Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
405-K/1996.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: FALÊNCIA
EFEITOS EM RELAÇÃO AO FALIDO DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
LEVANTAMENTO DESSES EFEITOS A REQUERIMENTO DO FALIDO
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 238º, Nº 1,AL. D), E 239º, Nº 1, DO CPEREF (DEC. LEI Nº 132/93, DE 23/04)
Sumário: I – Nos termos dos artºs 238º, nº 1, al. d), e 239º, nº 1, do CPEREF (Dec. Lei nº 132/93, de 23/04, na redacção do Dec. Lei nº 315/98, de 20/10), “os efeitos decorrentes da declaração de falência, relativos ao falido, podem ser levantados pelo juiz, a pedido do interessado, quando não tenha havido instauração de procedimento criminal e o juiz reconheça que o devedor, ou, tratando-se de sociedade ou pessoa colectiva, o respectivo administrador, agiu no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal, caso em que o juiz decretará a reabilitação do falido”.

II - Os referidos efeitos são, entre outros, os seguintes: fixação de residência ao falido – artº 128º, nº 1, al. a), do CPEREF; dever de apresentação pessoal do falido em juízo – artº 149º do CPEREF; inibição do falido para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa – artº 148º, nº 1, do mesmo diploma.

III - Donde resulta que para o levantamento desses efeitos da declaração de falência não só é necessário que seja o falido a requerer tal reabilitação, mas também que por ele seja alegado e provado que agiu no exercício da sua actividade com lisura e com a diligência normal, isto é, de boa fé, honradamente, de forma atenta e cuidada à sua actividade, com inteiro respeito pelos interesses dos seus contratantes, sempre procurando não lesá-los nem prejudicá-los.

IV - Ou, por outras palavras, cumpre ao falido alegar e provar que a sua declaração de falência proveio de circunstâncias exteriores à sua acção e diligência normal, isto é, que foram factores exteriores ou estranhos à sua actividade e empenho profissional que conduziram à sua situação de insolvência, tendo o agente ou falido sempre agido de forma responsável, competente, empenhada e diligente na sua actividade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, corre termos um processo de falência requerido pelo Banco A..., contra B...e mulher C..., ambos com residência conhecida na Austrália e quando em Portugal em Quinta dos Ramalhais, Alcofra, no qual pelos falidos foi apresentado requerimento a solicitarem uma declaração de cessação dos efeitos decorrentes das respectivas declarações de falência, nos termos do artº 238º, nº 1, al. d), do CPEREF.
Para tanto e muito em resumo alegaram que a declaração de falência a eles respeitante foi proferida já há nove anos, que não se verifica a instauração de procedimento criminal contra ambos, e que nunca prestaram falsas declarações à Banca sobre a sua verdadeira situação patrimonial, pelo que não se pode afirmar que a sua conduta, enquanto garantes de passivos titulados por terceiros, é culposa, ou sequer censurável.
Alegam ainda, que caso o processo de liquidação corresse em tempo razoável, não superior a dois/três anos, já agora os falidos estariam libertos da sua situação de falência.
II
Ouvido o liquidatário judicial nomeado na referida falência, por ele foi informado nos autos que tal requerimento poderia ser apreciado após o encerramento do processo.

De entre os credores dos falidos manifestaram-se a C.G.D. e o Banco A..., ambos no sentido de dever ser indeferida a pretensão dos falidos, tanto mais que os autos de falência ainda nem sequer estão concluídos, além de que nenhum dos credores cobrou qualquer parte dos seus créditos.
III
Produzida prova sobre tal incidente, designadamente com inquirição de testemunhas, foi proferida decisão a julgar improcedente o pedido de levantamento dos efeitos da falência decretada quanto aos Requerentes, conforme certidão de fls. 163 a 171 deste apenso de recurso de agravo.
IV
De tal decisão interpuseram recurso os Requerentes/Falidos, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata e em separado, e com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentaram os Agravantes concluíram, de forma útil, do seguinte modo:
1ª – No presente incidente a actividade ou comportamento dos falidos há-de ser predicado à luz dos conceitos legais de “lisura” e de “diligência normal”, abrangendo o comportamento dos falidos enquanto pessoas singulares e o comportamento do falido marido enquanto administrador do grupo empresarial conhecido como “D...".
2ª – A falência dos Recorrentes derivou unicamente da falência das empresas do D..., dado que os Recorrentes eram garantes do passivo desse grupo empresarial.
3ª – As causas da falência desse grupo empresarial, que laborava no sector da construção civil e das obras públicas, radicaram na crise verificada nesse sector no início dos anos 90 do século passado.
4ª – Não se encontra indiciado nos autos de falência qualquer acto que desabone a favor da lisura, no sentido de lealdade e verdade, com que os falidos geriram a sua relação com a banca.
5ª – O despacho recorrido considerou, mas mal, não estar provada a inexistência de qualquer acto de dissipação de bens pessoais dos falidos, para obviar à assunção das suas responsabilidades enquanto garantes das empresas do D..., nem a inexistência de quaisquer negócios jurídicos lesivos dos interesses dos credores.
6ª – A verdade é que os Recorrentes não têm meios de fazer prova de que, para além dos bens apreendidos para a massa falida, outros haveria em véspera da falência que foram objecto de alienação em detrimento e com prejuízo para os seus credores.
7ª – O Tribunal a quo deveria ter dado tais factos como provados, por acordo, já que nem os credores sociais nem o liquidatário impugnaram tal factualidade.
8ª – O despacho sob recurso predica como falta de lisura e de diligência normal o facto dos falidos terem garantido dívidas sem que se tivessem assegurado de que dispunham de meios patrimoniais para cumprirem as obrigações assumidas.
9ª – Este juízo representa uma petição de princípio que revela o preconceito segundo o qual um falido é, por natureza, culpado da sua situação de falência, não podendo, por isso, ser reabilitado.
10ª – O Tribunal, ao assim julgar, paralisa o instituto da reabilitação a que os falidos deitaram mão.
11ª – Não se afigura exigível aos falidos, como condição do levantamento dos efeitos da declaração da falência, que os mesmos efectuem o pagamento ou demonstrem que diligenciaram no sentido de efectuar o pagamento de créditos.
12ª – O despacho recorrido violou o princípio da presunção de inocência, já que presume os falidos culpados de factos que, a verificarem-se, enquadrariam tipos penais, o artº 490º, nº 2, do CPC, o nº 2 do artº 342º do C. Civ., e o disposto na al.d) do nº 1, do artº 238º CPEREF.
13ª – Termos em que deverá ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, ser substituído por outro que julgue procedente o pedido.
V
Contra-alegou o Digno Agente do Ministério Público, onde defende, muito em resumo, que da matéria dada como assente não resultam factos dos quais se possa retirar, com toda a segurança, que os falidos, enquanto pessoas individuais, tenham agido com honestidade, de boa fé, com rectidão e seriedade, com aplicação, cuidado e empenho…
Que, por isso, deve improceder o presente recurso e deve ser mantida a decisão recorrida.
VI
Na 1ª instância ainda foi proferido despacho de sustentação, conforme fls. 183 deste apenso, com remissão para os fundamentos da decisão recorrida.

Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, nada obstando ao conhecimento do seu objecto.
E tal objecto passa pela reapreciação da decisão recorrida, isto é, passa pelo conhecimento do pedido formulado no presente incidente, isto é, saber se pode ou não ser proferida decisão a declarar a cessação dos efeitos legais da declaração de falência dos Requerentes/Agravantes.
Resulta a pretensão deduzida pelos Requerentes do disposto nos artºs 238º, nº 1, al. d), e 239º, nº 1, do CPEREF (Dec. Lei nº 132/93, de 23/04, na redacção do Dec. Lei nº 315/98, de 20/10), disposições que se integram no Capítulo XIII – Cessação dos efeitos da falência em relação ao falido - do Título III – Processo de falência -, do CPEREF, segundo os quais “os efeitos decorrentes da declaração de falência, relativos ao falido, podem ser levantados pelo juiz, a pedido do interessado, quando não tenha havido instauração de procedimento criminal e o juiz reconheça que o devedor, ou, tratando-se de sociedade ou pessoa colectiva, o respectivo administrador, agiu no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal, caso em que o juiz decretará a reabilitação do falido”.
Os referidos efeitos são, entre outros, os seguintes: fixação de residência ao falido – artº 128º, nº 1, al. a), do CPEREF; dever de apresentação pessoal do falido em juízo – artº 149º do CPEREF; inibição do falido para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa – artº 148º, nº 1, do mesmo diploma.
Comentando o citado artº 238º, José de Oliveira Ascensão, in “Efeitos da Falência sobre a Pessoa e Negócios do Falido”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 55, pgs. 644 e segs, diz-nos que “...manifesta-se a extraordinária afeição do Código de Falência pelo falido. Mesmo os efeitos genericamente estabelecidos, no que respeita à situação patrimonial do falido, logo poderão ser levantados pelo juiz, quando se fizer a demonstração de que o falido actuou no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal. Nem sequer se exige o decurso de qualquer prazo. Em toda a disciplina dos efeitos da falência sobre a pessoa do falido foi o interesse do falido o motor principal das alterações legislativas”.
Donde resulta que, neste aspecto, cumpre sempre ter presente o interesse do falido, mas para o efeito não só é necessário que seja ele a requerer tal reabilitação, mas também que por ele seja alegado e provado que agiu no exercício da sua actividade com lisura e com a diligência normal, isto é, de boa fé, honradamente, de forma atenta e cuidada à sua actividade, com inteiro respeito pelos interesses dos seus contratantes, sempre procurando não lesá-los nem prejudicá-los.
Ou, por outras palavras, cumpre ao falido alegar e provar que a sua declaração de falência proveio de circunstâncias exteriores à sua acção e diligência normal, isto é, que foram factores exteriores ou estranhos à sua actividade e empenho profissional que conduziram à sua situação de insolvência, tendo o agente ou falido sempre agido de forma responsável, competente, empenhada e diligente na sua actividade.
No presente incidente temos que pelos Requerentes foi alegado, muito em resumo, que “aos mesmos não pode ser imputado qualquer acto de dissipação de bens pessoais para obviar à assunção da sua responsabilidade enquanto garantes das empresas do D...; os falidos não efectuaram a alienação, à última hora, de qualquer dos bens inscritos no seu património, tendo todo o património pessoal dos falidos sido pacificamente arrolado a favor da massa falida. Os falidos nunca prestaram falsas declarações à Banca sobre a sua verdadeira situação patrimonial, por forma a que possa afirmar-se que a sua conduta, enquanto garantes de passivos titulados por terceiros, é culposa, ou sequer censurável, na medida em que a banca poderia contar legitimamente com um ressarcimento efectivo dos seus créditos por via do património pessoal dos falidos”.
Porém, entre os factos dados como assentes no presente incidente, ressaltam, com interesse, para a presente abordagem, os seguintes pontos:
1- Por sentença proferida em 7/08/1998, foi decretada, sem prévia audição dos falidos, a falência de B... e de C..., cujo paradeiro era, nessa altura, desconhecido;
14- O falido administrava, de facto e de direito, as sociedades que faziam parte do chamado D..., das quais a maioria foi declarada falida.
17 – O falido assumiu em 1989 a gerência da sociedade Tevisil e projectou a compra de bens imóveis por esse sociedade na zona de Viseu.
21 – Em Outubro de 1993 os falidos celebraram com alguns bancos credores do D... um acordo de reestruturação do passivo do D... que, no essencial, previa o pagamento escalonado da dívida, com constituição de garantias reais a favor dos bancos envolvidos, nomeadamente a constituição de um penhor sobre 62,5% das acções da sociedade Tevisil, e de uma dação em pagamento a favor desse conjunto de bancos, tendo por objecto o capital social da sociedade Olafragma Empreendimentos Imobiliários, S. A., assim como a transmissão da posição contratual da Tevisil a favor dos bancos nos vários contratos de compra e venda de imóveis que havia celebrado.
22 – Os falidos tinham a sua vida pessoal e profissional organizada em parte na Austrália (onde ainda se encontram a residir) e em parte em Portugal.
23 – Ainda não se encontras concluída a liquidação do activo e ainda não existe sentença definitiva de verificação e de graduação dos créditos reclamados.
24 – Pelo menos até 22/05/2006 não foi instaurado qualquer inquérito contra os falidos por factos relacionados com a falência.
25 – Os falidos hipotecaram uma casa sita em Portugal para garantia do pagamento de parte das suas dívidas.

Apreciando os fundamentos alegados pelos falidos/requerentes e bem assim a matéria de facto apurada, foi ponderado na decisão recorrida que “se é certo que da factualidade apurada resulta que grande parte das dívidas dos falidos decorre da assunção de garantias prestadas a favor das sociedades do D..., que, na sua maioria, faliram, não menos certo é que não resulta da factualidade apurada que a impossibilidade de solver todas as dívidas assumidas pelos falidos tenha ocorrido por factores externos à própria actuação dos falidos e que estes tenham actuado com a correcção, o zelo, a honradez exigível de um bom pai de família colocado na posição concreta dos falidos à data da declaração de falência e em momento posterior à mesma, Que cumpre realçar que não resulta da factualidade apurada que ao garantirem dívidas de sociedades que vieram a ser declaradas falidas, os falidos tenham actuado com lisura e diligência normal, sendo certo que a assunção de obrigações para garantia de dívidas dessas sociedades aponta antes para uma situação de imprevidência e negligência dos falidos, ao não se assegurarem de que poderiam ter de vir a dispor do património e/ou liquidez necessários para cumprirem as obrigações assim assumidas. Também não resulta da factualidade apurada que, em momento posterior, os falidos tenham diligenciado pela obtenção dos meios necessários para remediar a situação criada e solverem as suas dívidas”.
Na sequência de tal ponderação, foi decidido julgar improcedente o pedido de levantamento dos efeitos da falência formulado pelos falidos, ao abrigo do disposto no artº 238º, nº 1, al. d), do CPEREF.
Ora, afigura-se-nos que não estando aqui em causa uma possibilidade de cessação dos efeitos legais da declaração da falência dos requerentes por efeito do decurso de tempo para o efeito – artº 238º, nº 1, al. c) -, apenas temos de cuidar de saber se, não tendo havido instauração de procedimento criminal, os Requerentes lograram provar, como lhes compete – artº 342º C. Civ. – que agiram no exercício da sua actividade, que deu aso à declaração de falência, com lisura e com a diligência normal que era de prever para a sua situação.
Convenhamos que assim não sucede, já que não podemos considerar que os Requerentes tenham agido com as ditas características de seriedade na sua actividade anterior à declaração da sua falência, porquanto tendo sido o falido B... quem administrou as sociedades do chamado D..., tal não obstou a que a maioria delas tenha sido declarada falida, sendo até certo que foi o requerente/falido quem projectou a compra de imóveis por uma dessas sociedades na zona de Viseu, donde ter sido ele o responsável pelo “bom ou mau” negócio daí resultante.
Mas nada mais se apurou nem os Requerentes alegaram algo mais em seu abono, designadamente que tenha havido circunstâncias exteriores a determinarem a sua própria declaração de falência, pelo que é notório que nada se provou ou apurou acerca da alegada lisura de comportamentos dos Requerentes no desempenho das suas actividades em Portugal, o que, se assim tivesse sucedido, decerto que não tinha sido suscitada a declaração de falência quer dos Requerentes quer das sociedades por eles administradas, com as consequências patrimoniais que daí resultaram para os credores.
Pelo que nada nos permite poder considerar que os Requerentes, que vivem na Austrália, tenham, de facto, sido zelosos, cuidadosos e sérios na gestão dos seus negócios em Portugal, pois que se assim tivesse sucedido nunca teria havido a série de falências que surgiram, ligadas a actividades dos Requerentes e a sociedades por eles dirigidas e controladas.
Face ao que temos de concordar com a 1ª instância, isto é, há que manter a decisão que julgou improcedente o pedido formulado nesta acção, não havendo lugar, pois, a que sejam levantados os efeitos da declaração da falência dos Requerentes, com o que se nega provimento ao presente recurso
VII
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao presente recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas do presente recurso pelos Requerentes.
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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /