Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
116-C/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
AQUISIÇÃO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 351º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 819º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Nos termos do art. 819º do CC, “sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados”.
2. Tais actos não são, pois, nulos ou anuláveis, apenas não podendo afectar a finalidade da acção executiva.
3. Está vedado ao adquirente de bem penhorado embargar de terceiro, porque a penhora não ofende o seu direito, sendo este compatível com a realização daquela diligência.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



I)- RELATÓRIO

Por apenso à execução movida, no Tribunal Judicial da Covilhã, por A... contra B..., deduziu embargos de terceiroC... contra a apreensão de um veículo automóvel marca Mitsubsish, com a matrícula 67-76-SG, pedindo o levantamento da penhora e consequente restituição da posse.
Para tanto, alegou ter sido aquele veículo apreendido no dia 26.04.2006 à ordem do processo executivo, quando o Embargante era dono desse veículo, ofendendo a apreensão o seu direito, e não sendo parte no processo executivo.

Inquiridas as testemunhas indicados pelo Embargante ou produzida a prova informatória, foram os embargos liminarmente recebidos. Notificados a Exequente e Executado para contestar os embargos, apenas deduziu oposição a Exequente, pugnando pela improcedência dos embargos e pedindo a condenação do Embargante a pagar uma indemnização no montante de € 2.500,00, como litigante de má fé.
Em síntese, a Exequente/Embargada alegou ter movido execução no dia 20.04.2005, e a penhora do veículo automóvel ter sido efectuada e registada no dia 02.11.2005, quando o veículo ainda pertencia ao Executado. O pedido de apreensão do veículo foi solicitado à PSP, no dia 17.02.2006 e concretizada a apreensão no dia 26.04.2006, estando o Executado na posse efectiva do veículo. O Embargante, que é irmão do Executado B..., adquiriu o veículo no dia 18.04.2006, tendo existido intenção, tanto por parte do Executado, como do Embargante, em fugir com o bem à execução, a fim de evitar que a Exequente possa reaver o seu crédito.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido dispensada a selecção da matéria de facto controvertida, atenta a sua simplicidade.
Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, foi, por fim, proferida sentença a julgar os embargos procedentes e provados, declarando o Embargante legítimo proprietário e possuidor do mencionado veículo automóvel e ordenando o levantamento da penhora e a restituição do veículo ao Embargante.

Irresignado com tal decisão, apelou a Exequente/Embargada, insistindo na total improcedência dos embargos, e rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª-A Embargada pugna com o presente recurso pela alteração da decisão, pois não há dúvida que existe contradição/oposição entre os fundamentos/matéria de facto dada como provada e a decisão;
2ª-Nessa medida, a decisão deveria e deve ser favorável à Embargada e assim deve manter-se a penhora do veículo, prosseguindo, assim, sem mais delongas a execução;
3ª-Razão pela qual, deve e atendendo ao supra referido, alterar-se a decisão final dos embargos, aliás, nos termos do art. 668º, n.º4 do CPC, é lícito ao juiz suprir a nulidade invocada;
4ª-Contudo se assim não se entender, deve nos termos do art. 668º, n.º1, alínea c) do CPC, ser declarada nula a sentença, com todas as consequências daí decorrentes.

Não foram produzidas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II)- OS FACTOS

Na sentença recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
1-Em cumprimento do ofício n.º 821378, datado de 17.02.2006, dos autos principias, a PSP da Covilhã procedeu, em 26.04.2006, à apreensão na posse do Executado B..., do veículo de matrícula 67-06-SG e entregue ao referido B....
2-No momento da apreensão, o dito veículo estava na posse do Executado B...;
3-O Embargante não é parte no processo;
4-O mencionado veículo foi adquirido pelo Embargante ao Executado em data não apurada de Fevereiro de 2006;
5-Encontra-se inscrito como titular do dito veículo o Embargante;
6-A execução de que estes autos são apenso deu entrada neste Tribunal em 20.04.2005;
7-A penhora sobre aquele veículo foi efectuada em 11.05.2005.


III)- O DIREITO

Delimitado que é, em princípio, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.º1 3 684º, n.º3, ambos do CPC), coloca a Apelante/Embargada a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:
1ª–Saber se a sentença é nula por contradição entre os fundamentos de facto e decisão;
2ª-Decidir se deve ser mantida a penhora do veículo automóvel e consequentemente improceder os embargos de terceiro.


III-1)- Vejamos a 1ª questão.
Consta da matéria de facto assente (cfr. n.º 7 supra) ter a penhora sobre o veículo automóvel sido efectuada em 11.05.2005 e o veículo adquirido pelo Embargante ao Executado em data não apurada de Fevereiro de 2006. Não obstante, na parte relativa à subsunção ou motivação jurídica, consigna-se na sentença, por evidente lapso, “que (o Embargante) adquiriu o referido veículo ao executado e registou-o a seu favor, em data anterior ao da realização da penhora”. É manifesto que os fundamentos de facto contrariam logicamente a decisão que julgou procedentes e provados os embargos de terceiro, pressupondo estes ter a penhora ofendido a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito daquela diligência judicial, de que seja titular quem não é parte na causa (n.º 1 do art. 351º do CPC). Não sendo o Embargante proprietário do veículo aquando da penhora, jamais este acto judicial poderia ofender o seu direito.
Padece, por conseguinte, de nulidade a sentença impugnada, nos termos da alínea c) do n.º1 do art. 668º do CPC, mas a declaração de tal nulidade não obsta a que este Tribunal deixe de conhecer do objecto da apelação (n.º1 do art. 715º do CPC).

III-2)- Examinemos, agora, a 2ª questão.
Recaindo sobre o Embargante o ónus de alegar e provar os fundamentos dos embargos de terceiro (art. 342º, n.º1 do CC), está provado nos autos que a penhora do veículo automóvel de matrícula 67-06-SG foi efectuada em 11.05.2005, em execução instaurada no dia 20.04.2005.
Aplicando-se à penhora de coisas móveis sujeitas a registo, com as devidas adaptações, o disposto no art. 838º (n.º1 do art. 851º do CPC), estando a penhora de veículos automóveis sujeita a registo (art. 1º e alínea h) do n.º1 do art. 5º do DL n.º54/75, de 12 de Fevereiro, diploma que estabelece o regime do registo da propriedade automóvel). O n.º1 do art. 838º citado, prescreve que “sem prejuízo de também poder ser feita nos termos gerais do registo predial, a penhora de coisas imóveis realiza-se por comunicação electrónica à conservatória do registo predial competente, a qual vale como apresentação para efeito de inscrição no registo”. Prevendo o n.º 2 do art. 851º do mesmo diploma, que “a penhora de veículo automóvel é seguida de imobilização, designadamente através da imposição de selos e, quando possível, da apreensão dos respectivos documentos; a apreensão pode ser efectuada por qualquer autoridade administrativa ou policial, nos termos prescritos na legislação especial para a apreensão de veículo automóvel requerida por credor hipotecário.” Esta norma remete para o arts. 15º e segs. do citado DL n.º 54/75. Portanto, a penhora do veículo automóvel efectiva-se ou consuma-se com a comunicação electrónica à conservatória do registo automóvel competente, independentemente da ulterior imobilização ou apreensão do veículo e seus documentos. No caso ajuizado verifica-se que a penhora foi efectuada em data anterior à apreensão do veículo, tendo esta apenas ocorrido em 26.04.2006, quando o Embargante já havia adquirido ao Executado o veículo e registado a titularidade. Torna-se claro que, na data da realização da penhora (11.05.2005), o Embargante não era dono do veículo, só o adquirindo ao Executado em data não apurada de Fevereiro de 2006.
E como decorre do disposto no art. 819º do CC, “sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”. Ou seja, a penhora apenas gera a indisponibilidade do bem penhorado relativamente ao processo executivo, produz um direito de garantia a favor da execução A ineficácia relativamente à execução, e não apenas exequente, porque opera relativamente também aos credores reclamantes, o comprador dos bens, o próprio tribunal. Trata-se de uma inoponibilidade objectiva ou situacional, diversa da inoponibilidade meramente subjectiva, isto é, em face de um certo terceiro ( cfr. Castro Mendes, in Acção Executiva, p. 100, nota 2)., o executado continua a poder alienar ou onerar o bem penhorado. Tais actos não são nulos ou anuláveis, tudo se passando afinal como se, relativamente ao exequente e credores concorrentes, não tivessem tido lugar. Mas sem prejuízo da regra da prioridade do registo consignada no art. 6º do Código do Registo Predial, de modo que, não estando registada a penhora, o terceiro adquirente não pode ser atingido pela penhora e, por isso, pode opor a sua aquisição à execução. Não sendo tais actos Aí se compreendem, por exemplo, actos translativos ou constitutivos de direitos reais de gozo ou de garantia, ou extintivos de crédito (compensação, novação, renúncia, perdão) e até a constituição de direitos de carácter não real, como locações ou semelhantes. nulos ou anuláveis, readquirirão a sua plena eficácia no caso da penhora vir a ser levantada. Mas, se pelo contrário, da execução resultar a transmissão do direito do executado, o direito de terceiro que tiver contratado com o exequente caduca, embora transferindo-se, por subrogação objectiva, para o produto da venda (art. 824º do CC). Atenta essa ineficácia ou inoponibilidade relativas, em nada podendo, pois, a alienação do bem penhorado afectar a finalidade da acção executiva, o direito de propriedade do Embargante sobre o bem penhorado não é incompatível com a realização da penhora, bem podendo ser validamente transferido para outrem o direito de propriedade do executado sobre o bem penhorado com a subsequente venda ou adjudicação. Diversamente, porém, se o veículo automóvel pertencesse ao Embargante aquando da realização da penhora, porque, só na previsão do art. 818º do CC, podem ser executados bens de terceiro. Sendo, pois, ineficaz em relação à execução a venda do bem penhorado ao Embargante, terá de subsistir a penhora com a inerente apreensão do veículo visando satisfazer os fins da acção executiva.

Em suma, os fundamentos de facto alegados pelo Embargante (direito de propriedade aquando da apreensão do veículo e qualidade de terceiro relativamente ao processo executivo) não têm o efeito jurídico ou não são de molde a conduzir à procedência dos embargos de terceiro e consequente levantamento da penhora. Esta diligência judicial, realizada previamente à apreensão, em nada é afectada pela venda do veículo ao Embargante, venda que é ineficaz relativamente à Exequente, ora Embargada. O êxito dos embargos dependeria antes da alegação e prova do direito de propriedade do Embargante na data (11.05.2005) em que a penhora do veículo automóvel foi realizada. Ou sendo a venda ulterior à penhora, a alegação e prova de que o registo da compra e venda foi lavrado em primeiro lugar relativamente ao registo da penhora.
Merece, pois, acolhimento a tese da Apelante/Embargada que vai no sentido da manutenção da penhora.



IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos acorda-se em:
1-Conceder provimento ao recurso e declarar nula a sentença impugnada.
2-E conhecendo o objecto do recurso, julgar os embargos improcedentes e não provados.
3-Condenar o Embargante nas custas, em ambas as instâncias.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)