infra-estrutura ferroviária separa as residências da população dos seus campos de cultivo – resp. ao quesito 4;
6. Alguns habitantes deslocam-se pela berma da linha para aceder aos campos de cultivo – resp. ao quesito 5;
7. Na passagem de nível da Pedrulha, F... passou a circular num cami- nho de terra batida, ali formado pela passagem de pessoas, situado do lado esquerdo da linha, para quem segue em direcção a Coimbra, cuja extensão se ignora, e, quando ia a cerca de 70 metros dessa passagem de nível, em direcção a Coimbra, e cami- nhando junto ao carril esquerdo da via, considerando esta direcção, foi embatido por um comboio Intercidades, embate que lhe causou a morte – resp. aos quesitos 6 e 7;
8. A infra-estrutura, no local do embate, não possuía qualquer protecção ou iso- lamento da linha – resp. ao quesito 8;
9. Circulam nesta linha comboios a 140 quilómetros por hora – resp. ao quesito 9;
10. O falecido tinha 58 anos de idade – resp. ao quesito 10;
11. Era agricultor e vivia da produção agrícola, que lhe permitia obter produtos para o sustento da sua família, constituída pela esposa e um filho deficiente – resp. ao quesito 11;
12. Vendia ainda alguns produtos e animais por si produzidos a terceiros – resp. ao quesito 12;
13. Exercia esta actividade de agricultor em terrenos agrícolas, que lhe permi- tiam alimentar a família que consigo vivia – quesito 13;
14. Obtinha mensalmente um rendimento em dinheiro, nunca inferior a 100,00 € (cem euros) – resp. ao quesito14;
15. Viveria ainda mais 17 anos – resp. ao quesito 15;
16. A morte de F... causou sofrimento à esposa e aos filhos – resp. ao quesito 16;
17. A esposa do falecido teve despesas decorrentes do falecimento, incluindo as do funeral, no montante de 2.000,00 € (dois mil euros) – resp. ao quesito17;
18. O acidente ocorreu às 16,15 horas e ao quilómetro 219,750 da Linha do Nor- te, no sentido Norte/Sul – resp. ao quesito 18;
19. O falecido seguia junto ao carril exterior da via férrea – resp. ao quesito 19;
20. Este local não é destinado ao trânsito de pessoas, facto que é do conheci- mento público – resp. ao quesito 20;
21. Era previsível o perigo constituído pela natural e previsível passagem cons- tante de comboios – quesito 21;
22. Na altura, o falecido era portador de uma taxa de álcool no sangue de 2,86 gramas por litro – resp. ao quesito 22;
23. É do conhecimento geral que as vias férreas são locais adequados à perma- nente e exclusiva circulação de comboios – resp. quesito 23;
24. É também do conhecimento geral que a Linha do Norte é local reservado à circulação diária de comboios – resp. ao quesito 24;
25. No local do acidente os comboios podiam circular a 140 quilómetros por hora – resp. ao quesito 25;
26. O comboio que colheu o falecido foi o comboio 512, Intercidades, circulava a velocidade inferior – resp. ao quesito 26;
27. O maquinista do comboio avistou o falecido quando desfez uma curva, a uma distância de cerca de 120 metros, accionou a buzina do comboio, mas o falecido não se desviou – resp. ao quesito 27;
28. O falecido seguia de costas para o comboio, considerando o sentido deste –
resp. ao quesito 28;
29. O falecido não teve qualquer reacção no sentido de se afastar da linha quan- do o comboio se aproximou – resp. ao quesito 29;
30. O maquinista accionou ainda a válvula de emergência – resp. ao quesito 30.
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B) Enquadramento jurídico:
a) Da eventual culpa da ré B...:
A autora sustenta que existe culpa da ré B... na produção do sinistro, por não ter providenciado no sentido da vedação da linha, naquele local, pois que, de acordo com a legislação em vigor, ao tempo do acidente, competia-lhe determinar os locais onde a segurança pública exigia a vedação.
Estatui o art. 17º, 1, do Regulamento de Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Dec.-Lei nº 39.780, de 21-08-1954, com alterações posteriores, que «o terreno de caminho de ferro tem que ser vedado pela empresa, sempre que a segurança pública o exija».
Estamos em face de uma norma aberta, cujo conteúdo tem de ser preenchido caso a caso, em conformidade com as concretas exigências da «segurança pública».
E, logo à partida, impõe-se a conclusão de que o legislador não teve em mente um critério de segurança quase absoluta, como sucede relativamente às auto-estradas, em que a vedação é exigível em todos os casos.
Assim, há que recorrer ao bom senso, aos ditames da experiência comum, para apurar as situações em que a «segurança pública» exige a vedação da via, numa linha
de segurança adequada às circunstâncias concretas.
Nesta conformidade, salta à vista que a vedação será exigível, sempre que a via atravesse ou passe junto de agregados populacionais, com um mínimo de dimensão, em que existam habitações ou estabelecimentos, designadamente escolares, próximos da linha férrea, propiciando a sua invasão ou atravessamento por pessoas incautas ou crianças. Serão de excluir, em princípio, as hipóteses de existência casas dispersas, a não ser que a sua disposição relativamente à via seja tal que tal perigo se patenteie.
No caso dos autos, vistas as fotografias de fls. 28 a 33, impõe-se concluir que não se verifica a necessidade de vedação, por exigências da «segurança pública», à luz da ideia de segurança relativa acolhida pela lei. Com efeito, os edifícios nelas repre- sentados (uns três ou quatro, ao que parece) estão separados da via por um valado, em rampa íngreme, relativamente elevado, com alguns arbustos, não havendo o perigo de alguém, por distracção entrar na linha, sendo ainda certo que nenhuma dessas casas tem portas que permitam o acesso directo à via férrea. Já o troço representado nas fotografias de fls. 34, que está ladeado de algumas vivendas, sendo o valado quase inexistente, apresenta-se vedado, de harmonia com as aludidas exigências de segurança que, aí, sim podem existir, face à probabilidade elevada da existência de cri- anças.
O troço representado nas fotografias de fls. 29 a 33 (em que, de harmonia com a factualidade vertida nos nºs 4, 7 e 27 do elenco de factos provados, ocorreu o sinistro) não apresenta qualquer perigosidade especial que implique a sua vedação.
O facto de «alguns» habitantes da localidade circularem pela berma da linha, para acederem aos campos de cultivo, dando origem a uma espécie de trilho em terra batida (no nº 4 do elenco de factos provados, reportando a fotografia de fls. 31, fala-se em «caminho», mas o que nela está representado não vai além de um trilho ou carreiro resultante de circulação pedestre), integra um comportamento ilegal, por estar em contravenção ao disposto no art. 23º do REPCF. Ora, esse facto ilícito e anormal não pode criar qualquer obrigação para a empresa responsável pela manutenção da via. Na verdade, em qualquer outro local, podem existir pessoas que, por comodidade ou comodismo, resolvam circular na berma da linha férrea; donde, se isso tivesse de implicar a sua vedação, poderia, no limite, levar à necessidade de vedar todas as vias férreas – como, aliás, seria desejável.
Mais, o sinistrado tinha a obrigação de saber que lhe era vedado circular na berma da via férrea e que, ao fazê-lo, mormente junto aos carris, punha em perigo a sua vida. Na verdade, a mais elementar prudência aconselha a que se não circule junto de uma linha férrea.
Ainda, qualquer pessoa de bom senso, logo conclui que aquele «trilho» não passa de um carreiro resultante da passagem de quem ali reside (obviamente, pessoas conhecedoras dos perigos previsíveis), não sendo um caminho que dê garantias de circulação segura. Aliás, a simples visualização das fotografias de fls. 28, 29 e 31 permite concluir que quem siga na berma da linha (ou nesse trilho) o mais afastado possível da via férrea não correrá o risco de ser colhido, mas se o fizer junto aos carris esse risco é evidente.
Embora o caso destes autos seja bastante diferente, faz sentido chamar à colação o Ac. do STJ, de 11-05-2006, Proc. 06B842, em que se entendeu que a veda- ção do espaço da via férrea determinada pelo mencionado art. 17º, 1, não tem por finalidade acautelar situações anormais, que escapam à esfera de protecção dessa norma. É que, também aqui, se bem que em muito menor grau, estamos em face de uma situação anómala, em que uma pessoa resolve circular ao longo de uma das linhas férreas mais movimentadas do País, ainda por cima, sem conhecer o local e estando fortemente alcoolizado.
Em vista do que fica dito, importa concluir que a primeira ré (B...) não estava obrigada a vedar a linha, no troço em que ocorreu o sinistro, porque as normais e previsíveis necessidades de segurança não o exigiam, inexistindo qualquer omissão culposa da sua parte que permita considerá-la culpada pela ocorrência do sinistro.
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b) Da responsabilidade pelo risco da ré B...:
Sustenta também a autora que, no mínimo, a ré B... deve responder pelo risco resultante do facto de a linha, dividindo, ali, uma povoação dos campos de cultivo, não estar vedada, naquele local, permitindo o acesso e a circulação de pessoas, pelo «caminho» de terra batida que a ladeia, sendo certo por ela circulam comboios, máqui- nas altamente perigosas, a velocidades que podem atingir 140 km/hora.
No seu entender, foram determinantes do sinistro, a particular natureza do veícu- lo (um comboio), o seu peso e a velocidade - «a verdadeira brutalidade do referido veí- culo animado a 140 quilómetros por hora».
No que respeita à B..., a mesma só podia responder com base na culpa, nos termos do art. 493º, 1, do Cód. Civil, porquanto nada tem a ver com a circulação do comboio. Ora, como já vimos, a mesma não agiu com culpa, porque não estava obriga- da a vedar a linha naquele troço. E, no que concerne ao risco, como a própria autora reconhece, o mesmo adveio da circulação do comboio, o qual era utilizado pela ré CP, no seu próprio interesse, sendo a B... alheia a essa utilização.
Assim, não se vislumbra que a B... possa responder pelo risco decorrente da circulação do comboio.
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c) Da responsabilidade pelo risco da ré CP:
Sustenta a autora que a ré D...também deve responder pelo risco, por ser a detentora do comboio que atingiu o sinistrado, utilizando-o naquelas condições.
Como se refere no Ac. do STJ, de 16-11-2006, Proc. 05B2392, o Código Civil de 1966 não excluiu de modo nenhum o comboio da circulação terrestre (art. 503º) e, como flui do art. 508º, 3, incluiu entre os acidentes de viação os que são causados por veículos utilizados em transportes ferroviário.
Estatui o mencionado art. 503º, 1, do Cód. Civil, que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
Ter a direcção efectiva do veículo, significa ter o controlo da sua circulação ou possibilidade de circulação, mesmo que por intermédio de um terceiro. Como refere o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 1986, Vol. I, p 615 e 616, «é o poder real (de facto) sobre o veículo».
É evidente que, «in casu», a terceira ré (CP) tinha a direcção efectiva do com- boio interveniente no sinistro e utilizava-o no seu interesse, pelo que poderia responder pelas suas consequências, em termos de responsabilidade objectiva fundada no risco.
Sucede que, comprovadamente o sinistrado circulava pela via férrea, junto ao carril exterior, em clara infracção ao art. 23º do REPCF, o qual estabelece que nenhu- ma pessoa estranha ao serviço pode transitar nas linhas. E, estava claramente sob a influência do álcool, com uma taxa de alcoolemia de 2,86 g/l, de tal sorte que, apesar de o condutor do comboio (maquinista) ter buzinado, a cerca de 120 metros, não se desviou, podendo fazê-lo, como flui das fotografias acima referidas. Assim, é por demais evidente que o acidente radica em culpa exclusiva do próprio sinistrado.
Ora, a responsabilidade objectiva (pelo risco) do comitente («in casu», a ré CP) resultante do facto de ter a direcção efectiva do veículo, prevista no art. 503º, 1, do Cód. Civil, está excluída, nos termos do art. 505º do mesmo código, uma vez que o sinistro é imputável ao lesado (vítima), não sendo de aplicar o estatuído no art. 570º, por não haver culpa concorrente do comissário. É que, como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Coimbra Editora, 1967, Vol. I, p. 350 «… não pode admitir-se a concorrência entre o risco de um e a culpa do outro …. » - cfr., neste sentido, o Ac. do STJ, de 12-04-2005, Proc. 05A714, in www.dgsi.pt., em que se entendeu que «a nossa lei não aceita a concorrência da culpa com o risco».
E, mesmo que se perfilhe o entendimento sufragado no Ac. do STJ, de 06-11- -2008, Proc. 08B3331, também in www.dgsi.pt., no qual se considerou que a interpre- tação conjugada dos mencionados arts. 505º e 570º, 1, não permite a conclusão de ser possível haver concurso entre a «culpa exclusiva» do lesado e a responsabilidade pelo risco de circulação do titular da direcção efectiva do veículo, o acidente a que se reportam os autos não é indemnizável, porque, comprovadamente, resultou de culpa exclusiva do sinistrado. Nada se detecta, assacável a qualquer das rés ou a terceiros, nem mesmo qualquer circunstância fortuita, que possa minimamente ter contribuído para a ocorrência do acidente. Este radica apenas no facto de o sinistrado circular num local onde não o podia fazer legalmente, perigoso por natureza, não tendo ele o domínio pleno das suas capacidades de reacção, uma vez que estava fortemente alcoolizado.
Ora, a nossa lei civil adopta a teoria da causalidade adequada, na sua formula- ção negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano («in casu», o aparecimento do comboio) deixa de ser considerado como causa adequada, quando, para a ocorrência desse dano, tenham contribuído, decisivamente, circunstâncias anor- mais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. A circulação do sinistrado junto ao carril da linha férrea, apresentando-se fortemente alcoolizado, cons- titui um circunstancialismo de todo anormal.
Nesta conformidade não podendo o sinistro imputar-se a culpa de qualquer das rés e estando, como está, afastada a responsabilidade pelo risco, em face da culpa (exclusiva) do sinistrado, inexiste obrigação de indemnizar os danos.
É que, como refere o Prof. Antunes Varela, ob. cit., p. 635, a culpa do lesado na produção do dano, não havendo culpa do agente, exclui sistematicamente a obrigação de reparação desse dano. E, se o dano não dever ser juridicamente considerado como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência de algum facto praticado pela vítima, obviamente, também fica afastada a obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade objectiva pelo risco.
Em vista do que fica dito, a apelação tem de ser julgada improcedente.
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IV. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.