Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2899/06.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: REQUERIMENTO DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3.º JUÍZO DE COMPETÊNCIA ESPECIALIZADA CRIMINAL.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.º 3,ALÍNEAS B) E C); 287.º,N.º 2 E 309.º, N.º 1 DO C.P.P..
Sumário: I. - Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
II. - Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
III. - Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
IV: - O assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.
V. - Não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1.
Decisão Texto Integral: 9

I – Relatório
1. No processo n.º 2899/06.8 TALRA, do 3.º Juízo de competência especializada criminal de Leiria, recorre o assistente C..., melhor identificado nos autos, do despacho do M.mo Juiz que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução que havia apresentado.
O assistente, motivado o seu recurso, conclui (em transcrição):
A) Nada justifica a aplicação do n.º3 do art.º 287.º CPP pois não existe qualquer inadmissibilidade legal da instrução.
B) Os factos e pessoas estavam muito bem identificados na queixa-crime e baseados nos já referidos 95 documentos.
C) Não podem pois existir dúvidas sobre qual seja a matéria de facto nem quem seja o alvo da queixa e abertura de instrução - a M...!
D) Igualmente é claro que os artigos violados pela acusada foram os 224.º, 218.º n.º2 e 153.º n.º2 todos do Código Penal.
E) O desacordo com o despacho de arquivamento está precisamente na lamentável forma como se desenvolveu a acusação que não foi capaz nem de ordenar aos outros bancos que indicassem se tinham ou não contas do Joaquim Soares Martins, libertando-os para tanto do sigilo bancário já que é manifestamente mais importante o interesse de apurar a verdade na presente investigação do que são os interesses que com o sigilo bancário se pretendem proteger.
F) Também pelo facto de não ter sabido analisar os documentos bancários juntos e deles tirar as conclusões óbvias.
G) Finalmente por ter procedido ao interrogatório das testemunhas, perguntando-lhes tudo o que não tinha a ver com o presente processo-crime, mas talvez com o processo de interdição que é bem diverso e continua inacabado.
H) O douto despacho recorrido violou assim o art.º 287.º n.º3 do CPP.
Termos em que, e muito embora tudo conste já dos requerimentos antes apresentados, deverá o despacho em causa ser revogado e substituído por outro que admita a abertura da instrução como é de inteira JUSTIÇA.
2. Respondeu o Ministério Público, sustentando que o despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução com fundamento na sua inadmissibilidade legal, fez uma correcta aplicação das normas jurídicas pertinentes, defendendo que, consequentemente, o recurso não merece provimento.
3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, depois de se pronunciar positivamente sobre a admissibilidade do recurso, deu parecer no sentido de que o mesmo não merece provimento, sendo antes de confirmar o despacho impugnado.
4. Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a questão a decidir consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.
2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo DM do MP veio o assistente C..., na qualidade de curador de Joaquim Soares Martins, não identificando contra quem é dirigido o requerimento de abertura de instrução – será supostamente à arguida M…?;
Também não identifica os concretos crimes que lhe imputa.
Dispõe o art. 287.º n.º 2 do C.P.P. que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre quer disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283.º n.º 3 b) e c).
Ora, no caso concreto, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, o assistente limita-se a proferir juízos de valor sobre as valorações da prova resultante do inquérito, não apresenta uma construção fáctica e sequencial narrativamente orientada, dos factos, no respectivo enquadramento espacial e temporal, sendo que nem sequer identifica as concretas disposições legais.
E nem se diga que basta o assistente fazer remissão para o respectivo despacho de arquivamento ou para a queixa, pois o requerimento de abertura de instrução, em face do arquivamento ordenado, constitui uma peça autónoma, com relevância em sede de fixação do objecto do processo, em conformidade com o disposto no art. 303.º, n.º 1 do CPP.
Aliás como veio a ser entendido no douto Ac.STJ de 7/2005 de fixação de jurisprudência existe um paralelismo entre o exigido ao MP e o exigido ao assistente em termos processuais, sendo que tendo o requerimento de abertura de instrução a natureza de uma verdadeira acusação, não pode ter lugar a imputação ou complementação com simples remissão para outras peças processuais, a não ser nos casos mais limitados da forma processual de processo abreviado, o que não é o caso dos autos.
Coloca-se a questão do eventual convite ao aperfeiçoamento do requerente.
1. A figura do aperfeiçoamento encontra-se prevista no art. ° 508° do CPC mas não tem aplicação «ex vi » do art. 4.º no CPP, pois trata-se de um acto perfeitamente anómalo em face de regras procedimentais do processo penal as quais são claras e transparentes mercê dos direitos em causa no âmbito do processo criminal.
O anómalo aperfeiçoamento a existir teria de ser concedido a tudo e a todos, o que implicava a existência de aperfeiçoamentos de acusações. O processo penal português tem, como refere o Prof. Figueiredo Dias (Princípios estruturantes do processo penal, in Código de Processo Penal, vol. II, t. II, p. 22 e 24, Assembleia da República), uma "estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação oficial", estabelecendo-se por força do princípio da acusação que a entidade julgadora não pode ter funções de investigação e de acusação no processo antes da fase de julgamento, podendo apenas investigar dentro dos limites da acusação fundamentada e apresentada pelo Ministério Público ou pelo ofendido (lato sensu), onde se inclui o requerimento de abertura de instrução.
Ou, nas considerações de juristas, não menos eminentes - Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 3.ª edição, p. 206 «... A estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura de instrução...»;
A admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que certamente, o actual C.P.P. não pretende. Por outro lado, como assinala o Ac. da Relação Lisboa nº 10685/2001, rel. Dr. Trigo Mesquita, " (...) o convite dirigido às partes, pelo juiz, para a correcção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa".
2. Não tem aplicação no caso a reparação oficiosa da irregularidade processual prevista no art. 123.º, n.º 2 do CP, já que tal insuficiência não é susceptível de reparação oficiosa em virtude da violação do princípio do acusatório.
3. Não pode, no caso, ter aplicação o disposto no arte ° 288.º, n.º 4 do CPP que refere que incumbe ao juiz investigar autonomamente os factos que constituem objecto da instrução, já que, o que está verdadeiramente em causa é a falta de factos que não foram alegados.
O STJ veio a tomar posição, quanto à questão, no Ac. STJ de 7/2005 de fixação de jurisprudência entendendo que “Não há lugar a convite ao assistente (igualmente valendo para o arguido) para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução apresentado nos termos do arte ° 287°, n. ° 2 do CPP quando for omisso em relação à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, publicado no DR l-A Série, de 4 de Novembro de 2005, sustentando desse modo a inadmissibilidade de tal procedimento.
Assim, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução (art. 287.º n.º3 do CPP) nos termos expostos.
Custas a cargo do requerente que se fixam em 2 Ucs, levando-se em conta o já depositado nos autos»
3. Apreciando
1. Preceitua o artigo 286.º, n.º1, do C.P. Penal:
«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento»
O artigo 287.º, n.º 1, por sua vez, prescreve, na parte que nos importa:
«A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
(...)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
(…)»
Nos termos do n.º 2, o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...).»
Conforme o artigo 283.º n.º 3, a acusação contém, sob pena de nulidade:
« (...)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As disposições legais aplicáveis; (…)»
Por sua vez, o n.º 4 do artigo 287.º estabelece que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
2. Enquanto fase jurisdicional (ainda que facultativa), a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Assim, o artigo 288.º, n.º4, dispõe: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º2 do artigo anterior.»
Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.
Refere Germano Marques da Silva, ao mencionar a liberdade de investigação (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»
No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo.»
A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).
Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, contra o qual o assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal requerimento assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe acusação pública.
Verificando-se que o Ministério Público se absteve de acusar, arquivando o processo, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Disse o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004):
«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.»
A propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, lê-se no mesmo Acórdão:
«(…) a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»
3. Compreendida a importância da delimitação do objecto através do requerimento de abertura da instrução formulado por assistente – que consubstancia uma verdadeira acusação alternativa –, tem-se discutido, de há muito, que consequências decorrem da formulação de requerimento que não contenha a indicação dos elementos referidos no artigo 287.º, n.º2, particularmente os das alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º, do C.P.P. – disposição para a qual remete, como vimos, o referido preceito legal.
Para Souto Moura, a instrução surge, no C.P.P., como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados (“Inquérito e Instrução”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.119).
Para este autor, sendo requerida a instrução, se o assistente não delimitar o campo factual de incidência, a instrução será inexequível (ob. cit., p. 120, nota).
Também se questiona se a remissão para o artigo 283.º, n.º3, compreende a cominação de “nulidade” para o requerimento instrutório, debatendo-se a natureza dessa nulidade.
E também se debate se a omissão da narração dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a mencionada nulidade, não será um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do C.P. Penal.
Neste âmbito, questiona-se a interpretação do conceito de inadmissibilidade legal, como causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução.
Em qualquer caso, é indubitável que não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1.
Defendeu-se, a dado passo, a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente.
A jurisprudência majoritária afastou essa possibilidade, tendo o S.T.J. fixado jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Neste quadro, em que a jurisprudência tem trilhado diversos caminhos – apelando à nulidade de conhecimento oficioso (Acórdão da Relação de Guimarães, de 17 de Maio de 2004, processo 777/04-1), à nulidade por falta de objecto (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006, processo 60/03.2TANLS.C1), à inexistência (Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 2006, processo 7649/05-5.ª), à equiparação a acusação manifestamente infundada (Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2006, processo 0611178) –, conclui-se que todos eles conduzem ao mesmo resultado inevitável: a rejeição do requerimento (os Acs. citados estão disponíveis em www.dgsi.pt, excepto o da Relação de Lisboa, disponível em www.pgdlisboa,pt).
Como se diz no sumário do Acórdão do S.T.J., de 7 de Março do 2007 (processo 06P4688), o requerimento para abertura de instrução há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório: por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução.
«No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório – arts. 308.º e 309.º do CPP.» (ver o referido sumário).
Com a prevalência do entendimento de que o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer convite ao aperfeiçoamento (veja-se o citado Acórdão do S.T.J. 7/2005 e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 389/2005), afigura-se-nos que o conceito de inadmissibilidade legal não pode deixar de abranger o caso de instrução requerida por assistente cujo requerimento não contenha uma descrição factual susceptível de integrar os elementos do tipo criminal que o requerente entenda ter sido preenchido (neste sentido, entre muitos, o Acórdão do S.T.J., de 22 de Março de 2006, processo 357/05-3.ª, sumariado em SASTJ; com interesse sobre o tema e diversas referências doutrinárias e jurisprudenciais, ver o Acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Janeiro de 2008, processo 2557/06.3TALRA.C1).
4. Revertendo ao caso concreto, é manifesto que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente não satisfaz, minimamente, as exigências legais.
Lendo o requerimento de abertura da instrução, não encontramos qualquer descrição factual susceptível de consubstanciar a imputação a alguém de um ou de vários ilícitos criminais, mas apenas a indicação de algumas das razões que levam o assistente a discordar do despacho de arquivamento do Ministério Público e a pretensão de que sejam realizadas algumas diligências de investigação.
Olvidou o assistente, por completo, que tal requerimento deveria constituir-se como uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público, sendo certo que não é admissível a narração por remissão para a queixa e para o amplo conjunto dos documentos entretanto apresentados, como parece supor o recorrente, erradamente, atento o teor da motivação (e no requerimento de abertura da instrução também não se faz essa expressa remissão, que em todo o caso seria inadmissível).
Entenderá o recorrente que o requerimento de abertura da instrução que apresentou preenche minimamente os requisitos para ser tomado como uma acusação: a acusação que o recorrente pretenderia que o Ministério Público tivesse deduzido em vez de arquivar o inquérito?
Julgamos que a resposta a esta pergunta só poderá ser negativa.
Conclui-se, pois, sem dificuldade, que o recurso não merece provimento.
Não podemos deixar de assinalar que o recorrente inicia a motivação do recurso com a afirmação de que «o presente indeferimento é uma clara manifestação de que se não pretende investigar, antes fechar os olhos a manifestas actuações criminosas, permitindo-as e deixando-as sem castigo».
Afirmação que consideramos infeliz, pois se o recorrente não alcançou o seu desiderato de sindicar, pela instrução, como era seu direito, a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito, tal apenas se deve à circunstância, da sua exclusiva responsabilidade, de ter apresentado um requerimento de abertura da instrução manifestamente sem aptidão para alcançar os fins pretendidos, face às exigências da lei e à interpretação/aplicação que da mesma tem sido feita, de há muito, pelos tribunais superiores.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.