Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2701/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: NULIDADES
CONHECIMENTO OFICIOSO
DIREITOS DO ARGUIDO
CRIME DE INCÊNDIO
CRIME DE PERIGO
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 379º, Nº 2 DO CPP E 272º DO CP
Sumário: I- As nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, posto que o nº 2 do artº 379º do CPP, impõe que as mesmas sejam conhecidas em recurso.

No entanto, esse conhecimento oficioso não pode funcionar em termos absolutos em nome da salvaguarda dos direitos de defesa do arguido.

II- O dolo nos crimes de perigo não está directamente correlacionado com o dano/violação em concreto, mas sim com o próprio perigo.

III- Assim no crime de incêndio, o que releva não é o objecto , o local circunscrito onde o agente ateia o fogo, mas sim o perigo que daí possa resultar.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal desta Relação:

O Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido

A..., solteiro, agricultor, natural de S. Julião - Gouveia, onde nasceu a 05/09/1977, filho de António Ventura e de Idalina da Conceição Ribeiro Ventura, residente na Quinta das Ladeiras – S. Paio - Gouveia.

imputando-lhe a prática de

- um crime de incêndio, p. e p. pelo artº 272º, nº 1, al. a), do C. Penal (CP)

#

O arguido apresentou rol de testemunhas e contestação escrita, onde oferece o merecimento dos autos.

#

Efectuado o julgamento, sem documentação da audiência, foi proferida a sentença de fls. 182 e segs na qual se decidiu

- Absolver o arguido da prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo art. 272º, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que vinha acusado;

- Condenar o arguido, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 37º e 45º, n.º 1, al. m), do Dec.-Lei n.º 316/95, de 28.11, numa coima de trezentos e cinquenta euros (€ 350).

Inconformado, recorreu o MºPº, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
1. O Acórdão recorrido evidencia, de modo objectivo, o deficiente juízo de valoração atribuído ou não atribuído aos meios de prova produzidos e atendíveis sobre o crime de incêndio imputado ao arguido ,A....
2. Essa errónea apreciação da prova, a que o Tribunal de Primeira Instancia chegou contraia as regras da experiência e não é apreensível pela lógica do homem médio, razões pelas quais pode ser sindicada pelo Tribunal de Recurso.
3. Além do mais acolhido na douta decisão impugnada, resultaram provados todos os elementos, objectivos e subjectivos, constitutivos do crime de incêndio, na forma tentada, impondo-se , por isso, a condenação do arguido A..., pela prática , em autoria material , desse ilícito criminal, na pena de 15 meses de prisão.
4. Pena essa que deverá ser suspensa na sua execução, por período não inferior a quatro anos, com subordinação à observância , pelo arguido , de regras de conduta.
5. O douto acórdão recorrido não fez correcta aplicação do disposto nos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1 alíneas a) e b) e 272º, nº 1 al. a) todos do CP, e no artº 127º do CPP

O arguido respondeu pugnando pela improcedência do recurso para tal concluindo:
1. Não ficou provado, nem podia ficar, o dolo do arguido relativamente ao crime de incêndio.
2. Pelo contrário ficou provada a negligência.
3. O arguido nunca quis atear fogo à mata, nem quis colocar em risco a vida ou integridade física de ninguém.
4. Apenas queria limpar o caminho de acesso ao seu prédio.
5. Se assim é , não pode o arguido ser condenado no crime de incêndio a título doloso e consequentemente, também a condenação na sua forma tentada está impedida.

Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto emite parecer considerando que a sentença é nula por não cumprimento do artº 358º do CPP o que arrasta a invalidade de todos os actos posteriores ao encerramento da discussão e caso de assim se não entender deverá proceder o recurso.

Parecer que notificado não mereceu resposta.

#

Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência há que decidir :

O recurso está limitado à matéria de direito nos termos dos artºs 364º e 428º do CPP .

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As questões a resolver são as seguintes:
A. Nulidade da sentença - Falta de cumprimento do artº 358º do CPP.
B. Vícios da sentença - Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão – artº 410º, nº 2 al. b) do CPP
C. Vícios da sentença – Erro notório na apreciação da prova - artº 410º, nº 2 al. b) do CPP
D. Enquadramento Jurídico – Incêndio de relevo

Factos dados como provados:

1 – Em 21 de Agosto de 2003, cerca das 22.45 horas, no lugar denominado Quinta das Ladeiras - S. Paio - Gouveia, depois de ter consumido bebidas alcoólicas, e quando se dirigia para casa de seu pai, onde também residia, o arguido, utilizando para o efeito um cigarro aceso, ateou fogo às ervas e silvas existentes junto ao caminho por onde seguia a pé, num terreno pertencente a seu pai, António Ventura, fazendo-o nas proximidades da casa onde ambos habitavam, num local em declive - que favorecia a sua propagação, se houvesse vento forte.

2 – A cerca de 150 metros em linha recta, e em inclinação ascendente, existe uma mata com pinheiros; junto ao caminho existem algumas acácias, sendo que, no plano inclinado referido, existem cordões de videiras. À volta do local onde o arguido pegou fogo a terra encontrava-se cultivada, e existe um ribeiro a 20 ou 30 metros do mesmo local, em direcção oposta à mata referida.

3 - O fogo assim ateado propagou-se imediatamente à vegetação herbácea circundante, mercê do tempo seco e das temperaturas elevadas, com reduzidos níveis de humidade, que se faziam sentir.

4 - Altura em que o arguido, dirigindo-se para casa, dizia, em voz alta, "Agora chamem a GNR e os Bombeiros; isto está tudo por minha conta; deixa arder". Devido ao estado de embriaguês do arguido, os vizinhos não acorreram ao local para extinguirem o fogo.

5 - Tal fogo consumiu uma área de cerca de 0,005 ha, causando prejuízos patrimoniais de valor não apurado ao proprietário do aludido terreno, pai do arguido.

6 - Todavia, se não fosse a rápida e eficaz intervenção de diversos populares, que dele logo se aperceberam, alertando e chamando de imediato os Bombeiros Voluntários de Gouveia, que aí acorreram rapidamente e combateram o fogo durante cerca de meia hora, o incêndio deflagrado pelo arguido ter-se-ia facilmente propagado e consumido as vinhas, terrenos agrícolas e matas circundantes, face ao vento que se fazia sentir nessa noite.

7 - Na verdade, nessa ocasião, esteve em perigo de arder uma área com cerca de 15,5 ha, sendo 2 hectares de pinheiro bravo de diversas idades, com uma idade média de 18 anos, com o valor de € 3.222,56 (calculado segundo a Tabela da Direcção Geral de Florestas); 1,5 hectares de vinha, no valor de € 4.500,00; e 12 hectares de matos e acácias.

8 – Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, querendo e sabendo que ateava fogo a ervas e silvas existentes em terrenos de outrem e que, desse modo, provocava fogo, podendo prever que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno, o vento e o facto de a vegetação se encontrar seca, tal incêndio poderia alastrar-se e consumir as matas, vinhas e arvoredos existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado – não aceitando, porém, que tal sucedesse.

9 - Tinha ainda perfeito conhecimento de que a sua conduta era punida criminalmente.

10 – O arguido não tem antecedentes criminais.

11 – Tem como habilitações literárias a 4ª classe e trabalha na agricultura com o pai.

12 – É considerado um bom rapaz quando sóbrio, embriagando-se, porém, com frequência.

13 – Vive com o pai, que também consome bebidas alcoólicas em excessos

Factos não provados

- o arguido ateou o incêndio com um isqueiro que trazia consigo, de marca "Bic" e de cor verde, que se encontra documentado e examinado a fls. 15 e 45, juntando-lhe um cigarro aceso para facilitar a respectiva combustão;

- o arguido ateou fogo a pasto e matos secos;

- no local onde o arguido ateou o incêndio existiam giestas, silvas, fetos e outros matos densos, videiras, acácias, e árvores de fruto dispersas e outro arvoredo;

- o local onde ocorreu o incêndio era de acessos difíceis;

- alguns populares deslocaram-se para o local, onde combateram prontamente o incêndio;

- o incêndio deflagrado pelo arguido ter-se-ia facilmente propagado e consumido casas de campo e de habitação existentes nas proximidades, pertencentes a diversas pessoas, entre as quais se contavam os proprietários da fábrica Estevão Ubach, Aurélio e Manuel Candeias, Uriel Caramelo, Aníbal Pedro e outras, de valor largamente superior a € 4.000,00;

- instantes depois, ao ser confrontado pela GNR e Bombeiros Voluntários quanto à autoria do incêndio, o arguido continuou a falar em voz alta, dizendo que "queria queimar aquilo tudo", acrescentando "agora foi aqui, mas amanhã é na parte de cima, tenho de vos dar trabalho com fartura; isto é para arder tudo, tenho que ficar com a casa limpa";

- O arguido queria e sabia que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno e o facto de a vegetação ser densa e se encontrar seca, tal incêndio era susceptível de se alastrar facilmente e de consumir casas de campo e de habitação e outros bens existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado, e bem assim a vida integridade física dos respectivos habitantes.

Convicção do Tribunal

A matéria de facto dada como provada na forma como atrás ficou demonstrada resultou da ponderação crítica dos seguintes meios de prova:

- declarações do arguido, que admitiu ter provocado o incêndio com um cigarro, e encontrar-se embriagado;

- O depoimento das testemunhas foi valorado nos seguintes termos:

Maria da Conceição Caramelo e Uriel José Guedes Caramelo, vizinhos do arguido, viram o arguido junto ao caminho, embriagado, estando já o fogo ateado, dizendo as palavras constantes dos factos provados. Afirmaram ainda que no local onde o fogo foi ateado existiam apenas ervas e silvas, encontrando-se a vinha e a mata a alguma distância, e que estava vento.

Afonso Sales e José António Melício, inspectores da polícia judiciária, afirmaram ser possível a propagação do incêndio, face ao vento que se fazia sentir. O primeiro referiu ainda ter efectuado o reconhecimento ao local com o arguido, tendo-lhe este indicado o local onde iniciou o fogo.

Carlos Alberto Mendes da Silva, residente na localidade, que conhece o arguido há muitos anos, explicou com clareza a configuração do local, tendo ainda referido encontrar-se a terra cultivada, e as vinhas e mata a alguma distância, bem como o ribeiro.

José António de Almeida Mendes, bombeiro, foi com a PJ ao local, tendo recebido o aviso de incêndio, por telefone, nos Bombeiros.

Jaime José Sequeira, bombeiro que foi, conjuntamente com outros, combater o incêndio, confirmou que apenas arderam silvas e ervas, o plano inclinado, as condições atmosféricas que se faziam sentir, a ausência de perigo do incêndio atingir habitações, e os acessos difíceis às matas (que não ao caminho onde o fogo ocorreu).

António Gouveia Mendes Figueiredo, cabo da G.N.R., foi ao local, confirmou que apenas existiam no local ervas e silvas, e a configuração do local.

Messias da Fonseca Fernandes, mestre florestal que elaborou o relatório junto a fls. 62 a 67 dos autos, cujo teor confirmou e explicou, sendo claro na forma como extraiu as conclusões do mesmo constantes. Confirmou a inexistência de perigo para habitações, no lado onde se situa o ribeiro, e o perigo para a mata e videiras, o que sucederia apenas em caso de vento forte.

Quanto ao dolo e negligência na criação do perigo, na forma dada como provada, resultam das declarações do arguido, conjugadas com a experiência comum: na verdade, e pese embora se acredite que o arguido não pretendia, nem acreditou, que o incêndio alastrasse à área que correu, objectivamente, perigo de arder, entende-se que, face às condições atmosféricas que se verificavam, que devia tê-lo previsto, caso pesasse cuidadosamente as consequências da sua conduta.

Serviram ainda para formar a convicção do Tribunal as fotografias de fls. 13 a 20, 60 e 61, relatório de fls. 30, mapas de fls. 67 e 68, e o certificado do registo criminal de fls. 114.

Relativamente às condições pessoais do arguido, para além das suas declarações, teve-se em conta o depoimento das testemunhas Manuel Correia Candeias e Justino Ferreira Barbas, que conhecem o arguido há muitos anos.

No que tange aos factos não provados, resultam directamente da prova do contrário, conforme acima se referiu, e se encontra incluído nos locais próprios. As testemunhas que têm conhecimentos técnicos sobre a matéria em causa nos autos (Messias Fernandes, principalmente, e ainda Jaime Sequeira) excluíram, sem margem para dúvidas, o perigo de o fogo atingir qualquer habitação. Quanto aos demais, não foi efectuada qualquer prova sobre os mesmos incidente

A- Nulidade da sentença - Falta de cumprimento do artº 358º do CPP

Levanta esta questão o Exmo. Procurador Geral Adjunto pois entende que se verifica a nulidade insanável a que alude o nº 1 b) , nos termos do nº 2 , ambos do artº 379º do CPP já que o tribunal a quo alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação sem ter comunicado e concedido ao arguido o tempo necessário para a preparação da defesa.

Decidindo:

Resulta dos autos que o arguido foi acusado da prática de um crime de incêndio, p. e p. pelo artº 272º, nº 1, al. a), do C. Penal (CP) e foi condenado pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 37º e 45º, n.º 1, al. m), do Dec.-Lei n.º 316/95, de 28.11, numa coima de trezentos e cinquenta euros (€ 350), sem ter sido dado cumprimento ao artº 358º do CPP.

O arguido conformou-se com esta decisão.

Este nulidade é de conhecimento oficioso, posto que o nº 2 do artº 379º do CPP, impõe que a mesma seja conhecida em recurso. Entendemos ,no entanto, que esse conhecimento oficioso não pode funcionar em termos absolutos.

Vejamos:

Na génese de qualquer instituto há que verificar qual a sua razão de ser, a do inserto no art. 358 do Cod. Proc. Penal é a garantia dos direitos de defesa do arguido. Este sabia qual o objecto do processo, definido na acusação, de acordo com a estrutura acusatória do processo penal.

De acordo com Castanheira Neves (Sumários Criminais), citado na de Simas Santos e Leal Henriques (pág.412, vol. II)," compreendemos que a definição e delimitação do objecto do processo deverá orientar-se, por um lado, decerto no sentido de ser uma garantia - a garantia de que apenas o que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal - mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada.

Quer dizer, no problema do objecto do processe deparamos com o próprio problema jurídico do processo criminal: se este terá a sua solução justa na equilibrada ponderação entre o interesse público da aplicação do direito criminal (e da eficaz perseguição e condenação dos delitos cometidos)e o direito incondicional do réu a uma defesa eficaz e ao respeito pela sua personalidade moral, do mesmo modo a solução válida do problema do objecto do processo será apenas aquela que em todos os pontos em que ele releve traduza também um justo equilíbrio entre esse direito e aquele interesse. E, assim, a identidade do objecto do processo não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá também ter limites tão largos e indeterminadas que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe realizar." ( Ac. do STJ de 7.11.02 no processo nº 02P3158

)

Ora como referimos supra o arguido conformou-se com a “convolação” e consequente decisão.

Tanto se afigura como suficiente para que se possa considerar como improcedente a arguida nulidade.

#

B- Vício da Sentença – Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão- artº 410º, nº 2 al. b) do CPP

O vício em apreço, como resulta da letra do artº 410º, nº 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é ,um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável.

Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do artº 410º do CPP, como decorre da letra da lei só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo ( -Cfr. entre outros os acs. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ(STJ)II,III,197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação( artº 426º, nº 1 do CPP).

Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas.

É o que acontece no caso em apreço.

Na verdade o arguido vinha acusado de um crime doloso de incêndio: “Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, querendo e sabendo que ateava fogo a ervas e silvas existentes em terrenos de outrem e que, desse modo, provocava fogo, podendo prever que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno, o vento e o facto de a vegetação se encontrar seca, tal incêndio poderia alastrar-se e consumir as matas, vinhas , arvoredos, casa de campo e de habitação e outros bens existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado, e bem assim a vida ou integridade física dos respectivos habitantes.”

Ficou provado que: Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, querendo e sabendo que ateava fogo a ervas e silvas existentes em terrenos de outrem e que, desse modo, provocava fogo, podendo prever que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno, o vento e o facto de a vegetação se encontrar seca, tal incêndio poderia alastrar-se e consumir as matas, vinhas e arvoredos existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado - não aceitando, porém, que tal sucedesse .

Ficou não provado que : O arguido queria e sabia que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno e o facto de a vegetação ser densa e se encontrar seca, tal incêndio era susceptível de se alastrar facilmente e de consumir casas de campo e de habitação e outros bens existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado, e bem assim a vida integridade física dos respectivos habitantes.

Na fundamentação factual o tribunal a quo alicerçou-se nas declarações do arguido, que admitiu ter provocado o incêndio com um cigarro , e encontrar-se embriagado e quanto ao dolo e negligência na criação do perigo, na forma dada como provada, resultam das declarações do arguido, conjugadas com a experiência comum: na verdade, e pese embora se acredite que o arguido não pretendia, nem acreditou, que o incêndio alastrasse à área que correu, objectivamente, perigo de arder, entende-se que, face às condições atmosféricas que se verificavam, que devia tê-lo previsto, caso pesasse cuidadosamente as consequências da sua conduta.

Daqui decorre que o tribunal a quo afastou qualquer tipo de dolo incluindo o dolo eventual( o agente ao actuar conformou-se com a possível realização do facto criminoso como consequência da conduta - artº 14º, nº 3 do CP) e a negligência (consciente – o agente previu a realização do crime e confiou em que ele não teria lugar ou mostrou-se indiferente a essa produção, inconsciente - o agente não previu – como podia e devia – aquela realização do crime – artº 15º do CP).

É neste ponto, (devia tê-lo previsto, caso pesasse cuidadosamente as consequências da sua conduta), que consideramos constar do texto da decisão posições antagónicas e inconciliáveis não sendo perfeita a compatibilidade entre os todos os factos provados e entre estes e os não provados quando interligados com a fundamentação.

Na verdade tendo-se provado que o agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, querendo e sabendo que ateava fogo a ervas e silvas existentes em terrenos de outrem e que, desse modo, provocava fogo, podendo prever que atenta a época do ano, as temperaturas elevadas, os baixos níveis de humidade, o relevo do terreno, o vento e o facto de a vegetação se encontrar seca, tal incêndio poderia alastrar-se e consumir as matas, vinhas e arvoredos existentes nas proximidades, pondo, dessa forma, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado( Bold e sublinhado nossos) ,consideramos que há contradição quando na fundamentação factual, invocando-se até as regras da experiência comum, que apontam decisivamente em sentido contrário, se afirma que devia tê-lo previsto, caso pesasse cuidadosamente as consequências da sua conduta.

Deste modo, não obstante este tribunal de recurso dispor de poderes de cognição amplos o que é certo é que neste caso, não tem possibilidade de decidir a causa sem o recurso ao reenvio do processo , já que não tem acesso a toda a prova oralmente produzida em audiência.

Assim sendo o processo terá de ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sanação deste vício ( artº 426º, nº 1 do CPP)

B- Vício da sentença - Erro notório na apreciação da prova – artº 410º, nº 2 c) do CPP

O Digno recorrente argui este vício e, não obstante, se esforçar no sentido de dar a ideia do contrário( não está nem se pretende confundir a livre ou íntima convicção do julgador com a mera convicção subjectiva, emocional e imotivável ) o certo é que na argumentação expendida acaba por não o apresentar ou enquadrar como vício da sentença, tal como o mesmo se encontra estabelecido na lei, isto é como vício resultante do texto da decisão recorrida, mas antes como resultado de uma imprecisa , deficiente e incorrecta valoração e apreciação da prova.

Acresce que o erro notório na apreciação da prova, enquanto vício previsto na referida al. c) do artº 410º, terá de ser patente, isto é susceptível de ser detectado pelo homem comum, perceptível a um observador médio, pelo que se consubstancia numa incorrecção evidente da apreciação da prova. Não se trata pois de um qualquer erro de apreciação, mas sim um erro claro e inequívoco, de que o leigo se apercebe através da mera leitura do texto da decisão.

Assim, estaremos perante erro relevante, neste particular, quando da leitura da decisão impugnada, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que os factos nela dados como provados não podem ter acontecido , ou que os factos nela dados como não provados não podem deixar de ter acontecido, isto é, quando os factos dados como provados e como não provados se apresentem e revelem inequivocamente desconforme impossíveis ou seja quando aqueles traduzam uma situação fáctica irreal ,utópica. Estaremos ainda perante erro relevante quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.( Cfr. o Ac. do STJ de 96-10-31, proferido no processo nº 478/96)

Ora do exame e análise da decisão impugnada não se detecta este vício.

D- Elementos constitutivos do crime de incêndio - artº 272º do CP

Estabelece o artº 272º do CP:
1. Quem:

a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara;

…..

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

2- Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com a pena de prisão de 1 a 8 anos.

3- Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência , o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.

Tutela-se aqui(al. a)) a conduta intencional (dolosa) do agente, virado para a deflagração de um incêndio de relevo, devendo o perigo criado com tal comportamento assumir igualmente carácter intencional.

Ou seja: quer-se e provoca-se um incêndio, desejando e aceitando correr o risco do perigo que à acção está associado, traduzindo-se a conduta, pois, em pôr fogo o corpo, a vida ou valiosa fazendo de terceiro”( - Código Penal Anotado,1996, Vol. II- pag. 811 – Leal Henriques e Simas Santos.)

No capítulo III do título IV do Código Penal, onde está inserido este artº 272, cuja epígrafe é “Dos crimes de perigo Comum”, o legislador enumera as situações ou comportamentos que podem criar o perigo , e que são merecedoras de tutela penal.

Tal como resulta do ponto 31 do preâmbulo do CP de 1982 ( não houve neste aspecto alterações dignas de registo) o que esta primacialmente em causa, neste capítulo, não é dano, mas sim o perigo. “ A lei penal relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal seja preenchido(…) pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social” ( - Eduardo Correia, “ As grandes Linhas da Reforma Penal – Jornadas de Direito criminal, CEJ,pag. 24.)

Na esteira de J. Marques Borges( - Dos Crimes de Perigo Comum e Crimes Contra a Segurança das Comunicações – Notas ao Código Penal de 1982 – rei dos Livros – 1985)) diremos que um crime de perigo se caracteriza em primeiro lugar, pela inexistência de uma lesão efectiva de bens ou interesses, ou seja a conduta do agente há-de criar uma situação ,ou há-de traduzir-se num comportamento que, de acordo com a experiência comum e os conhecimentos existentes, possa originar um dano.

Acresce que, em segundo lugar, deve ser susceptível de causar um dano não controlável, ou melhor dito difuso, com potência expansiva, sendo nesta aspecto, apto a poder causar alarme social.

Daí que, neste tipo de crimes, o legislador penal não possa esperar que o dano se produza, pois as condutas ilícitas podem causar efeitos altamente danosos, por expansivos ,pelo que a protecção do bem jurídico tem de recuar para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

Assim para a caracterização deste tipo de crime não será de atender , como acontece na sentença ora recorrida(Tal fogo consumiu uma área de cerca de 0,005 há, causando prejuízos patrimoniais de valor não apurado ao proprietário do aludido terreno, pai do arguido ) ao dano efectivamente causado.

“Nos crimes de perigo comum, a protecção dos bens jurídicos começa logo que o perigo se manifesta”( - Lopes Rocha, A Parte especial do Novo Código penal – Jornadas de Direito Criminal, CEJ,1983,pag. 370)) –

Por outro lado, não obstante estarmos perante um crime de perigo o certo é que a lei não deixa de exigir, para a consumação do mesmo, que o agente produza - de forma intencional ou negligente – um resultado, qual seja um incêndio de relevo.

Assim podemos considerar que os elementos do tipo legal do crime previsto no artº 272º, nº 1 al. a) são:

- Provocação de incêndio de relevo.

- Que crie perigo em

- Bens patrimoniais alheios

- De valor elevado.

O conceito de incêndio de relevo, introduzido pelo D.L. 48/95 de 15/3,é, dada a sua indeterminabilidade , sempre difícil de fixar.

No entanto e lei dá-nos desde logo a possibilidade de o caracterizar quando se refere a incêndio provocado em edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara.

Essa enumeração é meramente exemplificativa e por isso consideramos, também ,como incêndio de relevo o que causa alarme social, nomeadamente aquele que não consiga ser apagado senão pela intervenção de bombeiros. A propósito cumpre frisar que não basta uma mera intervenção dos bombeiros. É necessário que essa intervenção se justifique e seja determinante no evitar da propagação.

É necessário, ainda, que esse incêndio crie perigo, que haja riscos para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para o edifício ou construção, o meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara.

Deste modo consideramos que no caso se verifica o elemento objectivo do ilícito em causa.

É que o dolo nos crimes de perigo não está directamente correlacionado com o dano/violação em concreto, mas sim com o próprio perigo. Concretizando, o que releva não é o objecto , o local circunscrito onde o agente ateia o fogo, mas sim o perigo que daí possa resultar, ou seja o facto de, como no caso em apreço, ter ateado o fogo a ervas e silvas existentes junto ao caminho por onde seguia(ponto 1) e de o fogo se ter propagado rapidamente à vegetação herbácea circundante, mercê do tempo seco e das temperaturas elevadas, com reduzíveis níveis de humidade, que se faziam sentir(ponto3)não permite só por si considerar que estamos ou não perante um “incêndio de relevo”, teremos que perspectivar os riscos, o perigo que daí possa decorrer.

Esse perigo está bem patente na factualidade dada como provada nos pontos 6 e 7.( Todavia, se não fosse a rápida e eficaz intervenção de diversos populares, que dele logo se aperceberam, alertando e chamando de imediato os Bombeiros Voluntários de Gouveia, que aí acorreram rapidamente e combateram o fogo durante cerca de meia hora, o incêndio deflagrado pelo arguido ter-se-ia facilmente propagado e consumido as vinhas, terrenos agrícolas e matas circundantes, face ao vento que se fazia sentir nessa noite. Na verdade, nessa ocasião, esteve em perigo de arder uma área com cerca de 15,5 ha, sendo 2 hectares de pinheiro bravo de diversas idades, com uma idade média de 18 anos, com o valor de € 3.222,56 (calculado segundo a Tabela da Direcção Geral de Florestas); 1,5 hectares de vinha, no valor de € 4.500,00; e 12 hectares de matos e acácias).

Concluímos assim que se verifica o elemento objectivo do ilícito.

#

Nestes termos se decide:
- Declarar nulo o acórdão recorrido, bem como o julgamento efectuado, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, o qual incidirá sobre a totalidade do seu objecto, sendo competente para a sua realização o tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal a quo, que se encontrar mais próximo(artº 426º. A do CPP)

#

Sem tributação.

#

São devidos honorários ao defensor nomeado e em audiência realizada neste Tribunal da Relação a adiantar.

#

#
Coimbra, 2004-