Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
129/09.0TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA - COMARCA DO BAIXO VOUGA
PROCESSO TUTELAR CÍVEL
Data do Acordão: 09/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECIDIDA A COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTºS 115º, Nº 2, CPC; ARTºS 17º, 20º, 21º, 51º E 52º, Nº 1, DA LEI Nº 25/2009, DE 26/01; E LEI Nº 52/2008, DE 28/08.
Sumário: I – Há conflito negativo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão, desde que ambas as decisões já não sejam susceptíveis de recurso – artº 115º, nº 2, CPC.

II – O artº 22º da Lei nº 3/99, de 13/01 (tal como o artº 24º da nova LOFTJ / Lei nº 52/2008, de 28/08), consagrando o princípio da perpetuatio jurisdictionis (ou perpetuatio fori), diz que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.

III – O artº 52º, nº 1, do Dec. Lei nº 25/2009, de 26/01, prescreve que “salvo nos casos expressamente previstos no presente D.L., não transitam para os novos juízos quaisquer processos pendentes”, sendo um claro afloramento do princípio da perpetuatio fori.

IV – O D.L. nº 25/2009 regulamentou a situação dos processos pendentes em duas situações – transição para os novos juízos (artº 20º) e transição por conversão (artº 21º), em cujas normas o legislador utilizou a expressão “os processos que, nesta área, se encontrem pendentes…”.

V – A interpretação sistemática e teleológica é a de a expressão “nesta área” está empregue com o significado de jurisdição, de especialização dos processos, pelo que transitam para o Juízo de Família e Menores de Aveiro os processos que em 14/04/2009 se encontrem pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro.

VI – O DL nº 25/2009, de 26/01, que procedeu à organização das comarcas piloto, não só ditou a conversão (artº 17º, nº 1, al. b)), como contém norma específica relativamente aos processos pendentes, impondo a transição por conversão (para o Juízo de Família e Menores de Aveiro dos processos que, na área de processos tutelares cíveis, se encontrem pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, à data da conversão do mesmo) – artº 21º, nº 3.

VII – O Tribunal Judicial da Comarca de Mira só passou a ter competência material para os processos tutelares cíveis instaurados a partir de 14/04/2009.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Ministério Público requereu a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre o Juízo de Família e Menores de Aveiro da Comarca de Baixo Vouga ( fls.165) e o Tribunal Judicial de Mira ( fls.169), com fundamento em que os Senhores Juízes, por decisões transitadas em julgado, se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer do processo.
Os Senhores Juízes mantiveram as suas posições e o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência ao Juízo de Família e Menores de Aveiro da Comarca de Baixo Vouga.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Os elementos relevantes:

1. A... instaurou ( 26/11/1999) no Tribunal de Família e Menores de Aveiro acção de divórcio litigioso, com forma de processo especial, contra B....
Em 27 de Março de 2000, na tentativa de conciliação, converteram o divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento e acordaram na regulação do exercício do poder paternal dos menores C... e D....
Quanto aos alimentos, acordaram que o pai contribuirá com a quantia mensal de 45.000$00, a partir do mês de Abril de 2000, sendo as despesas médicas, medicamentosas e escolares a repartidas em partes iguais por ambos os progenitores.
Os acordos foram homologados provisoriamente para vigorarem na pendência dos autos.

2. Por despacho de 4/12/2000, transitado em julgado, foi dado sem efeito o pedido de divórcio e ordenado o arquivamento do processo.

3. Em 4/7/2000, A..., por apenso ao processo de divórcio, deduziu o incidente de incumprimento da regulação do poder paternal por parte do requerido, por este não ter pago a pensão de alimentos.

4. Por decisão de 24/6/2002, transitada em julgado, fixou-se em 112,23 euros o montante da pensão de alimentos ao menor D... a pagar pelo Estado em substituição do pai.
5. Por decisões posteriores foi decidido manter a prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores.

6. Em 22/4/2009, o M.mo Juiz do Juízo de Família e Menores de Aveiro, Comarca de Baixo Vouga, proferiu o seguinte despacho:

“ No respeito pela nova organização judiciária do “Baixo Vouga”, considerando a residência do(a)(s) menor(es) a necessidade de revisão dos pressupostos da intervenção do “Fundo Alimentar” ( uma acção renovada actualmente e “enxertada” no processo tutelar cível) e o disposto no art.155º nº1 da OTM, julgo este Juízo incompetente e competente o Tribunal Judicial de Mira”.

7. Esta decisão transitou em julgado.

8. Em 26/5/2009, o M.mo Juiz do Tribunal Judicial de Mira declarou o tribunal materialmente incompetente para apreciar o processo.
Argumentou-se, em síntese, que:
A revisão anual dos pressupostos da prestação alimentícia paga pelo Estado configura um incidente processual tramitado no próprio incidente de incumprimento da regulação do poder paternal, sendo competente o tribunal que fixou os alimentos devidos ao menor.
O Tribunal de Mira passou a ter competência para tramitar e julgar processos de jurisdição de família e menores, mas apenas em relação aos processos iniciados a partir de 14 de Abril de 2009, por se encontrar presentemente englobado no Círculo da Figueira da Foz ( art.51 do DL nº 25/2009 de 26/1).
O Juízo de Família e Menores de Aveiro é competente em razão da matéria para tramitar os autos, por não se estar perante um processo novo, mas um incidente.

9. A decisão transitou em julgado.

2.2. – A resolução do conflito:

Há conflito negativo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão, desde que ambas as decisões já não sejam susceptíveis de recurso ( art.115 nº2 do CPC).
A competência, enquanto medida de jurisdição de cada tribunal que o legitima para conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura.
A competência absoluta abrange a da razão da matéria, da hierarquia e internacional, sendo imperativas as normas de atribuição. A competência relativa é integrada pela competência em razão do valor e do território.
O princípio geral é o de que todo o tribunal tem a competência para conhecer da sua própria competência, e daqui resulta a possibilidade de mais de um tribunal se julgar competente para a mesma causa (conflito positivo) ou incompetente (negativo).
Este princípio sofre excepção no âmbito da competência relativa, já que o tribunal para onde é remetido o processo não pode conhecer da sua própria competência, e porque fica vinculado à decisão do tribunal remetente ( art.111 nº2 e 3 do CPC), não existe conflito de competência.
O Tribunal Judicial da Comarca de Mira fazia parte do Círculo Judicial de Aveiro e o Tribunal de Menores e Família de Aveiro, com sede em Aveiro, tinha a área de competência ao nível do círculo, abrangendo a Comarca de Mira ( cf. DL nº186-A/99 de 31/5 e mapa I anexo ).
A chamada “reforma do mapa judiciário” foi introduzida pela Lei nº52/2008 de 28/8 que se aplica apenas às Comarcas piloto, referidas no art.171 nº1, a título experimental com termo a 31 de Agosto de 2010.
Uma das três comarcas piloto designa-se agora de Comarca de Baixo-Vouga, que se desdobra em juízos de competência especializada, entre os quais o Juízo de Família e Menores, com sede em Aveiro.
Foi declarado extinto o círculo judicial de Aveiro, considerando-se feita a extinção em 14 de Abril de 2009, e transitam para o Juízo de Família e Menores de Aveiro os processos que, nesta área, se encontrem pendentes à data da conversão do mesmo ( art.21 nº3 ).
O art.51 nº2 do DL nº25/2009 procedeu à alteração dos mapas anexos ao DL nº186-A/99, passando a Comarca de Mira a pertencer ao Círculo Judicial da Figueira da Foz.
A decisão de 19/5/2009 do Juízo de Família e Menores de Aveiro, embora não explicite no segmento decisório a modalidade de incompetência, mas remetendo para o art.155 nº1 da OTM, depreende-se tratar de incompetência territorial.
Na decisão de 22/6/2009 do Tribunal de Mira julgou-se o tribunal materialmente incompetente, atribuindo a competência ( material e territorial ) ao Juízo de Família e Menores de Aveiro.
Dir-se-á, então, que o conflito se desenha entre a incompetência relativa ( territorial) e a incompetência absoluta ( em razão da matéria), sendo que ambos os critérios ( da matéria e do território) respeitam à ordem horizontal.
Neste contexto, o conflito é real, e não meramente aparente, pois a incompetência material sobrepõe-se à territorial, até pela imperatividade do seu regime dado o interesse público subjacente, e o impedimento do tribunal para onde foi remetido o processo é restrito à competência territorial, que a ela fica vinculado se não ocorrer qualquer situação de incompetência absoluta.
Na situação concreta, foi deduzido incidente de incumprimento da regulação do poder paternal e o FGAM condenado na pensão, em substituição do requerido.
Uma vez que a prestação do Estado, através do FGAM, em substituição do devedor, é fixada “nos respectivos autos de incumprimento “ ( art.3º nº1 da Lei nº75/98 de 19/11) significa que aquele incidente é processado no incidente de incumprimento ( art.181 da OTM).
O tribunal competente para a acção é também o competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem ( art.96 nº1 do CPC). Ao tempo da instauração do incidente de incumprimento da regulação do poder paternal (art.181 da OTM), era competente (material e territorialmente) o Tribunal de Família e Menores de Aveiro.
O art.22 da Lei nº 3/99 de 13/1 ( tal como o art.24 da nova LOFTJ / Lei nº52/2008 de 28/8), consagrando o princípio da perpetuatio jurisdictionis ( ou perpetuatio fori), diz que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.
Coloca-se a questão de saber se a reforma do mapa judiciário colidiu ou não com a competência, isto é, se estamos perante uma modificação do estado de direito, das regras jurídicas de determinação da competência e as implicações sobre os processos pendentes.
O Tribunal de Família e Menores de Aveiro tinha como área de competência o Círculo Judicial de Aveiro que abrangia as Comarcas de Albergaria -a -Velha, Aveiro, Ílhavo, Mira, Sever do Vouga e Vagos.
Por força da reforma do mapa judiciário e organização das comarcas piloto, houve lugar à conversão dos tribunais existentes, à criação de novos juízos e à extinção de círculos e comarcas ( cf., relativamente à Comarca do Baixo Vouga , capítulo III do DL nº25/2009 ).
O Tribunal da Comarca do Baixo Vouga desdobra-se ( na jurisdição de família e menores) em três juízos de competência especializada: Juízo de Família e Menores de Aveiro (município de Aveiro), Juízo de Família e Menores de Estarreja (municípios de Albergaria-a-Velha, Estarreja, Murtosa, Ovar e Sever do Vouga), Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro (municípios de Águeda, Anadia, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Vagos).
Sobre os processos pendentes, o art.173 da Lei nº 52/2008 de 28/8 estipula que “ o destino dos processos pendentes em tribunais ou juízos que percam a competência territorial em face da instalação das comarcas piloto é fixado no decreto lei referido no nº2 do artigo 171º”, ou seja, no DL nº25/2009.
O art.52 nº1 deste diploma legal prescreve que “ Salvo nos casos expressamente previstos no presente decreto-lei, não transitam para os novos juízos quaisquer processos pendentes”, sendo um claro afloramento do princípio da perpetuatio fori.
Por conseguinte, só nos casos expressamente previstos é que a lei ressalvou o trânsito de processos.
O DL nº25/2009 regulamentou a situação dos processos pendentes em duas situações - “transição para os novos juízos” (art.20 ), e “transição por conversão” ( art.21), em cujas normas o legislador utilizou a expressão “(…) os processos que, nesta área, se encontrem pendentes (…)”“.
Não parece que a expressão “ nesta área” tenha sido utilizada como querendo significar “área territorial”. Se assim fosse, então, por exemplo, a leitura do art.20 nº1 teria que ser esta: em 14 de Abril de 2009, transitam para o juízo de Família e Menores de Estarreja os processos que da sua área territorial ( ou que fazendo parte da sua área territorial) estejam pendentes nos tribunais das Comarcas de Estarreja e Ovar. E a leitura do art.21 nº1 seria a seguinte: transitam para o Juízo de Família e Menores de Aveiro os processos que fazendo parte da sua área territorial ( município de Aveiro) se encontrem pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, em 14 de Abril de 2009.
Contudo, se transitassem para o Juízo de Família e Menores de Estarreja os processos pendentes nos tribunais das Comarcas de Estarreja e Ovar e se para o Juízo de Família e Menores de Aveiro apenas os pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro que fazem parte da nova área territorial do Juízo de Família e Menores ( município de Aveiro), então o que fazer aos processos ainda pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro do município de Albergaria-a-Velha ou de Sever do Vouga ( agora ambos da área territorial do Juízo de Família e Menores de Estarreja)?
Pela interpretação do art.20 nº1 não transitam para o Juízo de Família e Menores de Estarreja, e pela interpretação do art.21 nº3 também não podiam transitar para o Juízo de Família e Menores de Aveiro, logo a conclusão seria absurda – ficariam no limbo de um tribunal convertido.
A interpretação sistemática e teleológica é, ressalvando melhor entendimento, a de que a expressão “ nesta área” está empregue com o significado de jurisdição, de especialização dos processos, pelo que transitam para o Juízo de Família e Menores de Aveiro os processos que, em 14 de Abril de 2009, se encontrem pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro.
Por conseguinte, na situação concreta não há excepção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis ( art.22 da Lei nº 3/99 de 13/1 e art.24 da Lei nº52/2008 de 28/8), porque nem o órgão (tribunal) foi suprimido, nem ao Juízo de Família e Menores foi atribuída competência de que não tivesse anteriormente o convertido Tribunal de Família e Menores, tanto mais que o DL nº25/2009 de 26/1, que procedeu à organização das comarcas piloto, não só ditou a conversão ( art.17 nº1 b) ), como contém norma específica relativamente aos processos pendentes, impondo a transição por conversão – “Transitam para o Juízo de Família e Menores de Aveiro os processos que, nesta área, se encontrem pendentes no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, à data da conversão do mesmo “- ( art.21 nº3 ), na interpretação já referida.
De resto, e como foi realçado, o Tribunal Judicial da Comarca de Mira só passou a ter competência material para os processos tutelares cíveis instaurados a partir de 14 de Abril de 2009.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem
1)
Atribuir a competência em razão da matéria e do território para conhecer do processo ao Juízo de Família e Menores de Aveiro da Comarca de Baixo Vouga.
2)
Sem custas.
+++
Coimbra, 22 de Setembro de 2009.