Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL MARÍTIMO
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 18º E 90º, AL. C), DA LOFTJ .
Sumário: I – Para determinar a competência dos tribunais em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante ( relação jurídica material em debate e pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante) .
II – Tendo havido um transporte de mercadorias via marítima e detectando-se a existência de avarias nas mesmas na altura da sua recepção, o que levou ao accionamento do seguro de carga, pondo-se em causa o transporte marítimo das mercadorias, é este contrato de transporte marítimo, deficientemente cumprido, que gera a obrigação de indemnizar .

III – Para conhecer deste tipo de causa carecem os tribunais judiciais de competência em razão da matéria, competência essa que cabe aos tribunais marítimos – artºs 18º e 90º, al. c), da LOFTJ .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., com sede na Rua das Flores, Calçadas, 2304-909 Tomar, instaurou, no Tribunal Judicial de Tomar, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra B..., com sede na Rua das Laranjeiras, nº 31, Armazém nº 35, 9500-536 Ponta Delgada, Açores, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 19.749,23 euros, acrescida dos juros vincendos à taxa de 12% sobre a quantia de 16.924,19 euros.
1-2- A R. na sua contestação veio excepcionar a sua ilegitimidade e, simultaneamente, veio pedir a intervir nos autos da C... ( para quem havia transferido a responsabilidade pelos riscos derivados do evento relatado nos autos ).
1-3- Por despacho judicial de 7-7-04, no sentido de assegurar a legitimidade das partes, foi decidido admitir a intervenção principal, na posição de R., da C..., com sede no Largo do Chiado, 8, 1249, 125 Lisboa.
1-4- Citada esta Seguradora para contestar veio-o fazer, invocando ( para além do mais ) a excepção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, já que, no seu entender, é competente para conhecer da acção o tribunal marítimo e não o tribunal judicial onde a acção foi intentada.
1-5- Na réplica a A. sustentou a não procedência da excepção invocada, mantendo serem os tribunais judiciais os competentes para conhecerem do pleito.
1-6- No despacho saneador, o Mº Juiz considerou procedente a excepção invocada, julgando o tribunal ( judicial ) onde a acção foi instaurada, incompetente em razão da matéria para conhecer do pleito, absolvendo, consequentemente, os RR. da instância.
1-7- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer a A., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-8- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Para determinação da competência em razão da matéria, há que atender à causa de pedir e ao pedido expresso na p.i..
2ª- A causa de pedir expressa na p.i. é o fornecimento pela A. das mercadorias referidas no art. 2º da p.i., a sua reclamação pela R. sem qualquer reclamação, expressa no art. 3º da p.i., o respectivo preço indicado no art. 3º da p.i. e o incumprimento por parte da R. da obrigação de pagar parte desse preço, conforme referido nos artigos 4º e 5º da p.i..
3ª- O pedido consiste na condenação da R. no pagamento de parte do preço em falta e dos respectivos juros de mora.
4ª- Assim, a questão deduzida não se integra em nenhuma daquelas que a Lei atribui à jurisdição dos tribunais marítimos, nos termos do art. 90º da LOTJ, competindo a sua apreciação ao tribunal de comarca correspondente ao local da sede da credora, nos termos do art. 77º nº 1 al.a) da LOTJ, 774º do C.Civil e 74º do C.P.Civil, ou seja, ao Tribunal de Tomar, onde foi proposta.
5ª- A R. não dispõe de qualquer crédito sobre a A., porque não obstante lhe ter vendido certas mercadorias não cumpriu a obrigação de as entregar em boas condições - independentemente de o incumprimento não resultar de qualquer facto voluntário da R. - e por isso não pode exigir-lhe o pagamento do respectivo preço nem pode forçar a A. a compensá-lo como que esta tem a haver de si.
6ª- O despacho recorrido, ao afirmar que a relação material controvertida tem como fonte da obrigação cujo incumprimento é imputado à R., a existência de um acordo de revenda de diversas chapas de vidro que não foi concluído por estas terem chegado quebradas a Tomar, adultera a realidade, pois não foi esse o fundamento invocado pela A. para pedir a condenação da R..
7ª- Vindo depois, por consequência, a declarar a incompetência do tribunal da comarca de Tomar para o conhecimento da questão do seguro de transporte, que, todavia, não foi submetida à apreciação do tribunal.
8ª- E simultaneamente deixa de pronunciar-se sobre a competência do Tribunal de Tomar para apreciar a questão que lhe foi submetida e cujo pedido e causa de pedir já se explicitaram, cometendo, assim a nulidade prevista no art. 668º nº 1 al. d) do CPC e a violação do art. 77º nº 1 al. a) e 90º da LOTJ.
9ª- Pelo que o despacho recorrido deverá ser revogado, ordenando-se que os autos prossigam no Tribunal da Comarca de Tomar.
1-9- A R. B... respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
1-10- O Mº Juiz manteve a sua decisão.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Como se vê, a única questão que se coloca nesta instância é a de saber se o tribunal judicial onde a acção foi proposta é, ou não, materialmente competente para conhecer do objecto da acção. O Mº Juiz na douta decisão recorrida entendeu que não ( atribuindo, implicitamente, a respectiva competência ao tribunal marítimo ) e a recorrente, em oposição ao decidido, entende que sim. Daí o presente recurso.
Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” ( in Com. 1º, 110 ). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pela demandante.
Compulsando a p.i. verifica-se que a A. alega que celebrou um contrato de venda de artigos do seu comércio ( vidros e materiais de construção ) com a R., tendo esta recebido as mercadorias ( no valor de 82.622,35 euros ) sem qualquer reclamação. A R., por conta dos bens, entregou-lhe diversas quantias no valor de 65.698,16 euros, encontrando-se, assim, por pagar 16.924,19 euros. A R. tem-se recusado a pagar esta importância ( arts. 1º a 6º da p.i. ). Em Abril de 2001, a R. alegando dificuldades em revender no mercado local ( Açores ) diversas chapas de espelho que a A. lhe tinha vendido, acordou com esta em revender-lhe tal mercadoria, pelo preço de 16.924,10 euros, tendo emitido em nome dela, A., uma factura. A R. despachou a mercadoria no navio Monte Brasil, de Ponta de Delgada para Lisboa e contratou com a seguradora C... um seguro de carga, destinado a cobrir os riscos de destruição ou avaria da mesma, no respectivo percurso. Sucede que as mercadorias chegaram avariadas, tendo sido transportadas para as instalações da seguradora em Tomar e comunicado a esta a deterioração dos bens ( arts. 7º, 8º, 9º, 11º, 12º e 13º da p.i.). A mercadoria viajava por conta e risco da R., constituindo obrigação desta a entrega da mercadoria à A. em boas condições ( arts. 879º al. b) e 882º nº 1 do C.Civil ). Foi por isso que a R., no seu próprio interesse, constituiu o referido seguro de transporte, só ela podendo reclamar da seguradora a correspondente indemnização ( arts. 16º e 18º da p.i).
Quer isto dizer que a A. fundamenta a acção, não no primitivo contrato de compra e venda que celebrou com a R., mas no acordo ( posterior ) que efectuou com esta, que consistiu em receber de volta parte da mercadoria ( para a revender ), saldando, assim, as contas do primeiro contrato [Do negócio primitivo que celebrou com a R., ficou por pagar a quantia de 16.924,19 euros. Ela aceitou receber mercadoria nesse valor ( para a voltar a vender ), pelo que com essa aceitação considerou, tacitamente, o contrato ( de compra e venda ) integralmente cumprido.]. Com vista à materialização desse acordo posterior, a própria R., emitiu em nome da A. uma factura ( vide art. 8º da p.i. e documento de fls. 34 ). O problema surgiu porque a mercadoria devolvida, chegou avariada, afirmando a A., por um lado, que era obrigação da R. a entrega da mercadoria em boas condições e pelo outro que só ela pode reclamar da seguradora a correspondente indemnização [Caso a mercadoria não tivesse chegado avariada a questão não se colocava, razão por que se deve ver no deficiente transporte da mesma, o cerne do litígio.].
Assim, a nosso ver, a causa de pedir da presente acção não é qualquer incumprimento em relação a esse primitivo contrato de compra e venda, mas sim o incumprimento, por banda da R., do acordo posterior, incumprimento que se materializou no facto de as mercadorias devolvidas terem chegadas avariadas, sendo que, no dizer da A., era obrigação da R. a entrega da mercadoria em boas condições. Por outras palavras, o incumprimento por parte da R., geradora de responsabilidade civil, deve buscar-se na omissão desta em fazer chegar junto da A., os bens devolvidos, em boas condições de conservação.
As mercadorias foram transportadas, da Ponta Delgada nos Açores, para Lisboa, por via marítima, no navio Monte Brasil. Segundo alega a A., na altura da recepção dos bens, o seu motorista detectou a existência de avarias ( quebras das chapas de espelho ), motivo por que entendeu dever accionar o seguro de carga. Isto é, nas próprias palavras da A. está em causa o transporte marítimo das mercadorias, pois foi nesse transporte que os bens se danificaram. É esse contrato de transporte marítimo (deficientemente cumprido ) que gera, em última instância, a obrigação de indemnizar, dizendo ( até ) a A. que só a R. poderá, em relação ao seguro de carga a que procedeu, reclamar a correspondente indemnização.
Colocada a causa sobre este prisma, somos em crer que carecem os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para conhecer do pleito.
Nos termos do art. 18º da LOFTJ ( Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ) estabelece-se que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais especiais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se, portanto, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiveram conferidas aos tribunais especiais. Haverá, pois, de determinar se existe qualquer norma, designadamente na LOFTJ, que atribua competência a outros tribunais para a presente acção, caracterizada, como já se disse, pelo pedido e causa de pedir já acima indicados.
De harmonia com o art. 90º al. c) do diploma, “compete aos tribunais marítimos conhecer das questões relativas a contratos de transporte por via marítima...”.
Isto é, para apreciação e decisão de matéria atinente a contratos de transporte marítimo, são competentes os tribunais marítimos.
Como já se disse, é o referenciado contrato de transporte marítimo (deficientemente cumprido ) que gera, em última instância, a obrigação de indemnizar. Assim, e nos termos do referido art. 90º al. c) da LOFTJ, serão os tribunais marítimos os competentes para conhecer do pleito.
A douta decisão recorrida merece, pois, confirmação.
Apenas mais uma nota para dizer, sinteticamente, que a decisão recorrida não padece da irregularidade formal apontada pela recorrente ( do art. 668º nº 1 al. d) do C.P.Civil ) porque não existe qualquer excesso de pronúncia, dado que a incompetência absoluta do tribunal ( em razão da matéria ) é, como se sabe, do conhecimento oficioso (art. 102º nº 1 deste Código ).
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente.