Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3624/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL
SUA FORMA
NULIDADE DO CONTRATO
CONHECIMENTO OFICIOSO DESTA
Data do Acordão: 01/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS. 286º DO C. CIV. ; RAU, NA REDACÇÃO DO DL Nº 64-A/2000 .
Sumário: I – Muito embora a partir da alteração introduzida no Dec.Lei nº 321-A/90, de 15/10, pelo DL nº 64-A/2000, de 22/4, seja suficiente a existência de documento particular para a celebração de um contrato de arrendamento urbano com fins comerciais, o certo é que essa alteração legislativa não se aplica a esse tipo de contratos anteriormente celebrados, quando era exigível que houvesse escritura pública como forma de contratar .
II – Ao tribunal é possível conhecer oficiosamente de uma nulidade contratual por vício de forma.- artº 286º do C. Civ. , sem que, por isso, ocorra nulidade da sentença, nos termos do artº 668º, nº 1, al. d) e e), do CPC .
III – Relativamente a questões de direito, o artº 3º, nº 3, do CPC proíbe as chamadas decisões surpresa, pelo que se impõe a formulação de um convite às partes para tomarem posição sobre qualquer questão de conhecimento oficioso do tribunal antes deste apreciar e decidir com base nesse conhecimento, sob pena de ser cometida uma nulidade processual ( artº 201º CPC ) .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

Os Autores – A... e mulher B... – instauraram na Comarca de Leiria, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus:
1) - C... e marido D...;
2) - E....
Alegaram, em resumo:
Os Autores são proprietários de uma fracção autónoma, constituída pela loja nº86, sita no Centro Comercial Maringá, em Leiria.
Por documento escrito de 10/10/91 ( fls.93 ), o anterior proprietário deu de arrendamento para comércio à Ré C..., pela renda de 40.000$00 por mês, destinando-se à confecção e comercialização de tecidos, roupas, sapatos e artigos de decoração.
A Ré, em 18/10/2001, comunicou ao Autor que desejava trespassar o estabelecimento comercial à sociedade E..., informando-se das condições do negócio.
Desde Novembro de 2001 que os primeiros Réus não exercem a actividade comercial no locado, que passou a ser ocupado pela segunda Ré, tendo nele executado diversas obras, sem autorização dos Autores.
Pediram cumulativamente:
a) - A declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os Autores e os primeiros Réus e consequentemente decretado o despejo;
b) - A declaração de ineficácia em relação aos Autores dos eventuais contratos celebrados entre os Réus;
b) - A condenação dos Réus a entregar aos Autores o local, que os primeiros tomaram de arrendamento, livre e desocupado.
Contestou a Ré C..., pretendendo a improcedência da acção, defendendo-se, em síntese:
A Ré trespassou o estabelecimento à sociedade E..., tendo comunicado aos Autores que o autorizaram.
Desde então a segunda Ré vem exercendo no local a actividade comercial, no mesmo ramo de negócio, pagando as rendas aos Autores, sem que estes se opusessem.
Contestou a Ré E..., no sentido da improcedência da acção, em resumo:
Os Autores autorizaram o trespasse, exercendo no local a mesma actividade comercial da primitiva arrendatária e embora tenha feito algumas obras, não alterou a estrutura do prédio.
Os Autores desistiram do pedido relativamente ao Réu D..., que foi homologado por despacho de fls.41.
Findos os articulados e após gorada a tentativa de conciliação, foi proferido saneador-sentença que decidiu:
a) - Declarar o contrato de arrendamento urbano para comércio, em apreço nos autos, nulo por não ter respeitado a forma legal, exigível à data, e em consequência ordenar que a 1ª Ré ou quem tiver a posse da fracção autónoma em apreço nos autos, restitua de imediato aos Autores;
b) - Julgar ineficaz relativamente aos Autores o contrato de trespasse do estabelecimento comercial instalado na fracção e efectuado entre a 1ª e a 2ª Ré, no que diz respeito à “ cessão forçada da posição de arrendatária “ fundada naquele contrato acima declarado nulo.

Inconformadas, ambas as Rés interpuseram recurso de apelação, formulando conclusões, que se passam a resumir.
Conclusões ( Ré E... ):
1º) - A causa de pedir, tal como os Autores a configuraram, é a cessão de posição contratual não autorizada, com o consequente pedido de despejo.
2º) - Os apelados não puseram em causa a validade do contrato de arrendamento por não respeitar a forma então legalmente exigível, ou seja a escritura pública.
3º) - Ao conhecer oficiosamente da nulidade que não é causa de pedir, nem consta como fundamento dos pedidos, a sentença violou o art.664 do CPC, carreando para o processo factos que as partes não pretenderam revelar.
4º) - A sentença é nula ( art.668 d) e e) do CPC ).
Conclusões ( Ré C... ):
1º) - O tribunal não podia conhecer da nulidade formal do contrato de arrendamento, por não ser essa a causa de pedir, pelo que conheceu de factos não alegados.
2º) - Ainda que se entendesse que tal decisão poderia ser proferida, deveria o tribunal notificar previamente as partes para se pronunciarem sobre o novo objecto da decisão.
3º) - Não o tendo feito, trata-se de uma decisão surpresa.
4º) - Assumindo as partes uma posição de considerar válido o contrato de arrendamento, é legítimo colocar a hipótese delas não quererem que o mesmo fosse declarado nulo.
5º) - Antes de decidir pela declaração de nulidade, deveria a sentença decidir pela redução ou conversão do negócio jurídico celebrado entre a 1ª Ré e o senhorio, nos termos dos arts.292 e 293 do CC.
6º) - Ao não considerar-se o contrato como de arrendamento, sempre devia entender-se como promessa de contrato de arrendamento.
7º) - A decisão recorrida violou os arts.264 e 668 do CPC e arts.292 e 293 do CC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Considerando as conclusões que as apelantes extraíram da respectiva motivação, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Se tendo os Autores instaurado acção de despejo, fundada na resolução do contrato de arrendamento, o tribunal a quo ao declarar oficiosamente da nulidade formal desse contrato, conheceu de factos não alegados, com violação dos arts.264 e 664 do CPC;
b) - A nulidade da sentença ( art.668 nº1 d) e e) do CPC );
c) - A violação do princípio do contraditório, por se tratar de “ decisão-surpresa “ ( art.3ºnº3 do CPC ).

2.2. - Os factos provados consignados na sentença:
1) - Na Conservatória do Registo Predial de Leiria está descrito sob o nº121 HF a fracção autónoma “ HF “, primeiro andar nº86, para comércio do prédio urbano sito na Rua de S.Francisco e Av do Maringá, Leiria, inscrito na respectiva matriz sob o art.2.517.
2) - Esta fracção autónoma está registada desde 12/3/89 a favor dos Autores.
3) - Por contrato particular, denominado “ contrato de arrendamento”, datado de 10/10/1991, junto a fls.93, cujo teor se dá por reproduzido, o anterior proprietário de tal fracção autónoma deu-a de arrendamento à 1ª Ré para comércio, confecção e comercialização de tecidos, roupas, sapatos e artigos de decoração, pelo prazo de um ano, a começar em 1/11/91, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições, enquanto não fosse denunciado por qualquer das partes.
4) - A renda ajustada foi de 40.000$00 por mês a depositar na conta bancária do senhorio no 1º dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, actualizável de acordo com a lei.
5) - Por carta de 18/10/2001, junta a fls.4 e 5, cujo teor se dá por reproduzida, a 1ª Ré informou o Autor marido de que desejava trespassar, por venda, o estabelecimento comercial instalado na fracção locada à 2ª Ré, enviando as cláusulas do dito contrato, a fim dele, querendo, exercer o direito de preferência em tal negócio.
6) - Nessa carta e das referidas cláusulas consta ( cláusula 4ª ) que a 1º Ré dá autorização à 2ª Ré para ocupar, de imediato, tal loja, sendo que o trespasse só se considera consumado após a liquidação da última prestação a efectuar em 31/12/2002.
7) - Desde 1/11/2001, a 1ª Ré e a 2ª Ré celebraram ente si contrato de trespasse respeitante ao estabelecimento comercial instalado na fracção locada, conforme documento junto a fls.27 e 28, que se dá por reproduzido.

2.3. - De Direito:
A sentença recorrida considerou nulo, por vício de forma, o contrato de arrendamento urbano para comércio celebrado entre o anterior proprietário da fracção autónoma (transmitido posteriormente para os Autores ) e a 1º Ré, e ineficaz relativamente aos Autores a transmissão do arrendamento para a 2ª Ré, por força do trespasse do estabelecimento.
O contrato de arrendamento em questão respeita a uma fracção autónoma de um prédio urbano, destinada para comércio, confecção e comercialização de tecidos, roupas, sapatos e artigos de decoração, tendo sido celebrado por documento particular de 10/10/1991, junto a fls.93.
Tratando-se de arrendamento para comércio, a lei então vigente impunha a redução a escritura pública, conforme art.7º nº2 alínea b) do RAU ( aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, antes da alteração do DL 64-A/2000 de 22/4 ), repetindo o disposto no art.1029 nº2 b) do CC.
Revogado, porém, o nº3 do art.1029 do CC, pelo art.5º nº2 do DL 321-A/90, que imputava a falta de escritura pública ao locador e restringia ao locatário a invocação da nulidade por vício de forma, permitindo-lhe provar o contrato por qualquer meio, o contrato de arrendamento em causa é nulo ( art.220 do CC ).
Não sendo admitido neste tipo de arrendamento o suprimento da inobservância de forma pela exibição do recibo de renda ( nº2 do art.7º do RAU ), a nulidade opera nos termos gerais do art.286 do CC, podendo agora ser invocada por qualquer interessado ( senhorio, arrendatário ou terceiro ) e ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Muito embora a partir da alteração legislativa pelo Dec.-Lei nº 64-A/2000, de 22/04, seja suficiente documento particular, dispensando-se a escritura pública, o certo é que tal não se aplica aos contratos anteriores, visto que as condições de validade de um contrato ( por exemplo quanto à forma ), bem como os efeitos da respectiva invalidade, aferem-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado, segundo o critério estabelecido no art.12 nº2 do CC ( cf. BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, pág.71; Ac do STJ de 16/1/87, BMJ 363, pág.464 ).
As apelantes não põem em causa a nulidade formal do contrato de arrendamento, mas antes a questão de saber se dela podia o tribunal a quo conhecer oficiosamente, dada a configuração da acção.
Proposta a acção de despejo, com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, que tem como pressuposto a sua validade, mas declarada a nulidade formal e ordenada a restituição do imóvel aos Autores, sustentam os apelantes que a sentença é nula por violação dos arts.264 e 664 do CPC, visto conhecer de factos não alegados.
Sucede que o tribunal, para declarar a nulidade do contrato, serviu-se precisamente da factualidade alegada pelas partes, sem que houvesse alargado o seu espectro e no âmbito da aplicação das leis não está condicionado à posição delas, por ser uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão, expresso no brocado latino jura novit curia.
De resto, tal pretensa violação não implicaria a nulidade da sentença, mas antes, por aplicação analógica do art.646 do CPC, ter-se por não escrito a factualidade exorbitante.
Consideram, no entanto, os apelantes que o tribunal não podia conhecer da nulidade formal do contrato de arrendamento por isso implicar uma alteração da causa de pedir e do pedido, sendo a sentença nula por excesso de pronúncia e por conhecer de objecto diverso do pedido ( art.668 nº1 d) e e) do CPC ).
A nulidade de excesso de pronúncia, cominada no art.668 nº1 alínea d) do CPC, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no art.660 nº2 do CPC, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras.
Todavia, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, a nulidade consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes ( cf., por ex., Ac STJ de 11/11/87, BMJ 371, pág.374, de 7/7/94, BMJ 439, pág.526, de 25/2/97, BMJ 464, pág.464 ).
Sendo a nulidade formal de conhecimento oficioso ( art.286 do CC ), a sua declaração implica a restituição do que foi prestado, por força do art.289 nº1 do CC e Assento do STJ nº4/95 de 28/2/95, DR I Série de 17/5/95, ao estabelecer a seguinte orientação:
“ Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº1 do art.289 do Código Civil “.
Este Assento, agora transformado em acórdão de uniformização de jurisprudência, tem aplicação às acções de despejo fundadas em contrato cuja nulidade seja decretada ( cf. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol I, 2ª ed., pág.52 ).
Como aí se refere, pode o tribunal proceder a qualificação jurídica da situação concreta e julgar com base em fundamento diferente do enunciado pelas partes, adoptando-se a doutrina de VAZ SERRA ( RLJ ano 109, pág.312 ) para quem formulando o autor determinados pedidos, partindo da validade do contrato, poderia tê-los formulado também na base da nulidade deste, sendo, por isso, de admitir, que se tivesse previsto a nulidade, o teria feito, defendendo a possibilidade da conversão da causa de pedir na que o autor teria invocado se tivesse previsto a nulidade do contrato, à semelhança do negócio jurídico nulo ( art.293 do CC ).
Com efeito, não faria sentido que tendo os autores instaurado acção a pedir a resolução do contrato e o despejo do locado no pressuposto da validade do contrato, mas tendo este sido declarado nulo, estivessem obrigados a propor outra acção, agora baseada na nulidade do mesmo contrato.
No mesmo sentido, o Ac do STJ de 28/1/2003, www dgsi.pt/jstj, ao decidir “ sendo o contrato de arrendamento nulo, deve o tribunal declarar a nulidade e, até pelo princípio da economia processual, os efeitos a obter de tal declaração coincidirão em princípio com os pretendidos na acção de despejo, sem que se torne necessário instaurar nova acção “.
Por conseguinte, estava o tribunal legitimado a conhecer oficiosamente da nulidade do contrato de arrendamento, sem que ocorra nulidade da sentença, nos termos do art.668 nº1 d) e e) do CPC ( cf., por ex., Ac do STJ de 30/1/86, BMJ 353, pág.388, de 31/3/93, C.J. ano I, tomo II, pág.55 ).
Objectam os apelantes tratar-se de uma “ decisão surpresa “ visto não ter sido dado às partes a possibilidade de se pronunciarem previamente, com postergação do princípio do contraditório, violando-se o art.3 nº3 do CPC, segundo o qual – “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no art.20 da CRP.
Tal como se sublinhou no Acórdão nº 358/98 (Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão nº 249/97 (Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), “ o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 nº1, da Constituição".
O princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de - deduzir as suas razões (de facto e de direito)", de "oferecer as suas provas", de "controlar as provas do adversário" e de "discretear sobre o valor e resultados de umas e outras" ( cf. acórdão do TC nº 177/2000, DR, II série, de 27/10/2000 ).
A norma do nº3 do art.3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.
A uma concepção válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehõr” germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo ( cf., LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pág. 96 ).
Mesmo relativamente às questões de direito, a norma proíbe, como sublinha este Autor, as decisões-surpresa, ou seja, decisões baseadas “ em fundamento que não tenha sido considerado previamente pelas partes “, enquanto violadoras do princípio do contraditório, conforme entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça ( cf., por ex, Ac de 15/10/2002, www dgsi.pt/jstj ).
A omissão do convite às partes para tomarem posição sobre questão oficiosamente levantada gera nulidade processual, a apreciar nos termos gerais do art.201 do CPC, visto ser susceptível de influir no exame e decisão da causa ( cf., LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, 1999, pág.9; TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 48).
Nos termos do art.205 nº1 do CPC, a arguição da nulidade conta-se do dia, em que depois de cometida, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas aqui só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer com a diligência devida.
No caso dos autos, o prazo legal de dez dias para arguir a nulidade conta-se a partir da data da notificação do saneador-sentença.
Como a decisão foi notificada às partes em 3/5/2004 ( fls.103 e 104 ), tendo-se por notificada em 6/5/2004 e sendo o prazo da reclamação de dez dias ( art.153 nº1 do CPC ), deveria ter sido arguida até 17/5/2004 ( 1ª dia útil ).
Constata-se que os apelantes arguíram a nulidade, não no tribunal recorrido, mas já nas alegações de recurso, que deram entrada em 22 e 24 de Junho, ou seja, já depois de esgotado o prazo.
A arguição da nulidade processual no tribunal superior só é admissível quando o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo previsto no art.205 nº1 do CPC, começando então a correr desde a distribuição ( nº3 ), o que também não sucede.
Porém, uma vez que a sentença recorrida sancionou a omissão, já que decidiu sem observância do contraditório, afirmando-se expressamente inexistir quaisquer nulidades, o meio próprio para arguir a nulidade passou a ser o recurso ( cf. ALBERTO DOS REIS, Comentários, vol.II, pág.507, ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.393; Ac STJ de 24/3/92, BMJ 415, pág.552, de 9/3/93, BMJ 425, pág.448, Ac da RC de 4/5/2004, www dgsi.pt/jtrc ).
Findos os articulados, se não houver que proceder à audiência preliminar, o juiz profere despacho saneador ( art.510 nº1 b) do CPC ) destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
A apreciação do mérito da causa e a consequente decisão sobre a procedência ou improcedência, em regra, é feita na sentença final ( art.658 do CPC ), permitindo, no entanto, o art.510 nº1 b) a sua antecipação, verificados os requisitos legais, pelo que, neste caso, o despacho saneador tem, para todos os efeitos, o valor de sentença ( art.510 nº3, 2ª parte ) e dele cabe recurso de apelação ( art.691, nº1 do CPC ).
No processo sumário ( art.787 nº1 do CPC ), a fase de saneamento e condensação é moldada em função do estabelecido nos arts.508 a 512-A, com a particularidade de, em regra, não haver lugar à audiência preliminar.
Com efeito, esta só se realiza quando a complexidade da causa ou a necessidade de actuar o princípio do contraditório o determinem, como é o caso.
Muito embora os apelantes não questionassem directamente a omissão da audiência preliminar, mas ao objectarem com a violação do princípio do contraditório ( art.3º nº3 do CPC ) estão a pressuporem implicitamente a sua obrigatoriedade.
Em resumo, impõe-se declarar a nulidade por violação do princípio do contraditório ( art.3º nº3 do CPC ), o que implica a nulidade do saneador-sentença e dos termos subsequentes, devendo o tribunal a quo convocar audiência preliminar, com indicação da respectiva finalidade, caso continue a entender ser conhecer do mérito no saneador, com fundamento na nulidade formal do contrato de arrendamento, ficando, assim, prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso da apelante C....
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedentes as apelações e declarar a nulidade por violação do princípio do contraditório ( art.3º nº3 do CPC ), anulando-se o saneador-sentença e os termos posteriores do processo, devendo o tribunal a quo convocar audiência preliminar, com indicação da respectiva finalidade, caso continue a entender ser de conhecer do mérito da causa, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso da apelante C....
2)
Sem custas.
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COIMBRA, 18 de Janeiro de 2005.