Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
964/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PEDIDOS E DEFESA DO DEMANDADO
COMODATO
CESSÃO DE CONTRATO DE COMODATO
Data do Acordão: 06/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1129º, 1137º E 1311º DO C. CIV..
Sumário: I – São dois os pedidos que integram e caracterizam uma acção de reivindicação : o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro .
II – O demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa .

III – A existência de um contrato de comodato constitui um dos meios legais que obsta à entrega da coisa pelo seu detentor ao respectivo proprietário .

IV – De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o dito se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do artº 1276º e segs. do C. Civ.

V – Do artº 1137º do C. Civ. resulta que o contrato de comodato cessa ou termina quando finde o prazo certo porque foi convencionado; ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido; ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija .

VI – Considerando que as partes podem convencionar que os efeitos do negócio jurídico comecem ou cessem a partir de certo momento, constitui entendimento geral que o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário – ou seja, em que o comodante atribua o uso da coisa por toda a vida do comodatário – é válido, porque o seu termo, embora incerto, é determinável .

Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Os autores, A... e sua mulher B..., instauraram a presente acção declarativa (inicialmente sob a forma sumária e depois, por força da reconvenção da ré, sob a forma ordinária) contra a ré, C..., alegando paro efeito, e em síntese, o seguinte:
Serem os donos do prédio urbano id. no artº 1º da pi., que compraram à ré, por escritura pública outorgada em 3/9/1997, pelo preço de esc. 3.000.000$000.
Como a ré é a mãe da autora-mulher e os autores se encontravam então emigrados em França, permitiram que a mesma ali residisse, de forma gratuita e provisória, até que os mesmos regressassem definitivamente daquele país.
Regresso esse que aconteceu no ano de 2000, tendo desde então passado a viver permanentemente no aludido imóvel.
Porém, a ré vem-se recusando a abandonar o mesmo, apesar de os autores virem insistentemente a pedir-lhe para o fazer.
Pelo que terminaram pedindo que seja mandado restituir-lhes o aludido imóvel e a ré condenada a abandoná-lo e a deixá-lo livre de pessoas e bens.

2. Na sua contestação, a ré defendeu-se, alegando, em síntese, o seguinte:
Ser nula a referida venda, já que a sua declaração se encontra viciada por a sua vontade real não corresponder àquilo que ficou declarado na respectiva escritura pública, pois o que na realidade queria fazer era doar o prédio em causa àqueles seus familiares mas ficando para si com a reserva do seu usufruto vitalício. Para essa divergência de vontade contribuíram dolosamente os autores, servindo-se do facto de ela não saber ler e escrever, sendo certo que os mesmos bem sabiam que era aquela a sua vontade real e que nunca lhe pagaram qualquer preço pelo alegada venda, ao contrário do que ficou declarado na escritura.
Porém, mesmo que assim porventura não se entenda, sempre os autores deixaram uma documento escrito a autorizá-la a habitar e a ocupar o dito prédio até ao dia da sua morte.
Estarem a autores a litigar com má fé, alterando verdade dos factos.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção, e a procedência da reconvenção que, na sequência daqueles factos, aduziu, pedindo que os autores fossem condenados a verem “declarada nula e de nenhum efeito a referida compra e venda formalizada pela escritura de 3/9/1997”; não se ordenando a entrega do imóvel aos autores, declarando-se que o mesmo “pertence e é propriedade da ré”, e ordenando-se ainda, em consequência, o cancelamento de quaisquer registos feitos com base na aludida escritura, e, por fim, condenando-se ainda os autores como litigantes de má fé.

3. No seu articulado de resposta, os autores reafirmaram o alegado na pi e contraditaram a matéria consubstanciadora da reconvenção, pugnando, assim, pela procedência da primeira e pela improcedência da última.

4. Depois de se ter admitido a reconvenção, e alterado (em consequência) a forma do processo), no despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após ao que se procedeu à elaboração da selecção da matéria de facto.

5. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação da audiência.

6. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final, julgou a acção e a reconvenção improcedentes, absolvendo-se a ré e os autores dos respectivos pedidos, condenando ainda os últimos, como litigantes de má fé, na multa de € 500.

7. Não se conformando com tal sentença, os autores dela interpuseram recurso, o qual foi recebido como apelação.

8. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentaram, os autores concluíram as mesmas no seguintes termos:
“1. A cedência/autorização, a título gratuito, para habitação, de um imóvel, que é objecto da presente causa, é um comodato.
2. São elementos essenciais do comodato, para além do mais, a temporariedade e a obrigação de restituir “a coisa”.
3. A temporariedade do comodato impõe que o mesmo seja por tempo determinado ou, pelo menos, determinável, designadamente a posteriori pelo comodante .
4. Face à obrigação de restituição que impende sobre o comodatário, torna-se evidente o caracter temporário do contrato, que há-de ter sido celebrado para terminar, forçosamente e em principio, antes da morte dele ( a menos que caduque em consequência do óbito do comodatário nos termos do artº. 1141 do Código Civil).
5. A fórmula “em vida desta” (comodatária), porque impede a determinação no tempo do comodato e por impedir desde o inicio do contrato a concretização da obrigação de restituição por parte da comodatária, equivale à não convenção de prazo para a restituição.
6. Não havendo convenção de prazo para a restituição do imóvel, a ré comodatária ora recorrida é obrigada a restitui-lo logo que lhe seja exigido, o que já aconteceu em 12/3/2002 (Notificação Judicial Avulsa) e acontece nos presentes autos.
7. Deve a ré comodatária ora recorrida ser condenada na procedência da acção a restituir integralmente o imóvel aos seus legítimos e exclusivos proprietários, os réus ora recorrentes.
8. O “facto” de os autores ora recorrentes, que eram emigrantes em França, terem procedido a obras de ampliação e restauro no imóvel e terem regressado a Portugal para residirem na sai casa, que pretendem habitar e usufruir de forma exclusiva, particularmente sem a companhia da ré constitui justa causa para a resolução legal do comodato.
9. Deve, por isso e em alternativa às conclusões anteriores, ser decretada a resolução do comodato com base nos “factos” invocados que integram justa causa para o efeito.
10. A condenação dos autores ora recorrentes como litigantes de má fé porque desajustada e injusta, assente em “factos” insuficientes para tal e não usando o mesmo critério com “factos” mais graves da parte contrária, deve ser revogada.
11. Decidindo como decidiu a douta sentença recorrida VIOLOU por manifesto erro de interpretação e integração a matéria de facto constante dos autos e os disposto nos artigos 1129, 1130 e segs., 1137, 1140 e 1141 todos do Cód. Civil e artº. 457 do C.P.C. pelo que deve ser REVOGADA e SUSBTITUIDA por outra que julgando procedente por provada a acção com todas as consequências legais(...)”

9. A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da acção e pela manutenção do julgado.

10. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
A) De facto
Dado que não houve impugnação da decisão da matéria de facto fixada pela 1ª instância e nem se vislumbram razões para a alterar (à luz do disposto no artº 712 do CPC), devem ter-se como assentes, por provados, os seguintes factos:

1. Existe um prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar, anexos e logradouro, sito no lugar e freguesia de Ventosa do Bairro, a confrontar do Norte com estrada, do Sul com serventia, do Nascente com Manuel Piedade Almeida e do Poente com Manuel Lucas Baptista e outros, o qual está inscrito na matriz predial respectiva sob o nº. 199 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Mealhada na ficha nº. 00761 da dita freguesia.

2. O direito de propriedade deste prédio encontra-se inscrito a favor dos autores.

3. O autor, como comprador, e a ré como vendedor, outorgaram, em 3/9/97, escritura pública de compra e venda, tendo como objecto o prédio referido em 1), pelo qual a ré declarava vender ao autor tal prédio pelo preço de 3.000.000$ [“que dele já receberam (sic)”], e este declarava aceitar a venda.

4. Dessa escritura consta também, sob a epígrafe ‘Arquivo’: “c) uma declaração bancária que prova a qualidade de emigrante da compradora (sic) e que a mesma é titular de uma ‘conta emigrante’, e da qual retirou 1.500.000$, que vai aplicar na referida aquisição”. E, antes das assinaturas: “Esta escritura foi lida aos outorgantes e feita a sua explicação em voz alta, na presença simultânea de ambos”. O autor, por sua vez, é dado como casado no regime de comunhão de adquiridos com a autora.

5. Os autores, emigrantes em França, mandaram proceder a obras de ampliação e restauro do prédio referido em 1).

6. Os autores promoveram a notificação judicial avulsa da ré, para abandonar o imóvel, tendo esta sido notificada em 12/3/2002.

7. Os autores permitiram que a ré residisse no imóvel de forma gratuita.

8. Os autores estão a residir no imóvel.

9. Os autores têm insistido com a ré para que esta abandone o imóvel.

10. Mas esta recusa-se a fazê-lo.

11. A ré não sabe ler nem escrever.

12. Os autores emitiram, em 4/9/97, uma declaração escrita pela qual autorizavam a ré a ocupar enquanto esta fosse viva a casa para sua habitação [: “declaram que cedem e autorizam a título gratuito que em vida desta sua sogra e mãe para sua habitação, o prédio urbano dos declarantes {que é casa referida em 1)}].

13. Os autores assinaram esta declaração.

14. A irmã da autora assinou a declaração de fls. 59 [em papel azul de 25 linhas], na qual está escrito: “declaro eu [...] que dou o meu consentimento a minha mãe C... a fazer escritura de uma casa de habitação [que é a casa referida em a) mas com a diferença de a Poente constar que confronta com José Filipe de Almeida Jorge] ao meu cunhado e minha irmã [os autores]. E por ser verdade e me ser pedido o vou assinar”. Assinatura que existe, com uma linha de intervalo.


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B. De direito.

1. Delimitação do objecto de recurso.
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se fixa e delimita o objecto recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC).
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora, calcorreando as conclusões do recurso, verifica-se que são as seguintes as grandes questões que aqui importa apreciar:
a) Se a ré têm ou não a obrigação de restituir o imóvel em causa aos autores, abandonando-o de pessoas e bens, ou seja, e por outras palavras, se os autores têm ou não o direito de obter da ré a imediata restituição do dito imóvel?
b) Se se justifica ou não a condenação dos autores como litigantes de má fé, e, em caso afirmativo, no montante de multa em que o foram?

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2. Quanto à 1ª questão
O autores instauraram a presente acção contra a ré (sua sogra e mãe) pedindo que esta abandonasse o prédio urbano id. no artº 1 da pi, e lho restituísse, alegando, no fundo, serem os donos e proprietários do mesmo e que a ré não tinha qualquer título que legitimasse a ocupação que dele vem fazendo, já que apenas permitiram que ela nele residisse a título provisório e por mero favor.
Na sentença final muito embora se tenha reconhecido aos autores o direito de propriedade sobre o referido imóvel (solução que não foi colocada em crise por qualquer das partes, e que por isso não abordaremos), todavia, não se condenou a ré a restituir-lhes o mesmo por se ter ali concluído pela existência, a favor da última, de um contrato de comodato que se mantém plenamente válido e em vigor e que legítima tal ocupação por parte da ré.
Muito embora os apelantes no início das alegações tenham começado por questionar a existência do referido contrato, todavia, e como se pode observar das suas conclusões de recurso (cfr., desde logo, cláusula 1ª e bem assim as seguintes) acabou por aceitar a sua existência, sendo com base nele que desenvolveram todo o seu posterior raciocínio e extraíram as suas subsequentes conclusões, no sentido de defender, mesmo com tal contrato, a obrigação da ré lhes restituir o imóvel em causa.
Apreciemos então.
Tal como os autores configuraram e estruturam a presente acção (embora, a nosso ver, de forma não muito feliz, mas que aqui não temos agora de cuidar, pelas razões acima aludias), estamos claramente perante uma acção de reivindicação.
Como resulta do que atrás se deixou exarado, os autores alegando serem proprietários do referido imóvel (não importa aqui cuidar da forma da aquisição do direito de propriedade invocado) vieram pedir que a ré seja condenada a restituir-lho.
Já vimos que esse direito de propriedade sobre o imóvel foi reconhecido ao autores pela sentença ora impugnada.
São dois os pedidos que integram e caracterizam a acção de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro.
Como se sabe - entre outras formas que não interessa ora considerar - o demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa (cfr. Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 116”).
Princípios esses que estão, de uma forma geral, consagrados no artº 1311 do CC.
E a existência de um contrato de comodato constitui precisamente um dos meios, previstos no nosso ordenamento jurídico, que obsta à entrega da coisa pelo se detentor ao seu proprietário.
O comodato, como contrato típico e nominado que é, encontra a sua previsão e disciplina nos artºs 1129 a 1141 do Código Civil (diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).
Figura essa (o comodato) que naquele primeiro normativo se encontra definida como sendo um contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega a outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela com a obrigação de a restituir.
Contrato esse que é prevalecentemente caracterizado como sendo:
Um contrato de natureza pessoal (constituído intuitu personae), já que é celebrado apenas no interesse ou benefício do comodatário.
Um contrato de natureza real (quod constitutionem), já que só se considera constituído e perfeito com a entrega da coisa (móvel ou imóvel), não bastante para tal o simples acordo de vontades.
Um contrato gratuito, dado que apesar de fazer surgir obrigações também para o comodatário (cfr. artº 1135), todavia, nenhuma delas se apresenta como contrapartida pela utilização da coisa. Ou seja, não há a cargo do comodatário prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante. Significa, pois, isso que o comodante não tem direito a qualquer retribuição pelo uso que o comodatário faça da coisa.
Um contrato não sinalagmático, precisamente porque muito embora fazendo surgir obrigações para ambas as partes, todavia, não existe qualquer nexo de correspectividade ou relação de interdependência entre elas, e daí dizer-se também que é um contrato bilateral imperfeito.
Um contrato de execução continuada ou periódica, por prolongar a utilização da coisa pelo comodatário até que seja obrigado a restitui-la.
Um contrato não formal ou consensual, já que a sua validade não está dependente da observância de qualquer forma (artº 219).
Um contrato que, por fim, que se aplicam as regras gerais consagradas nos artºs 217 e ss.
Contrato esse que, fundamentalmente, se funda em razões de cortesia, de favor ou gentileza do comodante a favor do comodatário. Vidé, a propósito desta figura, e para maior desenvolvimento, o prof. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, 3ª ed. Almedina, págs. 369/384”; Marques de Matos, in “O Contrato de Comodato, Almedina, 2005, págs. 7 e ss”; os Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Ob. cit., Vol. II, págs. 380 e ss”; Rodrigues Bastos, in “Dos Contratos em Especial, 1974, págs. 220/236” e o prof. A. Varela, in “RLJ 119 – 185”.
Ora, por todo o atrás exposto, ou seja, subsumindo as considerações de cariz téorico-técnico à conjugação de toda a matéria factual dada como assente (e especialmente a descrita nos nºs 7 e 12) somos levados a concluir (tal como o fez o srº juiz a quo) que estamos na presença de um contrato de comodato celebrado entre os autores e a ré, sendo que enquanto a declaração dos autores se encontra expressamente exarada no documento junto aos autos e referido naquele nº 12, já a da ré se deve, à luz do disposto no artº 217, considerar que foi emitida tacitamente, tal como se infere do somatório e do contexto de tais factos.
Caracterizada a relação contratual que foi estabelecida entre os autores e a ré, tendo por objecto o sobredito prédio urbano, avancemos, reportando-nos sempre àqueles aspectos que possam ter mais relevância para a decisão do caso em apreço,
De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo, se tal acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do artº 1276 e ss (artº 1133, nºs 1 e 2).
Por seu lado, de entre as obrigações do comodatário ressalta aquela de restituir a coisa ao comodante logo que findo o contrato (artº 1135, al. h)).
Sendo um contrato que, por natureza, é temporário, todavia, o nosso ordenamento jurídico não seguiu o caminho adoptado por outros (tais como o Italiano) de estabelecer prazos duração máxima do contrato. Abordando tal questão, os mestres profs. Pires de Lima e A. Varela (in “ob. cit. pág. 595”) concluíram mesmo que “é difícil, entre nós, justificar qualquer limite legal de duração do contrato”. (sublinhado nosso)
Contrato esse que, nos termos gerais, se pode extinguir por caducidade, por denúncia ou resolução (cfr. o prof. Menezes Leitão, in “ob. cit., pág. 383”).
Perfunctoriamente, diremos que a extinção do contrato por caducidade ocorre por morte do comodatário, nos termos do 1141. Solução essa que se justifica pelo carácter pessoal do uso concedido pelo contrato, muito embora autores haja (vidé o profs. Pires de Lima e A. Varela , in “ob. cit. pág. 600”) que, contra a corrente dominante, defendem que estando nós perante meras presunções de vontade, e não perante disposição imposta por razões de ordem pública, possa ser de admissível que os contraentes possam convencionar a continuação do contrato, por morte do comodatário, a favor dos herdeiros deste.
Causa de extinção que, como decorre do acima exarado, não ocorre no caso sub-júdice (e nem tal foi invocada), já que a ré-comodatária se mantém viva.
Vejamos, agora, aquela segunda causa de extinção do contrato (por denúncia.)
Estipula o artº 1137 que “se os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação” (nº 1) e que “se não for convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida” (nº 2).
Resulta, assim, do estipulado em tal normativo que o contrato de comodato cessa ou termina necessariamente:
a) Ou quando finde o prazo certo porque foi convencionado;
b) Ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido;
c) Ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.
No caso em apreço, não se pode dizer que as partes tenham convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do prédio urbano).
E será que determinaram o uso da coisa? E, em caso afirmativo, esse uso já findou?
Vejamos.
Dada a natureza do contrato, vem constituindo entendimento dominante que o uso só é determinado se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso.
Por outro lado, deve ainda dizer-se que o uso determinado da coisa “emprestada” deve estar expresso de modo claro, por forma a não ser confundível com outro tipo de realidades jurídicas que giram à sua volta, e nomeadamente com a doação.
No caso em apreço os autores-comodantes entregaram, de forma gratuita, o prédio urbano de que são donos à ré (comodatária) para ela nele habitar enquanto fosse viva, ou seja, permitindo que a mesma nele habitasse enquanto fosse viva (cfr. nºs 9 e 12).
Considerando que as partes podem, nos termos do disposto no artº 278, convencionar que os efeitos do negócio jurídico comecem ou cessem a partir de certo momento, vem igualmente constituindo entendimento prevalecente que o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário - ou seja, em que o comodante atribua (como aconteceu no caso em análise) o uso da coisa por toda a vida do comodatário - é válido,porque o seu termo, embora incerto, é determinável. A Morte é certa, o dia da sua ocorrência é que é incerto Vidé, neste sentido, e a propósito, Marques de Matos, inOb. cit. págs. 51/52”, o prof. Menezes Leitão, in “Ob. cit. pág. 384. nota 717”; os Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Ob. cit. pág. 596, nota 4”; Ac. da RLx de 25/5/2000, in “CJ, Ano XXV, T3, pág. 101”e Ac. RP de 26/1/84, in “CJ, Ano IX, T1, págs., 232/233”).
Logo, não tendo, no caso sub-júdice, ainda findado ou terminado uso (determinado) - o qual, em princípio, só ocorre com a morte da ré, se lá continuar a viver) - para que o dito prédio foi concedido à mesma (para sua habitação e ali continuando actualmente ainda a viver), não se verifica o pressuposto legal para que os autores (comodantes) possam exigir à ré a restituição do dito imóvel por cessação do contrato (à luz do artº 1137), já que não estamos na presença da conhecida figura do comodato precário.
Como acima se viu, o comodato pode ainda (mesmo no caso de estar sujeito a prazo convencionado) cessar ou extinguir-se por resolução do contrato por parte do comodante, caso ocorra justa causa.
Na verdade, estipula o artº 1140 que “não obstante a existência de prazo, o comodante pode resolver o contrato, se para isso tiver justa causa” (sublinhado nosso).
O legislador, porém, não definiu o conceito de justa causa, deixando, propositadamente, para o julgador a concretização desse conceito, numa visão ou perspectiva casuística, ou seja, numa aferição de perante cada caso concreto. Vidé, para maior desenvolvimento, Marques de Matos, inOb. cit. págs. 69/70, o prof. Menezes Leitão, in “Ob. cit. pág. 384” e os Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Ob. cit. pág. 598, nota 2”.
A tal figura extintiva do contrato de comodato, são também aplicáveis as disposições dos artºs 432 e ss.
Ora, muito embora os autores tenham invocado tal (novo) fundamento de justa causa no seu articulado de resposta (na sequência do documento nº 2 junto com a contestação da ré - cfr. artºs 25 a 27) para continuar a pedir a restituição do imóvel, e tal fundamento tenha sido apreciado e julgado improcedente na sentença recorrida, todavia, compulsando os articulados subscritos pelos autores (quer da pi, quer daquela sua resposta) não se vislumbra que os mesmos tenham consubstanciado tal fundamento no correspondente pedido de resolução do sobredito contrato de comodato, e nem sequer alegaram que tenham comunicado à ré tal resolução (cfr. artº 436), podendo, embora, ter aproveitado aquele segundo articulado para o ter feito, já que estavam então reunidas as condições para o efeito (cfr. artºs 273, nºs 1 e 2, e 469 do CPC).
Pedido esse que, só agora, os autores formulam, em alternativa, nas suas conclusões de recurso (cfr. conclusão nº 9), o que, convenhamos, é manifestamente intempestivo e inoportuno.
E daí que nem sequer entremos na apreciação do aludido fundamento.
Pelo que, por tudo o exposto, temos de concluir que a ré pode, por força do sobredito comodato, recusar-se a abandonar o imóvel em causa.

3. Quanto à 2ª questão
Da litigância de má fé.
Insurgem-se igualmente os autores não só contra a parte da sentença que os condenou como litigantes de má fé, como ainda contra o montante (€ 500) da multa em que redondou tal condenação.
Preceitua o artº 456 do CPC que:
1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 . (...)
Resulta assim, desde logo, de tal normativo legal, que a litigância de má fé pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objectivamente, na ocorrência de alguma das situações, atrás transcritas, previstas nas diversas alíneas do seu nº 2.
No fundo, pode dizer-se que a má fé traduz-se na violação do dever de proibidade que o artº 264 do CPC impõe às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias (cfr., entre outros, Ac. STJ de 3/9/2004 (in “www.dgsi.pt/jstj”).
Ora, debruçando-se sobre aquilo que concretamente esteve na origem de tal condenação, verificamos o seguinte:
A ré, no seu articulado da contestação, juntou aos autos, como documento nº 2, uma declaração, com a data de emissão de 4/9/97, e na qual, em síntese, os autores declaravam que cediam à ré (sua sogra e mãe), a titulo gratuito, o seu prédio, ali identificado (e a que se reportam os presentes autos), para a sua habitação e enquanto a mesma fosse viva.
Documento esse que no final se encontrava assinado com o nome completo de ambos os autores.
No seu articulado de resposta, e a propósito da junção de tal documento, os autores afirmaram o seguinte:
“Igualmente se impugna o documento arrolado como doc. 2, desconhecendo os AA o seu conteúdo” (artº 19º).
Não sabendo como este aparece nem como por que artes mágicas nele aparecem as suas assinaturas, reafirmando-se o vertido na pi (artº 20º).
Mas, se se considerar tal doc 2 – o que não se admite por absurdo - (....)”. sublinhado nosso.
Documento esse que corresponde àquele que, descrito sob o nº 12, consta dos factos assentes, e de onde resulta que foram não só os autores que emitiram a declaração nele inserta como, inclusivé, foram eles que o assinaram.
Ora, perante a pessoalidade de tais factos, teremos de considerar, até face aos termos utilizados para o efeito, que os autores ao alegarem o total desconhecimento do seu conteúdo e bem assim ao negarem a sua autoria das assinaturas nele apostas, quando se provou que foram precisamente eles que o fabricaram, emitindo a declaração nele inserta e assinando-o ainda no final, temos de considerar que os autores se não actuaram dolosamente (como tudo indicia), pelo menos fizeram-no com negligência grave, sendo certo que o documento em causa e os factos nele insertos se revelavam, como se veio acima a concluir, deveras importantes para a boa decisão da causa.
Com tal comportamento, deveras censurável, os autores violaram, de forma intensa, o dever de proibidade de que acima falámos.
E sendo assim, é para nós claro que se justifica não só a condenação dos mesmos como litigantes de má fé, como também o montante de multa que, por esses facto, lhes foi aplicado (e tendo ainda em conta o parâmetro da sanção, de 2 UC a 100 UC, estipulado para o efeito).
Pelo que também nessa parte se nos afigura não ser de censurar a decisão recorrida.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pelos apelantes.

Coimbra, 2006/06/27