Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1591/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO - DÍVIDA HOSPITALAR
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 5º DO DL Nº 218/99, DE 15/07 .
Sumário: O artº 5º do DL 218/99 estabelece uma inversão do ónus da prova, não obrigando os serviços integrados no SNS a alegar e a provar as circunstâncias do acidente, designadamente que o segurado agiu com culpa, cabendo-lhe apenas alegar e provar a prestação dos cuidados de saúde e o facto gerador da responsabilidade, e imputando à seguradora o ónus de demonstrar a falta de culpa do seu segurado .
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o A..., com sede na Rua das Olhalvas, em Leiria, instaurou contra a “ B...” , com sede no Largo do Calhariz, nº 30, em Lisboa, a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 5.234,61 , acrescida de juros de mora vencidos, no montante de € 44,17 , e de juros de mora vincendos até efectivo pagamento .
Alegou, muito em resumo, que no dia 30/06/2002, pelas 00H50, ocorreu um acidente de viação na E. N. 109, km 150,350, localidade de Monte Redondo, no qual foi interveniente o veículo matrícula 67-10-ME, conduzido por C... .
Que na referida via seguia a caminhar o peão D..., junto à berma, no qual foi embater o veículo, causando-lhe várias lesões .
Que tendo esse peão sido transportado aos serviços clínicos do A., aqui ficou internado até ao dia 9/07/02, tendo-lhe sido efectuados diversos tratamentos médicos, no valor do montante peticionado .
Que a Ré é responsável pelo pagamento desse valor, já que através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 60 / 5509081 assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela circulação desse veículo .
II
Contestou a Ré alegando, muito em resumo, que o acidente em causa não ocorreu de modo a poder ser imputada a culpa pelo mesmo ao condutor do veículo, mas antes ao próprio sinistrado, que caminhava sobre o asfalto, a cerca de 1,90 metros da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo, quando ocorreu o acidente .
Que não existindo iluminação pública no local, apenas se pode atribuir a culpa pelo ocorrido ao próprio peão .
Terminou pedindo a improcedência da acção .
III
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi considerada como regular a tramitação dos autos .

Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação dos depoimentos nela produzidos, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto considerada como assente, com indicação da respectiva fundamentação .

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção improcedente, por não provada , com a consequente absolvição da Ré do pedido .
IV
Dessa sentença interpôs recurso o A., recurso esse que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo .

Nas alegações que apresentou o Apelante concluiu do seguinte modo :
1ª - O condutor do veículo automóvel podia e devia ter avistado com a devida antecedência o peão que atropelou .
2ª - Se o tivesse feito dispunha de toda a estrada, com a largura de 7,10 metros, para se desviar do peão .
3ª - A sentença, ao considerar que foi a conduta do peão e não a do condutor do automóvel a causa do acidente, violou o disposto no artº 24º, nº 1, do C. da Estrada .
4ª - Deve, assim essa sentença ser substituída por outra que considere a conduta do condutor do veículo como responsável pelo acidente, com a consequente procedência da causa .
V
Contra-alegou a Ré, defendendo, em resumo, que deve ser negado provimento ao recurso e deve ser mantida a sentença recorrida , na medida em que se apurou que o peão circulava pela faixa de rodagem e a cerca de 60 cms. da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo seguro, em clara violação do artº 99º do C. Estrada .
VI
Neste Tribunal da Relação foi aceite o recurso tal como foi admitido em 1ª Instância, e procedeu-se à recolha dos “vistos” legais, pelo que nada obsta ao conhecimento do objecto da apelação, o qual se pode resumir à reapreciação da sentença recorrida na parte em que decidiu que é de atribuir a culpa pelo sinistro ao peão, peão este que o A. assistiu nos seus serviços hospitalares, dando origem à prestação de serviços de cuidados de saúde, face às lesões que para o mesmo resultaram desse acidente .

Apreciando, cabe, antes de mais, aqui reproduzir os factos dados como demonstrados, os quais nenhuma impugnação mereceram .
São eles :
1 – No dia 30 de Junho de 2002, cerca das 00H50, na E. N. nº 109, ao km 150,350, localidade de Monte Redondo, circulava o veículo automóvel matrícula 67-10-ME, propriedade de E..., no sentido Leiria – Figueira da Foz, sendo conduzido por C..., que regressava do trabalho ao serviço daquela sociedade .
2 – O veículo ligeiro circulava pela hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha .
3 – Nas referidas circunstâncias o peão D... caminhava sobre o asfalto, a cerca de 60 centímetros da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo .
4 – O condutor do veículo foi surpreendido pela presença do peão, tendo ainda guinado para a sua esquerda .
5 – Dado o carácter repentino do sucedido, o condutor do veículo não conseguiu evitar que o peão Zukhurov fosse embater no espelho retrovisor direito do veículo .
6 – No local a estrada mede cerca de 7,10 metros de largura .
7 – O embate teve lugar na hemi-faixa de rodagem em que circulava o veículo atropelante, a cerca de 60 cms. da berma direita .
8 – No local onde ocorreu o embate não existia a funcionar, à data, qualquer iluminação pública ou outra .
9 – Em consequência desse atropelamento o peão sofreu várias lesões físicas, pelo que foi de imediato transportado até ao serviço de urgências do hospital autor, para aí receber tratamentos médicos, onde ficou internado até ao dia 9/07/2002 .
10 – O Hospital A. prestou ao peão Zukhurov os cuidados de saúde a que se refere a factura nº 200305677, no valor de € 5.234,61 , datada de 30/06/2003, com o prazo de pagamento de 30 dias .
11 – O proprietário do veículo matrícula 67-10-ME contratou com a Ré um seguro de responsabilidade civil do ramo automóvel, com a apólice nº 60 / 5.509.081, para acidentes ocorridos com esse veículo automóvel .
12 – O A. avisou extrajudicialmente a Ré para pagar o valor da referida factura, pagamento esse que a Ré não efectuou .

Fixados os factos, cabe salientar que na sentença recorrida se considerou que o peão terá violado o disposto nos artºs 99º, nº 1, e 100º, nº 3, ambos do C. Estrada, em razão do que foi considerado ter sido ele o causador do acidente , pelo que se concluiu no sentido da improcedência da acção .
Aí se escreveu e bem , que o DL nº 218/99, de 15/07, consagrou o regime geral da responsabilidade civil pela dívidas resultantes de prestação de cuidados de saúde a sinistrados em acidentes de viação, quando o montante do tratamento prestado exceda os € 5.000,00 por acidente e lesado .
É, com efeito, o que bem resulta do relatório desse diploma e bem assim dos seus artºs 1º, 5º, e 9º, nºs 1 e 5, à contrário .
E, como defende o STJ, in Ac. de 30/09/2003, publicado na C. J. STJ ano XI, tomo III, pg. 68, “ o artº 5º do DL nº 218/99, estabelece uma inversão do ónus da prova, não obrigando os serviços integrados no S.N.S. a alegar e a provar as circunstâncias do acidente, designadamente que o segurado agiu com culpa, cabendo-lhes apenas alegar e provar a prestação dos cuidados de saúde e o facto gerador da responsabilidade, e imputando à seguradora o ónus de demonstrar a falta de culpa do seu segurado “ .
Logo, há que apurar se, no caso, ocorre ou não responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, no que se refere ao condutor do veículo e sua entidade patronal .
Considerando a data em que ocorreu o sinistro – 30/06/2002 - , as disposições legais do Código da Estrada aplicáveis são as resultantes desse dito Código na redacção do Dec. Lei nº 265-A/2001, de 28/09, diploma esse que alterou diversos preceitos do C. Estrada e cuja entrada em vigor ocorreu em 01 de Outubro de 2001 , razão pela qual nos iremos reportar às disposições desse DL quando nos referirmos ao C. Estrada .
Assim, diz-se na sentença recorrida que “ apenas se provou que o peão caminhava sobre o asfalto, a cerca de 60 centímetros da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo, ... , tendo o condutor sido surpreendido pela presença do peão e ainda guinado para a esquerda, não tendo conseguido, no entanto, evitar que o peão fosse embater no espelho retrovisor direito do veículo. Que a estrada, no local, media cerca de 7,10 metros de largura, e não existia, a funcionar, na ocasião, qualquer iluminação, ... , pelo que violou o peão a regra do artº 99º, nº 1, do C. Estrada, ... , razão pela qual se conclui que foi o peão quem deu causa ao acidente .“
Afigura-se-nos que não é bem assim, apesar do devido respeito por esse entendimento .
Com efeito, o que resulta como assente é que no dia 30/06/2002, cerca das 00H50, ocorreu um acidente de viação dentro da localidade de Monte Redondo, Leiria, em local sem qualquer iluminação pública ou outra, acidente esse que consistiu em o peão Zukhurov ter sido atropelado pelo veículo matrícula 67-10-ME ( embora essa colisão apenas se tenha verificado entre o espelho retrovisor direito do veículo e o corpo do sinistrado ), do que resultaram lesões corporais para o peão .
Daqui resulta, desde logo, que o veículo estava obrigado a seguir com as luzes de estrada ( máximos ) acesas, nos termos dos artºs 59º, nº 1; 60º, nº 1, al. b) ; e 61º, nº 1, al. c), do C. Estrada, isto é, por forma a iluminar a estrada em frente numa distância de pelo menos 100 metros .
Por outro lado, o veículo não podia seguir a uma velocidade superior a 50 kms/hora, uma vez que circulava dentro de uma localidade – artº 27º, nº 1, do C. da Estrada .
Donde resulta, desde logo, que esse condutor tinha a obrigação de ter visto o peão a cerca de 100 metros de distância ( atente-se a que na participação do sinistro, junta a fls. 5 a 8, se diz que o local do sinistro é uma recta ) e sempre podia e devia ter parado a sua viatura numa distância de cerca de 26,50 metros, se necessário fosse .
Mas até nem era preciso fazer parar a viatura, uma vez que no local a estrada media cerca de 7,10 metros de largura, o que lhe permitia perfeitamente desviar-se do peão ( para o lado esquerdo da via, considerando o sentido de marcha do carro ) .
É certo que o peão estava obrigado a caminhar pelos passeios ou bermas da estrada, mas também podia transitar pela faixa de rodagem, com prudência, na falta desses passeios ou bermas ou na impossibilidade de os utilizar – artº 99º, nºs 1 e 2, al. b) – e fazendo-o pela esquerda da faixa de rodagem – artº 100º, nº 2, do C. Estrada .
Ora, o que resulta dos autos é que o peão seguia efectivamente pelo seu lado esquerdo da via ( de frente para o trânsito que circulasse na semi-faixa de rodagem desse lado da via ), conforme bem resulta do croquis de fls. 7, e a cerca de 60 cms da berma desse lado ( não a 1,90 metros dessa berma, como foi alegado pela Ré ), isto é, praticamente junto à linha limite da faixa de rodagem, pois que 60 centímetros é medida da largura de um corpo humano.
E nada nos autos nos indica qual a medida dessa berma nem se o peão podia por ela circular, factos cuja alegação cabia à Ré, e não o fez .
Ora, em tais circunstância não é possível censurar o peão por circular pela forma apontada, já que o fazia pelo lado esquerdo da estrada, considerando o seu sentido de marcha, e a lei até lhe permitia que o fizesse sobre a faixa de rodagem, desde que não dispusesse de berma livre para o efeito , o que não se sabe se existia ou não.
Ao invés, o condutor do veículo, nas apontadas circunstâncias, podia e devia ter visto o peão a uma distância considerável, por forma a poder dele se desviar, tanto mais que seguia dentro de uma localidade e não podia rolar na estrada sem luzes, além de não poder deixar de seguir atento quer à via quer ao demais trânsito efectuado na via, por forma a que essa circulação não pudesse em causa esse outro trânsito de pessoas e veículos – artº 3º, nº 2, do C. Estrada .
Ora, no presente caso e face às circunstâncias de facto apuradas e acima já referidas, cabia ao condutor do veículo ter agido com prudência, em obediência ao referido limite de velocidade e tendo em consideração que seguia dentro de uma localidade, pelo que nada justifica que não tivesse visto o peão a caminhar na via e junto à berma, podendo e devendo dele se desviar e não o ter colhido, como até quase conseguiu, pois que apenas lhe bateu com o espelho do seu lado direito .
Tivesse o condutor sido mais atento e respeitado os referidos preceitos legais e decerto teria conseguido perfeitamente desviar-se do peão ao até imobilizado o carro, por forma que nada justifica a colisão havida .
Ao invés, não se sabe se o peão podia ou não ter caminhado pela berma da estrada, o que apenas à Ré cabia alegar e demonstrar, o que não fez, sendo certo que na impossibilidade ou inexistência de berma bastante para caminhar, a sua circulação, tal como ficou apurado, era lícita, nada nela se podendo censurar .
Consequentemente, e nos termos do artº 483º, nº 1, do C. Civ., importa responsabilizar o condutor do veículo pelo sinistro e, consequentemente, pela obrigação de indemnizar, obrigação esta que abrange os estabelecimentos hospitalares que prestaram socorro à vítima, como sucede com o A. - artº 495º, nº2 do C. Civ. .
Uma vez que o proprietário do veículo transferira a sua responsabilidade civil decorrente de danos causados pela circulação do veículo para a Seguradora Ré, é esta a responsável pela sua satisfação, sendo certo que o valor do tratamento médico-hospitalar despendido pelo A. ao sinistrado foi de € 5.234,61 .
Logo, cabe à Ré pagar esse montante .
E como o A. emitiu factura respeitante a esse valor em 30/06/2003, do que avisou a Ré, a partir dessa data ficou a Ré em mora, pelo que são devidos os respectivos juros – artºs 804º, nº 1; 805º, nº 1, ambos do C. Civ. .
Os juros devidos são os juros legais – artº 806º, nºs 1 e 2, do C. Civ. -, cuja taxa é de 4% - Portaria nº 291/2003, de 8/04 .

Concluindo, há que revogar a sentença recorrida e julgar a acção procedente, com condenação da Ré a pagar ao A. o montante de € 5.234,61 , acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 4%, desde 30/06/2003 até efectivo pagamento .
VII
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação deduzida, revogando-se a sentença recorrida e condenando a Ré a pagar ao A. o montante de € 5.234,61 ( cinco mil, duzentos e trinta e quatro Euros e sessenta e um cêntimos ) , acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 4%, desde 30/06/2003 até efectivo pagamento .

Custas da acção e do recurso pela Ré/Apelada .
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Tribunal da Relação, em / /