Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/07.0TBVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 342.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 7.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
Sumário: Em caso de impugnação da escritura de justificação, o ónus da prova dos factos justificados na escritura cabe não apenas aos justificantes, mas a todos os que, tendo sido demandados, se quiserem prevalecer da escritura de justificação notarial.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A...., ...., residente n...., propôs, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seu marido, B...., acção declarativa com processo ordinário contra C....., ..., residente ...., D.... e mulher E...., reformados, residentes ....., F...., ...., residente ....., G...., ...., residente ......, H..., ...., residente ...., I.... e mulher J....., residentes ...., pedindo:

a) Se declarasse que o prédio descrito na escritura de justificação notarial outorgada em 16 de Dezembro de 2002, no Cartório Notarial de X..., sob o n.º 0..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ....... X... sob o número 1111....., não pertence nem alguma vez pertenceu aos primeiros réus, por pertencer à herança indivisa aberta por óbito do marido da autora, B...;

b) Se declarasse, em consequência, que eram falsas as declarações prestadas e constantes da escritura de justificação notarial de 17 de Dezembro de 2002, exarada a fls. .... e seguintes do livro ....-B, em uso, ao tempo, no Cartório Notarial de X...;

c) Se considerasse impugnada e sem qualquer efeito tal escritura, com todas as consequências legais, ordenando-se o cancelamento de todo ou qualquer acto ou registo que tenha sido ou venha a ser feito com base em tal escritura, nomeadamente na Conservatória do Registo Predial de X...;

d) Se declarasse nula a venda formalizada na mesma escritura a favor dos terceiros réus, por se tratar de venda de bens alheios e venda simulada;

e) A condenação dos réus a reconhecer que o prédio em questão foi adquirido pela autora e pelo marido por usucapião;

f) Se declarasse que actualmente o prédio faz parte e integra a herança indivisa aberta por óbito de B..., que foi marido da autora;

g) A condenação solidária dos réus a pagar à autora, na qualidade em que intervém, uma indemnização condigna por todos os danos e prejuízos materiais e morais que lhe causaram, a liquidar em execução de sentença.

Em abono da sua pretensão alegou, em síntese, que o prédio em questão foi adquirido por si e pelo seu marido, entretanto falecido, por usucapião, sendo falsas as declarações prestadas na escritura de justificação notarial.

I.... e mulher J... contestaram, concluindo pela improcedência da acção, e deduziram reconvenção. Nesta sede pediram:

a) Se reconhecesse a validade da escritura de justificação bem como de todos os actos subsequentes e se reconhecesse a propriedade exclusiva dos contestantes sobre o prédio;

b) A condenação da autora como litigante de má fé.

A autora respondeu, concluindo pela improcedência da reconvenção.      

Os autos prosseguiram os seus termos e, a final, foi proferida sentença que:

a) Declarou impugnado o facto justificado na escritura mencionada no ponto n.º 1 dos factos assentes;

b) Declarou que o prédio descrito sob o n.º 0... da escritura de justificação notarial não pertencia, nem nunca pertenceu aos primeiros réus e que eram falsas as declarações prestadas e que constavam da escritura de justificação notarial;

c) Ordenou o cancelamento de todo ou qualquer acto ou registo que tenha sido feito com base em tal escritura na Conservatória do Registo Predial de X...;

d) Declarou nula e de nulo efeito a venda formalizada pela mesma escritura a favor dos 3ºs réus;

e) Absolveu a autora do pedido reconvencional deduzido.

Os réus I...e esposa J... interpuseram recurso contra a sentença, pedindo a sua substituição por outra que julgasse procedente o pedido reconvencional.

Fundamentaram o recurso nas seguintes razões:
1. As testemunhas L.... e M.... são vizinhos dos aqui recorrentes e sabem, como o demonstraram, quem são e quem foram as pessoas que sempre praticaram sobre o imóvel objecto dos presentes autos actos materiais de posse.
2. Do depoimento daquelas duas testemunhas resulta inequívoco que sabiam onde fica o terreno do aqui recorrente, onde fica a parcela de terreno de que a autora é proprietárias, bem diferente do objecto do imóvel objecto dos presentes autos, atestando igualmente que o recorrente é proprietário de duas parcelas de terreno, de cada um dos lados da E.N. ...., sendo certo que em ambas as confrontações a Norte e a Sul são com aquelas testemunhas, não havendo qualquer outra parcela, pelo que duvidas não restam que o imóvel objecto dos presentes autos é, efectivamente, propriedade do aqui recorrente.
3. As testemunhas foram ainda mais longe e reconheceram que, ao indicar na escritura as confrontações trocadas, tal ficou a dever-se a lapso.
4. Tal lapso não seria nunca suficiente para fazer improceder o pedido reconvencional dos recorrentes.
5. Os depoimentos daquelas testemunhas, pela clareza, isenção e conhecimento directo que demonstraram, foram de molde a produzir prova bastante para se considerar provados os quesitos 15 a 20 da base instrutória.
6. Sem conceder, a sentença ora em crise violou o disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial, bem como, o disposto no n.º 1 do artigo 342 do Código Civil.
7. Tendo o pedido de anulação da escritura de justificação sido feito posteriormente ao registo de aquisição por parte dos réus ora recorrentes, cabia à autora provar os factos demonstrativos da sua propriedade de molde a afastar a presunção de que gozam os recorrentes por força do registo.
8. Nos presentes autos a prova produzida não foi de molde a ilidir a presunção de que beneficia o aqui recorrente, pelo que não poderia a sentença ora em crise decretar impugnada a escritura de justificação notarial de 17 de Dezembro de 2002, iniciada a fls. .... do Livro n. 0... ....-B, do Cartório Notarial de X..., porquanto, como se demonstrou, as autoras não demonstraram sobre aquele imóvel qualquer acto de posse que pudesse afastar a propriedade dos recorrentes que se presume.
9. Mesmo perante a “contradição” das confrontações existentes entre o que consta da aludida escritura e o que as testemunhas atestaram em tribunal, tal facto não poderia afastar a presunção derivada do artigo 7º do Código de Registo Predial porquanto é entendimento da nossa melhor jurisprudência que o registo não abrange as áreas, limites e confrontações de cada prédio.
10. Face à escritura de justificação e posterior registo, não é ao aqui recorrente que incumbe o ónus da prova dos factos por si alegados.
11. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 342, n.º 1, do Código Civil e artigo 7º, do Código de Registo Predial, devendo, em consequência, ser substituída por outra que dê cabal cumprimento às normas violadas, e, em consequência, considere o pedido reconvencional procedente por provado, assim se fazendo a tão costumada justiça.

      Não houve resposta.


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As principais questões que importa solucionar são fundamentalmente as seguintes:

Em primeiro lugar, trata-se de saber se o tribunal errou ao julgar não provados os pontos números 15 a 20 da base instrutória;

Em segundo lugar, trata-se de saber se a sentença violou o disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil, e no artigo 7º do Código de Registo Predial.


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Comecemos pelo julgamento da questão de facto, pois ela tem precedência lógica sobre a questão de direito.

Vejamos, antes de mais, qual a matéria em causa. 

Sob os números 15, 16, 17 e 18 perguntava-se se a 1ª ré, há mais de 20, 30, 40 anos, amanhava a terra, semeava, colhia plantações e culturas no prédio referido em A) [prédio rústico composto de terreno a pinhal, sito em ...., freguesia de ....... X..., com a área de 420 m2, a confrontar do norte com M...., do sul com L...., do nascente com N.... e do poente com estrada nacional ...., não descrito na Conservatória, inscrito na respectiva matriz sob o artigo número 1111.....], de forma contínua, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém e na convicção de que fruía de coisa sua.

Sob o número 19º perguntava-se se os marcos colocados no terreno existiam há mais de 30 anos; sob o número 20 perguntava-se se os marcos tinham as iniciais da 1ª ré e, por baixo, da 3ª ré.

O tribunal declarou não provadas as alegações supra referidas, dizendo, em síntese, que enquanto na escritura de justificação o prédio em causa confrontava do norte com M.... e do sul com L...., as testemunhas declararam que, com estas confrontações não conheciam nenhum prédio que tivesse pertencido aos primeiros réus; L....declarou que o prédio que conheceu aos primeiros réus confrontava a norte com o dele; M.... declarou que o seu prédio ficava a sul do dos primeiros réus.  

Os recorrentes insurgem-se contra as respostas dadas com a alegação de que L.... e M.... sabiam onde é que ficava a parcela em discussão nos autos, onde ficava a parcela de terreno de que é proprietária a autora e que os seus depoimentos, pela clareza, isenção e conhecimento, constituem prova bastante das alegações vertidas nos pontos números 15 a 20º.

Considerando que os depoimentos invocados como fundamento do erro na apreciação das provas foram gravados, cabe ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações dos recorrentes, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos de prova que hajam servido de fundamento à decisão de facto sobre os pontos da matéria de facto impugnados (artigo 712º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPC).

Antes de passarmos à reapreciação das provas, importa assinalar que esta reapreciação sofre de limitações.

A primeira é constituída pelo facto de o tribunal da Relação não ter contacto directo com as testemunhas. Como se assinalava no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembro de ....1, “a apreciação livre das provas pessoais, para ser perfeita, exige o contacto directo do julgador com as pessoas que as prestam”.

Em segundo lugar, estando em discussão a posse sobre determinado prédio, diz-nos a experiência que é sempre de grande utilidade para a decisão da causa que a inquirição das testemunhas tenha lugar no local da questão. No local da questão, fica a saber-se a que prédio é que as testemunhas se referem nos seus depoimentos, o que, no caso, nem sempre foi claro. Aconteceu que, por vezes, a Meritíssima juiz, os Exm.ºs advogados ou as testemunhas procuravam identificar as confrontações do terreno em discussão por referência a “Mira”, “a X...” “à serra” ou ao “mar”. Como é bom de ver, a Relação não está em condições de sindicar o acerto destas referências.

Apesar destas limitações, cumpre ao tribunal da Relação reapreciar a prova e formular a sua própria convicção.

Ouvidos os depoimentos das testemunhas que os recorrentes invocaram como fundamento do erro na apreciação da prova, verifica-se que ambas afirmaram que eram proprietárias de terrenos que confinavam com um prédio que sempre pertenceu aos “O...”, isto é, à família da ré C... e da ré E....

Como foi referido na decisão de facto, as testemunhas não confirmaram, no entanto, que a norte e a sul o prédio tivesse as confrontações mencionadas na escritura de justificação. L... declarou que a norte do prédio dos “ O....” situava-se o seu prédio; M.... declarou que o seu prédio ficava a sul do prédio do Sr. P.... ...., isto é, do antecessor dos primeiros réus.

Apesar destas divergências quanto à confrontação norte e sul do prédio, ouvidos os depoimentos das citadas testemunhas, bem como os de Q.... (irmão da ré E... e primo da ré C...), adquiriu-se a convicção de que o prédio dos “ O....”, isto é, dos familiares dos primeiros réus, é precisamente o que está descrito na escritura de justificação sob o número 0....      

Sucede que as testemunhas não confirmaram que a 1ª ré, ou seja, C..., amanha esse prédio, colhe plantações e culturas há mais de 20, 30 ou 40 anos. O que as testemunhas disseram foi que sempre conheceram os “ O....” a “fazer” esse prédio, querendo referir-se aos avós e pais da ré C... e da ré E.... Porém, uma realidade é a de o prédio ser cultivado e amanhado há mais de 40 anos pela família dos “ O....”, ou seja, pelos avós e pelos pais da ré C... e da ré E...; outra realidade bem diferente é a de o prédio ser cultivado pela 1ª ré há mais de 20, 30 ou 40 anos. Ora, esta realidade, que era a controvertida, não foi confirmada pelas testemunhas em causa, nem pelos depoimentos de Q.... nem pela própria ré.

Embora se colham nos depoimentos indícios convincentes de que o terreno em causa sempre foi cultivado e amanhado pelos antecessores da 1ª ré e também por esta, a prova produzida não demonstrou, no entanto, que é ela quem amanha e cultiva o prédio há mais de 20, 30, 40 anos, de forma contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de que fruía coisa sua.       

Quanto à matéria do ponto n.º 19, embora as testemunhas tenham confirmado que havia marcos a demarcar o terreno dos que lhes eram confinantes, nenhuma delas confirmou que esses marcos existiam há mais de 30 anos. Por sua vez, nenhuma das testemunhas confirmou a matéria do ponto n.º 20.

Assim, embora por razões inteiramente não coincidentes com as da decisão de facto, mantêm-se as respostas negativas aos pontos n.ºs 15 a 20 da base instrutória.


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Factos considerados provados:
1. Por escritura de justificação notarial de 17 de Dezembro de 2002, iniciada a fls. .... do livro n.º ....-B, do Cartório Notarial de X..., os primeiros réus declararam que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: rústico, composto de terreno a pinhal, sito em ....... X..., com a área de 420 m2, a confrontar do norte com M...., do sul com L....., do nascente com N....e do poente com estrada nacional ...., não descrito na Conservatória do Registo Predial, inscrito na respectiva matriz sob o artigo número 1111....., com o valor patrimonial de 2,60 euros, a que atribuem o valor de duzentos euros.
2. Na dita escritura, os 1ºs réus declararam, então, que “os referidos imóveis pertencem-lhes por os terem comprado, no ano de 1980 e portanto há mais de 20 anos, a R.... e mulher S.... , residentes que foram no lugar de ...., freguesia de ....... X..., não possuindo, no entanto, eles justificantes, título formalmente válido que comprove tal compra”.
3. Declararam ainda que “desde que a mesma foi efectuada até esta data, sempre eles justificantes usufruíram o citado imóvel ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com a consciência de utilizarem e fruírem coisa exclusivamente sua, adquiridas de anteriores proprietários, fazendo sementeiras, plantações e culturas e dele retirando todos os seus normais frutos, produtos e utilidades”.
4. Declararam que, “em consequência de tal posse, em nome próprio, pacífica, pública e contínua, adquiriram sobre os ditos imóveis o direito de propriedade por usucapião, não tendo em face do modo de aquisição documento que lhes permita comprovar o seu direito de propriedade perfeita”.
5. Os segundos réus declararam que “confirmam as declarações que antecedem feitas pelos primeiros outorgantes por serem inteiramente verdadeiras”.
6. Os primeiros réus declararam finalmente que “por esta mesma escritura, pelo preço global de quatrocentos euros, que já receberam, vendem ao terceiro outorgante, aqui terceiro réu, os imóveis atrás identificados e objecto de justificação”.
7. O terceiro outorgante marido declarou aceitar o contrato nos termos exarados. 

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Exposta a matéria de facto, é altura de conhecer do recurso que versa sobre a matéria de direito.

Vejamos, em síntese, as razões que levaram a sentença recorrida a julgar procedente a impugnação da escritura de justificação notarial e improcedente a reconvenção.

A sentença começou por classificar a presente acção como uma acção de simples apreciação negativa. Seguidamente, invocando a jurisprudência fixada pelo acórdão n.º 1/2008, publicado no D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31, considerou que cabia aos réus a prova dos factos constitutivos do direito que se arrogavam e que os réus não podiam beneficiar da presunção derivada do registo. Com base nestas premissas e no facto de os réus não terem provado que exerceram sobre o prédio em questão actos de posse conducentes à aquisição da propriedade do prédio por usucapião, concluiu pela procedência da impugnação da escritura de justificação. Quanto à reconvenção, entendeu que, como os réus não provaram os actos de posse consignados na escritura de justificação, ficava prejudicada a validade dos actos subsequentes a essa escritura, concretamente a compra e venda outorgada pelo 3º réu, ora recorrente.   

Os recorrentes opõem-se a esta fundamentação com a alegação de que, tendo o pedido de anulação da escritura de justificação sido feito após o registo da aquisição do prédio, era à autora que cabia provar os factos demonstrativos da sua propriedade, de molde a afastar a presunção de que gozam os recorrentes por força do registo. Como a autora não ilidiu a presunção derivada do registo, não poderia a sentença julgar procedente a impugnação da escritura de justificação notarial. Com base nesta alegação imputaram à decisão recorrida a violação do artigo 7º, do Código de Registo Predial, e do n.º 1, do artigo 342º, do Código Civil, e pediram a procedência do pedido reconvencional, ou seja, o reconhecimento de que a escritura de justificação era válida bem como o reconhecimento de que eram proprietários do prédio em questão.

Como se procurará demonstrar não assiste razão aos recorrentes.

Antes de mais importa dizer que a presente acção não é uma pura acção de simples apreciação negativa, isto é, uma acção que tem por fim obter unicamente a declaração da inexistência de um direito ou de um facto (artigo 2º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil). Na verdade, se é certo que tem por fim obter a declaração de que o prédio em causa nos autos não pertence nem numa pertenceu aos primeiros réus, também tem por fim obter a declaração de que esse prédio pertence à herança indivisa aberta por óbito de B..., marido da autora (o que corresponde a um pedido próprio de uma acção de simples apreciação positiva) e obter a declaração de nulidade da compra e venda celebrada entre os réus C..., D... e E..., como vendedores, e I...., como comprador.

Feita esta observação, importa dizer que constitui jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça que “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 publicado no D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31).

É certo que, ao estabelecer que incumbe aos réus a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial, o acórdão uniformizador tem em vista réus justificantes e o registo da aquisição por usucapião com base na escritura de justificação, ao passo que, no caso, o registo que é invocado como fonte da presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito é o registo da compra efectuado com base na escritura de compra e venda, em que intervieram os réus C..., D... e mulher E..., como vendedores, e o recorrente I....a, como comprador.

Apesar destas diferenças, a solução consagrada no acórdão uniformizador mantém-se.

Em primeiro lugar, em caso de impugnação da escritura de justificação, o ónus da prova dos factos justificados na escritura cabe não apenas aos justificantes, mas a todos os que, tendo sido demandados, se quiserem prevalecer da escritura de justificação notarial. É o que se passa no caso com os ora recorrentes. Não tendo os mesmos provado a aquisição do prédio, por usucapião, por parte dos justificantes, bem andou a sentença recorrida em julgar procedente a impugnação da escritura de justificação notarial.

De resto, esta era a solução que se impunha face aos termos da única contestação apresentada. Na verdade, a improcedência da justificação dependia da prova dos factos justificados, ou seja e em síntese, de que o prédio foi adquirido, por usucapião, pelos justificantes, os réus C..., D... e E.... Tendo esta versão sido contrariada pelos ora recorrentes – únicos contestantes – com a alegação de que o prédio havia sido adquirido exclusivamente pela ré C..., não se vê como podia subsistir a justificação notarial.             

Em segundo lugar, apesar de o registo de onde os recorrentes fazem derivar a presunção de propriedade não ser o da aquisição, por usucapião, mas o registo da compra, a verdade é que a validade e a eficácia do facto registado – a compra em que interveio o recorrente - estava dependente da subsistência do facto justificado, ou seja, da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos por parte dos vendedores.  

Julgada procedente a impugnação da escritura de justificação notarial, isto é, assente que os vendedores não eram os proprietários do prédio, não podia subsistir a aquisição desse prédio pelo recorrente nem o registo dessa aquisição, pois, como é sabido, a compra e venda não é constitutiva do direito de propriedade, mas apenas translativa desse direito (cfr. neste sentido Pires de Lima e A. Varela, em Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, páginas 115). Se os réus C..., D... e mulher E... não eram titulares do direito de propriedade é inequívoco que o não o poderiam transmitir ao recorrente.  

Face ao exposto, carece de fundamento a imputação à decisão recorrida da violação do disposto no artigo 7º, do Código de Registo Predial.    

Por último, cabe dizer que, ainda que os recorrentes beneficiassem da presunção derivada do registo, prevista no artigo 7º, do Código de Registo Predial, estava vedado ao tribunal da 1ª instância, como está vedado ao Tribunal da Relação, decretar a procedência da pretensão dos recorrentes com fundamento nessa presunção. Vejamos.

Sem prejuízo do disposto no artigo 264º, do CPC, - que não releva para o caso – o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes (artigo 664º, do CPC).

Assim, é às partes que compete alegar os factos constitutivos dos seus direitos, sendo certo que, na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou ampliação seja consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (artigo 273º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Os recorrentes pediram se declarasse a validade da escritura de justificação e se lhes reconhecesse o direito de propriedade sobre o prédio em discussão com fundamento no facto de o prédio haver sido adquirido pela 1ª ré por usucapião.

Nem na contestação/reconvenção nem na resposta à réplica invocaram o registo da compra do prédio e a presunção derivada do registo prevista no artigo 7º, do CRP.  

Só em sede de recurso e perante a falta de prova dos factos por si alegados, invocaram a presunção derivada do registo.

Sendo a causa de pedir o facto jurídico concreto de onde emerge a pretensão do autor (cfr. artigo 498º, n.º 4, do CPC), é patente que a invocação, em sede de recurso, do registo da aquisição da compra do prédio como fundamento da pretensão dos recorrentes, configura uma ampliação da causa de pedir, o que não é consentido pelo disposto no artigo 273º, n.º 1, do CPC.     

Face ao exposto, impõe-se manter a sentença recorrida.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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As custas serão suportadas pelos recorrentes.