Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
137/09.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PARTILHA JUDICIAL DE BENS IMÓVEIS
SITOS EM PORTUGAL
POR TRIBUNAL BRASILEIRO
Data do Acordão: 10/02/2009
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL RELAÇÃO DE COIMBRA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONCEDIDA REVISÃO
Legislação Nacional: ARTº 65º-A, AL. A), E 1096º, AL. C), CPC
Sumário: I – Numa revisão de sentença estrangeira não se visa um qualquer reexame do mérito da causa onde foi proferida, mas apenas se procura verificar o aspecto formal dessa sentença, isto é, apenas se verifica se estão ou não preenchidos os requisitos formais previstos nas alíneas do artº 1096º do CPC.

II - O artº 65º-A, al. a), do CPC, na sua redacção introduzida pela reforma de 95/96 – Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 (visando, em sede de competência internacional, o objectivo de alinhar o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano, como escreve o Prof. Dr. Rui Manuel Moura Ramos, in R.L.J., ano 130º - 1997/1998, pg. 213) -, atribui competência exclusiva aos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais…sobre bens imóveis sitos em território português – “fórum rei sitae”.

III - Porém, a razão de ser dessa norma, sobre reserva da jurisdição dos tribunais portugueses, radica na circunstância de o tribunal da situação do bem imóvel estar melhor apetrechado para conhecer os elementos de facto inerentes e porque, em geral, nas acções sobre direitos reais terem frequentemente lugar diligências de prova ao local – inspecções e perícias (veja-se o artº 73º, nºs 1 e 3, do CPC).

IV - Por isso, tem-se entendido que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, neste particular, que as acções se prendam indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que este (o imóvel) consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.

V - O CPC não considera como acções reais nem as acções de divórcio nem as acções de inventário, mesmo que compreendam bens imóveis, como bem resulta dos artºs 73º e 498º, nº 4, por um lado, e dos artºs 75º e 77º por outro.

VI – Quando a sentença que se pretende rever/confirmar é de habilitação/inventário e nele não só constam como bens a partilhar bens imóveis sitos em Portugal mas também imóveis sitos no Brasil, tendo a partilha havida abarcado todo o acervo hereditário do “de cujus”, afigura-se-nos que o Tribunal brasileiro tem competência para essa habilitação e partilha, sem o que nunca poderia ter lugar uma partilha conjunta dos bens deixados pelo inventariado, como se pretende que seja possível e desejável.

Decisão Texto Integral: I
A... e marido B..., residentes na Rua do Forno da Telha, nº 19, lugar do Regatinho, freguesia de Oiã, concelho de Oliveirado Bairro, instauraram contra C..., residente na Rua Professor Egas Moniz, nº 17 – 3º Esq.º, lugar e freguesia de Aldeia de Paio Pires, concelho do Seixal; D..., residente na Rua Matadouro, nº 4 – 1º D.tº, Edifício Bela Vista, lugar e freguesia de São Julião, concelho da Figueira da Foz; E..., residente na Rua Yoshimara Minamoto, nº 1112, Jardim São Luís, Cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil; e F..., residente na Rua Pedro Doll, nº 512, Aptº 91, Cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil, a presente acção com processo especial para revisão e confirmação de sentença estrangeira, pedindo a revisão da sentença de partilha judicial proferida em 24/07/2007 na 9ª Vara da Família e das Sucessões do Foro Central da Comarca da Capital/SP do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasil, sendo inventariado G..., pai da Requerente e dos Requeridos, e falecido em 07/04/2005, no Hospital Residence Premier, Ibirapuera, Estado de São Paulo, Brasil.

Muito em resumo, alegaram os Requerentes que o dito inventariado faleceu no estado de separado judicialmente de H..., tendo deixado descendentes – a Requerente e os Requeridos -, e tendo deixado bens imóveis, alguns dos quais sitos na freguesia de Sangalhos, concelho de Anadia, conforme são identificados no requerimento da acção e através de certidão matricial.
Que o dito inventariado também deixou testamento, lavrado no 11º Tabelião de Notas da Capital/São Paulo, Brasil.
Que os imóveis sitos em Portugal foram, nessa partilha judicial, adjudicados à Requerente e às Requeridas C... e D..., na proporção de 1/3 de cada prédio a cada uma destas herdeiras, o que foi homologado pela sentença supra referida.
Que essa sentença transitou em julgado.
Face ao que deve ser revista e confirmada a mesma, como se requer.
II
Citados os Requeridos, nenhuma oposição foi deduzida.
III
Cumprido o disposto no artº 1099º, nº 1, do CPC, pelos Requerentes foram apresentadas as correspondentes alegações, insistindo na revisão/confirmação pedida, e tendo o Digno Agente do M.ºP.º junto desta Relação também apresentado alegações, nas quais pugna pelo indeferimento da peticionada revisão/confirmação, por entender que o Tribunal do Estado de São Paulo, Brasil, é incompetente para decidir sobre a partilha de bens imóveis sitos em Portugal, nos termos do artº 65º-A, do CPC.

Ouvidos os Requerentes acerca desta questão processual, por eles foi defendido que a matéria sobre que versa a sentença estrangeira (revidenda) não é da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses, pelo que não se ofende o disposto na al. c) do artº 1096º do CPC, face ao que deve ser proferida decisão de revisão/confirmação, como foi peticionado.
IV
Nada obsta a que se conheça do objecto desta revisão/confirmação de sentença estrangeira, conhecimento esse a que se procede de forma sumária, nos termos dos artºs 700º, nº 1, al. c), e 705º, do CPC, na redacção do Dec. Lei nº 303/2007, de 24/08, dada a simplicidade das questões a decidir, apesar da questão processual suscitada pelo Digno Agente do M.º P.º nas suas alegações apresentadas ao abrigo do artº 1099º, nº 1, do CPC.
Tais questões traduzem-se apenas na apreciação do que decorre do disposto no artº 1096º do CPC, isto é, saber se estão ou não verificados os requisitos necessários para a confirmação pedida, designadamente saber se a sentença a rever/confirmar provém de tribunal estrangeiro cuja competência não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses – 2ª parte da al. c) do artº 1096º do CPC.
Isto porque na alegação do Digno Agente do M.º P.º se defende ser o referido tribunal incompetente para decidir sobre a partilha de bens imóveis sitos em Portugal.
Cumpre, pois, proceder à referida apreciação, nos termos dos artºs 1096º, 1099º, nº 2, e 1100º, nº 1, do CPC.
Para o referido efeito importa que sejam referidos os factos documentados no processo e que são os seguintes:
1 - G..., cidadão brasileiro, faleceu em 07 de Abril de 2005, no Hospital Residence Premier, São Paulo, Brasil, no estado de separado judicialmente e com último domicílio na Rua Philippe de Vitry, nº 68, apto. 51, Bloco A, Santa Josefina, São Paulo, Brasil – fls. 11, 94 e 95.
2 - Deixou testamento, lavrado no 11º Tabelião de Notas da Capital/SP, Brasil, livro nº 4394, pg. 011 (doc. 10) – doc.de fls. 13 a 16.
3 - Como herdeiros legítimos do dito G... ficaram cinco filhos:
- A...;
- C...;
- D...;
- E...; e
- F...,
todos acima identificados.
4 – Na 9ª Vara da Família e das Sucessões do Foro Central da Comarca da Capital/SP do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasil, correu termos processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de G... –doc. de fls. 9 a 80.
5 – Por sentença de 24/07/2007, proferida nesse processo, foi homologada a partilha judicial dos bens deixados pelo referido G... – fls. 69 e 70.
6 – Tal sentença transitou em julgado – fls. 73 e 74.
7 – Entre os bens aí partilhados figuram os seguintes prédios rústicos, sitos em Sangalhos, concelho de Anadia, distrito de Aveiro: artigos matriciais nºs 6336, 6337, 6338, 6341 e 6342, conforme certidões de fls.36, 37, 81 a 86 e 87 a 91.

Fixados os factos documentalmente provados, cumpre saber se estão ou não preenchidos os requisitos necessários à revisão/confirmação pedida, uma vez que como é sabido, uma acção de revisão de sentença estrangeira apenas se destina a verificar se tal sentença está ou não em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional em Portugal, como bem resulta do disposto nos artºs 1094º, nº 1, 1096º, 1100º, nº 1, e 1101º, do CPC.
Por isso, com uma revisão de sentença estrangeira não se visa um qualquer reexame do mérito da causa onde foi proferida, mas apenas se procura verificar o aspecto formal dessa sentença, isto é, apenas se verifica se estão ou não preenchidos os requisitos formais previstos nas alíneas do artº 1096º do CPC – o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no sistema de revisão formal ou de delibação, conforme bem o acentuou o Ac. STJ de 19/02/2008, in C. J. STJ, ano XVI, tomo I, pg. 111.
No caso presente não há dúvidas sobre a autenticidade do documento de que consta a sentença a rever; a referida sentença é perfeitamente inteligível; a dita encontra-se devidamente transitada em julgado na ordem jurídica em que foi proferida; não ocorre qualquer excepção de litispendência ou de anterior caso julgado sobre a partilha em causa; os interessados nessa partilha foram devidamente citados para essa acção, na qual também foram observados os princípios do contraditório e da igualdade entre todas as partes; e a decisão em causa não contém nem prevê um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Apenas o Digno Agente do M.ºP.º suscita a questão da (eventual) incompetência do Tribunal brasileiro para proferir a referida sentença, por considerar que com ela se ofende matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses – al. c) do artº 1096º CPC.
Será assim?
Com efeito, no artº 65º-A, al. a), do CPC, na sua redacção introduzida pela reforma de 95/96 – Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 (visando, em sede de competência internacional, o objectivo de alinhar o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano, como escreve o Prof. Dr. Rui Manuel Moura Ramos, in R.L.J., ano 130º - 1997/1998, pg. 213) -, atribui-se competência exclusiva aos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais…sobre bens imóveis sitos em território português – “fórum rei sitae”.
O que, à partida, parece estar em consonância com o disposto na al. c) do artº 1096º CPC, donde a não verificação dos requisitos necessários para a confirmação peticionada.
Porém, a razão de ser daquela norma, sobre reserva da jurisdição dos tribunais portugueses, radica na circunstância de o tribunal da situação do bem imóvel estar melhor apetrechado para conhecer os elementos de facto inerentes e porque, em geral, nas acções sobre direitos reais terem frequentemente lugar diligências de prova ao local – inspecções e perícias (veja-se o artº 73º, nºs 1 e 3, do CPC).
Por isso, tem-se entendido que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, neste particular, que as acções se prendam indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que este (o imóvel) consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo – neste sentido pode ver-se o Ac. STJ de 13/01/2005, in C.J. STJ, ano XIII, tomo I, pg. 31, em cujo sumário se registou o seguinte: “não se verifica o obstáculo previsto nos termos conjugados dos artºs 1096º, al. c), parte final, e 65º-A, al. a), do CPC, à revisão, pelos Tribunais portugueses, da sentença proferida por Tribunal brasileiro que, em acção de divórcio consensual (correspondente à acção de divórcio por mútuo consentimento no direito português), decretou o divórcio e homologou a partilha de bens do casal, incluídos os imóveis que se situam em Portugal”.
Daí ser até muito discutida a questão de partilhas de bens imóveis sitos em Portugal em processos de divórcio ocorridos e decididos em países estrangeiros.
E parece que a tese dominante vai no sentido de que não existe reserva de jurisdição neste tipo de acções, na medida em que as acções de divórcio não podem ser qualificadas, para o efeito, como acções reais, ainda que nelas se proceda à partilha de bens situados em território português.
E no mesmo sentido tem-se opinado acerca dos processos de inventário e partilha de bens sitos em Portugal com outros bens imóveis sitos no país onde essa partilha tem lugar, face ao estatuído no artº 77º do CPC (tribunal competente para o inventário e habilitação), onde se prevê que o tribunal do lugar da abertura da sucessão é o competente para o inventário e para a habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, e sendo aberta a sucessão fora do País (como é o caso presente), tendo o falecido deixado bens em Portugal, será competente para o inventário ou para a habilitação o tribunal do lugar da situação dos imóveis.
Diga-se que o CPC não considera, aliás, como acções reais nem as acções de divórcio nem as acções de inventário, mesmo que compreendam bens imóveis, como bem resulta dos artºs 73º e 498º, nº 4, por um lado, e dos artºs 75º e 77º por outro – como bem se salientou no Ac. STJ de 21/09/2006, in C.J. STJ, ano XIV, tomo III, pg. 63.
Ora, uma vez que no caso presente o processo cuja sentença se pretende rever/confirmar é de habilitação/inventário e nele não só constam como bens a partilhar bens imóveis sitos em Portugal mas também imóveis sitos no Brasil, tendo a partilha havida abarcado todo o acervo hereditário do “de cujus”, afigura-se-nos que o Tribunal brasileiro tem competência para essa habilitação e partilha, sem o que nunca poderia ter lugar uma partilha conjunta dos bens deixados pelo inventariado, como se pretende que seja possível e desejável.
No sentido exposto podem ver-se os Acórdãos desta Relação de 3/10/2006 e de 3/03/2009, proferidos, respectivamente, nos Proc. Rev. Sentença Estrangeira nºs 11/06.2YRCBR e 237/07.1YRCBR, em que foram seus relatores os srs. Des. Teles Pereira e Jorge Arcanjo (disponíveis em www.trc.pt).
Veja-se, também, Barbosa de Magalhães, in “Estudos sobre o novo Código Processual Civil – da competência internacional”, 2º Vol., pg. 259/260, onde defende que “a lei portuguesa admite que os bens sitos em Portugal, quer móveis, quer imóveis, podem ser partilhados num tribunal estrangeiro, quando este for o do lugar da abertura da herança…; consequentemente, as sentenças estrangeiras, que nessa conformidade julgarem as partilhas, podem ser confirmadas em Portugal, visto que provêm de tribunais que são competentes segundo as regras de conflitos de jurisdições da lei portuguesa”.
Consequentemente, também, no presente caso, se acha preenchido o requisito da al. c) do artº 1096º do CPC, pelo que nada obsta a que possa ser revista/confirmada a sentença proferida no Tribunal de São Paulo e a que se reportam os autos, improcedendo a oposição suscitada pelo Digno Agente do M.º P.º.
V
Decisão:
Face ao exposto, julga-se procedente a presente acção, concedendo-se a revisão/confirmação da sentença em apreço e supra referida, para os devidos efeitos.

Custas pelos Requerentes.

Valor tributário: € 5.000,00.