Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/10.7TTTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL E DE SEGURANÇA SOCIAL
RECURSO
NOVO REGIME
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIMENTO
Legislação Nacional: LEI Nº 107/09, DE 14/09.
Sumário: I – De acordo com o artº 49º, nº 1, al. a), do RPCOLSS (Lei nº 107/09, de 14/09), que entrou em vigor em 1/10/2009, a possibilidade de recurso da decisão proferida pela 1ª instância ficou limitada aos casos em que a sanção aplicada seja superior a 25 UCs, ou seja € 2.550,00 (1 UC = € 102,00).

II – O momento para a fixação da aplicação da nova lei processual, relativa à possibilidade de recorrer, não pode ser o da decisão judicial proferida na 1ª instância mas sim o da altura em que, pela primeira vez, foi proferida uma decisão sancionatória pela entidade administrativa, após a análise de todo o procedimento administrativo, pois é nessa altura que fica definida a relação entre o arguido e o processo no que respeita à concretização e condições de exercício do seu direito de recorrer das decisões que lhe sejam desfavoráveis.

III – No artº 49º, nº 2, do RPCOLSS estipula-se que “para além dos casos enunciados no nº anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”.

IV – Deve entender-se que só se observa a referida manifesta necessidade quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, assim não sucedendo perante uma mera discordância quanto à aplicação do direito.

V – As garantias do processo sancionatório que decorrem do artº 32º da CRP são aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do seu nº 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. No presente processo, foi proferida a seguinte decisão sumária (arts. 414.º, n.º 2, e 417.º, n.º 6, al. b), do CPP) pelo relator:

“Pela Autoridade para as Condições de Trabalho foi aplicada a M…, SA, a coima única € 1.500,00, pela prática de uma contra ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 8.° e 16.º do D.L. 237/2007 de 19/06, e 620.º n.° 3, c) do C.T.

Inconformada, deduziu a arguida impugnação judicial na qual não obteve sucesso.

Mais uma vez inconformada recorre agora para esta Relação, dizendo fazê-lo ao abrigo do disposto no art° 49.°, n.° 2, da Lei n.º 107/2009, de 14.09, que aprova o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social (RPCOLSS).

Neste tribunal o Exmo Sr. PGA emitiu parecer no sentido da inadmissibilidade da impugnação.


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Preliminarmente, coloca-se a questão da admissibilidade deste recurso atento o valor da sanção aplicada e o novo regime de recurso estabelecido pela Lei 107/09 de 14/9.

A infracção em causa, segundo a acusação, foi praticada em Novembro de 2008. Na altura era admissível recurso para a 2ª instância desde que a coima aplicada (em concreto) fosse superior a € 249, 40 (73.° n° 1 a) do DL. 433/82 de 29/10)

Porém e entretanto entrou em vigor o RPCOLSS, em 1/10/09 (seu art° 65° n° 1).

E de acordo com o art.° 49.° n.° 1, al. a), deste mesmo diploma, a possibilidade de recurso da decisão proferida pela lª instância ficou a limitar-se aos casos em que a sanção aplicada fosse superior a 25 Ucs ou seja € 2.550,00 (1 UC= € 102,00).

Tratando-se de regime adjectivo, poderia concluir-se que se aplica a todos os processos mesmo relativos a infracções cometidas antes de 1/10/09

E daí concluir que dado o valor da sanção aplicada em concreto, não havia possibilidade de impugnar a sentença proferida na 1ª instância.

Todavia, tal com vimos entendendo nesta Relação, como estamos no domínio do direito sancionatório (ainda que não criminal), haverá que ter em conta os direitos de defesa constitucionalmente consagrados na CRP (artigo 32.° n.° 1), entre os quais se inclui o direito de recorrer, que não é, todavia, um direito restrito e abstracto, mas tão somente o direito de recorrer das decisões que são desfavoráveis ao arguido nas condições e segundo os pressupostos que a lei fixa - cfr. Ac do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.° 4/2009, in D.R. lª  Série, de 19/3/09.

Por isso, temos entendido que o momento para a fixação da aplicação da nova lei processual, relativa à possibilidade de recorrer, não pode ser o da decisão judicial proferida na 1ª instância (que já de si assume um carácter recursivo - art° 32.° da L. 107/09, de 14/9 (cfr. ainda o aludido art°73° n° 1 a) do D.L 433/82) - mas sim o da altura em que pela primeira vez foi proferida uma decisão sancionatória pela entidade administrativa, após a análise de todo o procedimento administrativo pois é nessa altura que fica definida a relação entre o arguido e o processo (a "situação processual" do arguido) no que respeita à concretização e condições de exercício do seu direito de recorrer  das decisões que lhe sejam desfavoráveis.

No caso concreto a decisão administrativa foi proferida em 30 de Dezembro de 2009, ou seja, já no domínio do novo RPCOLSS.

Nessa altura, atento o valor da coima aplicada em concreto (€ 1.500,00) já não era admissível recurso de impugnação para este Tribunal da Relação visto o disposto no artigo 49°, nº1, a) do novo RPCOLSS, uma vez que o valor da coima aplicada pelo tribunal recorrido é inferior a € 2.550,00.

Porém, como se disse, a arguida invoca o disposto no artigo 49°, n.º 2, do RPCOLSS, no qual se estipula que “para além dos casos enunciados no número anterior, pode o tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência” (norma em tudo idêntica à disposição já antes constante do art.º 73.º n.º 2 do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro).

A arguida não invoca exactamente a promoção da uniformização de jurisprudência, porque nem para tanto identifica concretas decisões contraditórias que a justificassem.

Invoca sobretudo – e isso cumpre avaliar – a necessidade do recurso por se afigurar manifestamente necessário à melhor aplicação do direito.

Ora, tal como indica o Ex.mo PGA no seu parecer, temos entendido (tal como o Ac. da Relação de Lisboa de 10-12-2003 que cita) que só se observa aquela manifesta necessidade quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível.

Assim não sucedendo, uma mera discordância quanto à aplicação do direito (como sucede de forma legitimamente usual) geraria que o recurso fosse sempre admissível, convertendo-se a excepção em regra, como refere o Ex.mo PGA.

Ora, analisando a sentença e os argumentos da arguida, não encontramos o erro grosseiro, notório ou incomum que torne manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do direito a admissibilidade do recurso.

Por tudo isto, decide-se, nos termos dos artigos 414° nº 2 e 417 nº 6, al. b) do C.P.Penal, rejeitar o recurso.

Veio então a requerente apresentar reclamação para a Conferência desse despacho, nos termos do artigo 417.º, n.º 9, do Código do Processo Penal.

Apresentou os seguintes fundamentos:

1. Por decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho de Tomar a recorrente foi condenada em coima no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) por violação do disposto no art.º 8° do Decreto-­Lei n.º 237/2007 de 19 de Junho.

2. Não se conformando com tal decisão, a recorrente interpôs recurso ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 49° da Lei n.º 107/2009, de 14.09.

3. Sobre tal recurso foi proferida decisão sumária nos termos dos arts.º 414°, n.º 2 e 417°, n.º 6, al. b), do CPP, que rejeitou o recurso.

4. Para assim decidir, considerou o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator não encontrar na decisão recorrida erro grosseiro, notório ou incomum que torne manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do direito a admissibilidade do recurso.

5. Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal decisão.

6. Com efeito, não se trata de uma mera discordância quanto à aplicação do direito, mas antes, em nosso entender, e sempre com o devido respeito, de erro na aplicação do direito, impondo-se a necessidade da sua melhor aplicação.

7. É o caso da condenação pela alegada violação do art.º 8° do Decreto-­Lei n.º 237/2007, de 19.06.

8. Consta dos factos dados como provados que no dia 25.11.2008, o motorista B…, iniciou a jornada de trabalho pelas 07h31 m e terminou às 14h09m, o que perfaz 06h38m de trabalho consecutivo - 04h09m de condução e 02h29m de outros trabalhos - sem que tivesse qualquer intervalo de descanso.

9. Pelo que se concluiu naquela sentença que o motorista não fez qualquer pausa para descanso, após seis horas de trabalho, desde logo os 30 minutos previstos no n.º 1 do art.º 8° do Decreto-Lei n.º 237/2007.

10. Considerando-se assim na mesma sentença que “o facto de nos tempos registados como outros trabalhos o motorista não estar a conduzir, não significa que esteja em descanso”.

11. Aqui reside a primeira questão sobre a qual deverá incidir uma melhoria de aplicação do direito.

12. Se é verdade que o facto de nos tempos registados como outros trabalhos não significa que o motorista esteja em descanso, também é verdade que pode significar que esteja em descanso ou em tempo de disponibilidade.

13. Seguramente significa que não está a conduzir.

14. Não resulta da matéria de facto dada como provada que o período de 2h29m não se referisse a tempo de disponibilidade.

15. Sendo certo que, nos termos do art.º 5 do Decreto-Lei n.º 237/2007, o tempo de disponibilidade previsto na alínea c) do artigo 2° não é considerado tempo de trabalho.

16. E assim sendo os autos não permitem concluir pela violação do art.º 8° do Decreto-Lei n.º 237/2007.

17. Por outro lado, a recorrente invocou a melhoria da aplicação do direito e promoção da uniformização de jurisprudência no que respeita à questão da responsabilidade da entidade patronal.

18. Na sentença recorrida considerou-se a recorrente responsável pela infracção nos termos do disposto no art.º 10°, n.º 2 do citado diploma.

19. Como é sabido existe jurisprudência no sentido de considerar que tal normativo consagra a responsabilidade objectiva e outros defendem que a responsabilidade da entidade patronal tem de resultar de factos concretos que lhe sejam imputados e que permitam concluir que a mesma actuou de forma negligente ou dolosa.

20. É aquele último o nosso entendimento, considerando que no caso sub judice atenta a inexistência de qualquer facto se impunha a procedência do recurso.

21. E em face da divergência da jurisprudência quanto à questão da responsabilidade da entidade patronal, importa fixar se tal responsabilidade é objectiva ou se tem de resultar de factos concretos que lhe sejam imputados e que permitam concluir que a mesma actuou de forma negligente ou dolosa.

22. Por último, a interpretação do n.º 2 do art.º 49° do DL 107/2009, segundo a qual apenas é admissível recurso quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, é inconstitucional por violação das garantias de audiência e defesa (art.º 32° da CRP, que no seu n.º 1 incluiu expressamente o recurso).

23. Sendo certo que a impugnação judicial em matéria de contra­-ordenações não é e não pode ser equiparada a um recurso jurisdicional de uma decisão jurisdicional, sendo a sua decisão final a primeira decisão judicial sobre a questão.

Nos termos expostos e ao abrigo do disposto no n.o 8 do art.° 4170 do C.P.P. apresenta-se a presente reclamação para a Conferência, requerendo que o recurso seja recebido e a final julgado procedente.

Apresentada esta reclamação, a Ex.ma PGA respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Apreciação

Vistas as alegações e as conclusões do recurso, não vemos que seja de alterar o despacho reclamado.

Como nele se afirmou, a infracção em causa, segundo a acusação, foi praticada em Novembro de 2008, mas entretanto entrou em vigor o RPCOLSS, em 1/10/09.

E de acordo com o seu art.° 49.°, n.° 1, al. a), a possibilidade de recurso da decisão proferida pela lª instância ficou a limitar-se aos casos em que a sanção aplicada fosse superior a 25 Ucs ou seja € 2.550,00 (1 UC= € 102,00).

Como ali se disse, tratando-se de regime adjectivo, vimos entendendo nesta Relação, que o momento para a fixação da aplicação da nova lei processual, relativa à possibilidade de recorrer, é o da altura em que pela primeira vez foi proferida uma decisão sancionatória pela entidade administrativa, após a análise de todo o procedimento administrativo pois é nessa altura que fica definida a relação entre o arguido e o processo (a "situação processual" do arguido) no que respeita à concretização e condições de exercício do seu direito de recorrer das decisões que lhe sejam desfavoráveis.

Assim, tendo a decisão administrativa sido proferida em 30 de Dezembro de 2009, ou seja, já no domínio do novo RPCOLSS, atento o valor da coima aplicada em concreto (€ 1.500,00) já não era admissível recurso de impugnação para este Tribunal da Relação visto o disposto no artigo 49°, nº1, a), do novo RPCOLSS, uma vez que o valor da coima aplicada pelo tribunal recorrido é inferior a € 2.550,00.

É certo que a arguida invocou o disposto no artigo 49°, n.º 2, do RPCOLSS, no qual se estipula que “para além dos casos enunciados no número anterior, pode o tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência” (norma idêntica à disposição já antes constante do art.º 73.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro).

Mas a arguida não invocou, na realidade, a promoção da uniformização de jurisprudência porque nem para tanto identificou concretas decisões contraditórias que a justificassem, nomeadamente decisões desta Relação.

A mesma invoca erro da 1ª instância na interpretação da matéria de facto (e sua subsunção ao direito aplicável), mas isso não é suficiente para lhe conceder a excepção na limitação ao direito de recorrer.

Invoca-se a necessidade de clarificar se as normas invocadas na decisão da 1ª instância consagram uma responsabilidade objectiva, quando existem decisões que defendem que a responsabilidade da entidade empregadora tem de resultar de factos concretos que lhe sejam imputados e que permitam concluir que a mesma actuou de forma negligente ou dolosa.

Ora, apesar da sentença da 1ª instância utilizar a expressão “responsabilidade objectiva”, a verdade é que esclareceu o quadro em que considerou existir nexo de imputação dos factos à arguida, considerando (e explicando) um quadro culposo imputável à mesma, condenando-a por conduta negligente.

As considerações nela feitas não se encontram em divergência com a jurisprudência que tem sido afirmada nesta Relação.

Daí que também não se veja necessidade do recurso por se afigurar manifestamente necessário à melhor aplicação do direito.

Como se disse no despacho reclamado, temos entendido que só se observa aquela manifesta necessidade quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, assim não sucedendo perante uma mera discordância quanto à aplicação do direito.

Ora, não encontramos o “erro grosseiro, notório ou incomum” que torne manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do direito a admissibilidade do recurso.

A reclamante invoca agora que aquela interpretação do n.º 2 do art.º 49° do novo RPCOLSS, segundo a qual apenas é admissível recurso quando da decisão impugnada se observe um “erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível”, é inconstitucional por violação das garantias de audiência e defesa, na medida em que o art.º 32° da CRP, no seu n.º 1, incluiu expressamente o recurso.

Todavia a doutrina do Tribunal Constitucional, quanto a esta matéria, não é favorável a esse enfoque.

Em matéria contra-ordenacional, o direito ao recurso não surge com a mesma tutela constitucional que no processo criminal.

Como referiu o Ac. do TC n.º 313/007:

“A introdução do nº 10 no artº 32º da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.

Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1 do artº 32º da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisidicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação.

Conforme se sustentou no Acórdão nº 659/06 deste Tribunal, cuja fundamentação acompanhamos de perto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no nº 10 do artº 32º da C.R.P. não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional. Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões.

A não inclusão do direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do nº 10 do artº 32º da C.R.P., ressalta da diferença de redacção dos nº 1 e 10 deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artº 32º - B do Projecto de Revisão Constitucional nº 4/VII, do PCP, foi rejeitada (leia-se o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466).

O direito ao acesso aos tribunais consagrado no artº 20º, nº 1, da C.R.P., e o direito dos administrados à tutela jurisdicional, nomeadamente para a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, consagrado no artº 268º, nº 4, da C.R.P., apenas exigem que se possibilite a impugnação judicial da aplicação de sanções pela prática de contra-ordenações pelas autoridades administrativas e não uma dupla apreciação jurisdicional dessa impugnação.

(…) O direito a uma segunda apreciação jurisidicional apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência extensível aos demais processos sancionatórios, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador a estatuição das situações em que se justifique a possibilidade duma dupla apreciação da impugnação judicial, desde que efectuada de forma não arbitrária e proporcional”.

Por outro lado, das garantias gerais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, vertidas, nomeadamente, no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, não decorre um direito ao recurso, ou seja, à reapreciação das decisões judiciais por um tribunal superior (neste sentido, por exemplo, v. o Acórdão do TC n.º 589/2005).

Assim, embora o Tribunal Constitucional tenha vindo a afirmar a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal, da CRP não resulta a aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal (v. ainda, Ac. TC n.º 522/08, citado pela Ex.ma PGA).

Ou seja, as garantias do processo sancionatório que decorrem do art.º 32.º da CRP, são aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do seu n.º 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.

Por isso, entendemos que a arguida não tem razão quando suscita a questão de constitucionalidade.

Por tudo isso, a reclamação não pode ser atendida.


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III- DECISÃO

Termos em que se delibera indeferir a reclamação.

Custas a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.



Luís Azevedo Mendes (RELATOR)

Felizardo Paiva