Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/03.2TAMIR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA TRIBUNAL SINGULAR
PROVA PERICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 16º, 3 ,4,127º,163º E 379º, Nº 1 C) CPP
Sumário: 1. O Mº Pº pode na audiência de julgamento, antes da produção da prova, requerer que, nos termos do art.º 16º, nº 3 do CPP,o julgamento seja feito com a intervenção do Tribunal Singular.
2. Caso se entenda que o requerimento (superveniente) do Ministério Publico tenha de ser deduzido anteriormente, a sua dedução posterior configura irregularidade processual.
3. A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
4. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º91/03.2TAMIR, a correr termos no Tribunal Judicial de Vagos, o arguido M..., melhor identificado nos autos, na decorrência de Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi pronunciado pela prática de factos que se considerou integrarem a autoria, em concurso real, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº1 do Código Penal e de um crime de ofensas à integridade física graves, p. e p. pelo artigo 144º, alínea d) do Código Penal.
O assistente C... deduziu pedido de indemnização civil contra a demandada O... – Companhia de Seguros Portuguesa, SA, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia 210.000€, discriminados da seguinte forma: 75.000€ a título de danos não patrimoniais; 120.000€ a título de danos patrimoniais futuros; 15.000€ a título de danos patrimoniais.
Os demandantes C..., A..., F... e E..., na qualidade de viúvo e filhos de N..., deduziram pedido de indemnização contra a O... – Companhia de Seguros Portuguesa, SA, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de 240.000 discriminada da seguinte forma: 80.000€ pela perda do direito à vida; 50.000€ pelos danos não patrimoniais sofridos pela mesma, nos momentos que antecederam a sua morte; 50.000€ a título de dano moral sofrido pelo viúvo; 20.000€ a título de dano moral sofrido por cada filho da malograda N....
O assistente B... e a demandante A..., na qualidade de pais do falecido T... deduziram pedido de indemnização civil contra a O... – Companhia de Seguros Portuguesa, SA peticionando a condenação desta no pagamento da quantia 270.000€, discriminada da seguinte forma: 80.000€ pela perda do direito à vida; 50.000€ pelos danos não patrimoniais sofridos pelo sinistrado nos momentos que antecederam a sua morte; 60.000€ pelos danos patrimoniais futuros; 80.000€ pelos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente e pela demandante pela morte do seu filho.

2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
a) Absolver o arguido M... da prática, em concurso real, de três crimes de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº1 do Código Penal e de um crime de ofensas à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 147º, nº 1 do Código Penal;
b) Absolver a demandada O... Companhia de Seguros Portuguesa SA dos pedidos de indemnização conta si formulado pelos demandantes.

3. Inconformado, o assistente C... interpôs recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1- Por Acórdão desse Tribunal a fls .... foi ordenado ao Tribunal a quo que o Arguido fosse pronunciado por três crimes de homicídio negligente e um de ofensa à integridade física grave.
2- A moldura penal dos crimes pelos quais essa Relação ordenou fosse o arguido pronunciado cifra-se numa pena de prisão que poderia atingir os 19 anos, seja,
3- Dez anos relativos à ofensa à integridade física grave - Art. 144.° C.P., e três anos por cada um dos crimes de homicídio, num total de 9, ex vi Art. 137.° n.º 1 do C.P.
4- Ainda que se entendesse estarmos perante um crime de ofensa à integridade física por negligência e três de homicídio negligente, sempre a pena abstractamente aplicável se cifraria nos 11 anos de pena máxima, ex vi Art. 148.° n.º 3 e 137.° n.º 1, respectivamente, ambos do C.P.
5- Perante tal moldura penal e por força do disposto no n. ° 2 do Art. ° 14.° do C.P.P. é competente para julgar os presentes autos o Tribunal Colectivo.
6- A Pronúncia deduzida a fls. 505 e ss, além de pecar por defeito nos crimes imputados ao arguido - acusa apenas por um homicídio negligente - mas, acusando o arguido pela pratica de um crime de ofensa à integridade física grave (punido com pena de prisão até 10 anos) impunha a realização do julgamento perante Tribunal Colectivo, a não ser que,
7- O M.P. requeresse nos termos do n.º 3 do Art. 16.° do C.P.P. a realização do julgamento perante Tribunal Singular, o que não aconteceu.
8- Tal omissão inquina irremediavelmente, de nulidade insanável, todo o processado subsequente àquele despacho, ex vi Art. 119.° e) e 122.°, ambos do C.P.P.;
9- A fls. 663 foi "corroborada" tal nulidade quando é ordenada a autuação do processo como a ... processo comum com intervenção do Tribunal Singular. ".
10-Em pleno julgamento, de forma completamente extemporânea o M.P. requer, ao abrigo do Art. 16.° n.º 3 do C .. P.P. o julgamento do arguido perante Tribunal Singular.
11-Face àquele requerimento o Tribunal a quo ao invés de conhecer da nulidade em causa, que até é de conhecimento oficioso, como lhe impõe o Art. 122.º C.P.P., decide em causa própria, isto é, declara-se competente, violando assim o Principio do Juiz Natural, cometendo assim, mais uma nulidade insanável, desta feita prevista na alínea a) do Art. 119.º do C.P.P.
12-As nulidades invocadas, porque de insanáveis se tratam, inquinam de nulidade todo o processo subsequente à pronúncia, impondo-se pois, a anulação do processado, incluindo a Audiência de Discussão e Julgamento e a Sentença ora em crise, o que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
SEM CONCEDER,
13-O M.P. ao abrigo do Art. 340.º do C.P.P. requereu a realização de uma perícia técnica com vista a esclarecer a dinâmica do sinistro, o que foi deferido pela Tribunal a quo.
14-Constava do referido que a períca seria levada a efeito por entidade independente, com conhecimentos técnicos adequados, tendo o Tribunal a quo por uma empresa que era do seu conhecimento funcional - DEKRA Portugal.
15-O relatório foi elaborado e encontra-se junto aos autos.
16-Constam do relatório várias simulações sendo que a mais plausível, no entendimento dos técnicos que o elaboraram, será a vertida na Simulação 2, que situa o local do embate no eixo da via;
17 -Estabelece uma velocidade de pré-impacto de 15,2 Km/h para o Ford (veiculo onde seguiam as vítimas) e 43,8 Km/h para a Toyota (veiculo conduzido pelo arguido).
18-Nesta simulação o Ford circulava na faixa da direita no sentido Vagueira ¬Costa Nova quando se apercebe que o veiculo Toyota, conduzido pelo arguido, circula na sua via e em sentido contrário, e, numa manobra de recurso guina para a esquerda, e, ao mesmo tempo, o Toyota procura retomar a sua mão guinando para a direita, dando-se o acidente no eixo da via.
19-O Tribunal a quo afasta as conclusões deste relatório pericial sem fundamentar convenientemente as razões porque o faz.
20-O Tribunal a quo viola assim o disposto no Art. 163.° do C.P.P. porquanto, o juízo técnico vertido na perícia está subtraído à livre apreciação do julgador e, só não será assim quando o julgador divirja convictamente do parecer técnico, mas, neste caso terá de fundamentar a divergência, o que não aconteceu, manifestamente, nos presentes autos.
21-Não pode afastar-se a " ... simulação elaborada em computador ... ", porquanto, a mesma não é o passatempo de um curioso, antes, é uma perícia técnico-científica, com recurso a um programa cientifico - programa PC-Crash - que não foi posto em causa por qualquer sujeito processual, com recurso a elementos objectivos de que se dispunha e que foram integralmente respeitados,
22-Já o mesmo não tendo acontecido no relatório "encomendado" pela demandada civil.
23-Deste modo, a sentença ora em crise é nula nos termos do disposto no Art. 379.° n.º 1 c) do C.P.P., porquanto, o Tribunal a quo não pode afastar um meio de Prova cujo conhecimento se encontra subtraído à livre apreciação.
24-O Tribunal a quo adere cegamente ao relatório da GEP (estudo elaborado a pedido demandada O... e por esta pago), que, em devido tempo foi impugnado pelo aqui recorrente, por requerimento a fls .....
25-O Tribunal a quo não se pronunciou sobre esse mesmo requerimento o que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do Art.º 379.° do C.P.P. consubstancia uma nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.
26-A Sentença ora em crise se não pronuncia sobre factos que poderiam consubstanciar uma relação de comissão, e assim sendo, fazer presumir, do ponto de vista cível, a culpa do condutor da Toyota na eclosão do sinistro, sendo que tal omissão de pronúncia conduz à nulidade da sentença, ex vi Art. 379.° n.º 1 c) do C.P.P.
27-Foram incorrectamente dados como provados os factos constantes dos itens 9 a 12, 18 a 20.
28-As declarações do arguido estão em intrínseca contradição, porquanto começa por afirmar que viu o Ford aos "esses" mas, na sequência do seu depoimento vem dizer que se visse o Ford aos "esses" tinha travado, depoimento gravado na sessão de 2008-07-09.
29-O aqui recorrente, bem como, a testemunha P..., referem que o Ford circulava na sua mão de trânsito e que o acidente terá ocorrido na faixa da direita, depoimentos gravados na sessão do dia 2008-07-09.
30-A testemunha U... é peremptório a afirmar que os pneus do Ford conduzido pela vitima se encontravam a "meio uso" nunca tendo dito que estavam carecas, depoimento gravado na sessão de 2008-07-14.
31-Esta testemunha que guardou os veículos não tem ideia de ter visto os elementos da G.N.R. no seu armazém, muito menos a verificar o rasto dos pneus.
32-A testemunha U... afirma ainda que a direcção, transmissão e manga de eixo do lado direito do Ford estava totalmente destruída porquanto, no seu entendimento a Toyota bateu no pneu da frente direito do Ford, arrastando-a.
33-A testemunha G... (Depoimento gravado a 2008-07-09) afirma que foi a primeira pessoa a chegar ao local, cerca das 16h30m, que não estava a chover, que não havia areia no asfalto, que os veículos estavam imobilizados ainda longe da rede do lado direito atento o sentido Costa Nova - Vagueira precisando que parte dos mesmos ainda estavam no asfalto.
34-Atenta a violência do embate por si percepcionada nos danos existente nos veículos, esta testemunha afirma que o embate teria que ter ocorrido na faixa da esquerda atento o sentido Costa Nova - Vagueira, porquanto, a ter-se dado na faixa direita atento o sentido Costa Nova - Vagueira, os veículos teriam transposto a berma, e até a própria rede.
35-Foram incorrectamente dados como não provados os factos constantes dos parágrafos 1 a 7, sendo que, o que atrás ficou dito acerca dos factos provados nos itens 9 a 12 se aplica aqui ipsi verbis, e por economia de meios para eles se remete.
36-A testemunha E... que o aqui recorrente alem de trabalho para o pai, fazia várias horas para outras pessoas, carregava camiões, fazia terraplanagens, era manobrador de máquinas, Depoimento gravado na sessão de 2008-07-10.
37 -Afirmou ainda que, uma máquina do tipo das que o aqui recorrente manobrava tem um custo de utilização de € 70,00 hora, podendo ultrapassar este valor, não sabendo precisar quanto auferia o recorrente.
38-A testemunha F..., que trabalhava à data dos factos com o aqui recorrente, afirma que faziam horas que eram pagas alem do salário, tendo atribuído um valor hora dos serviços prestados pelo aqui recorrente de cerca de € 10,00, Depoimento gravado na sessão de 2008-07-10.
39-Esta testemunha tem pleno conhecimento quer do trabalho efectuado pelo recorrente, quer do seu custo hora, pelo que, deveria ter sido, o seu depoimento, considerado.
40-Esta testemunha afirma ainda que terá sido o recorrente a adquirir e a pagar os equipamentos de fisioterapia e ginástica, bem como as intervenções que sofreu.
41-0 Tribunal a quo violou as alíneas a) e b) do n.O 2 do Art.o 410.° do C.P.P., impondo-se a revogação da Sentença ora em crise.
42-Nos termos alegados, e atento os normativos invocados, julgando V.as Ex.as procedente o presente recurso, repondo assim a legalidade, dando cabal cumprimento às normas violadas, fazendo assim a tão costumada JUSTIÇA.

3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, suscitando, como questão prévia, a questão «da inexistência jurídica ou da nulidade insanável do despacho de pronúncia na parte em que pronuncia o arguido por factos e por crime relativo a ofendido que não requereu a sua constituição como assistente nem requereu a abertura da instrução». Quanto ao recurso propriamente dito, pronunciou-se o Ministério Público no sentido da sua improcedência.

4. A demandada O... – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que não se verifica a questão prévia suscitada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância e, quanto ao recurso, que o mesmo deverá improceder.

6. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.


Cumpre agora apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões que o recorrente pretende sejam apreciadas: da nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea e), do C.P. Penal; da violação do disposto no artigo 163.º do C.P.P., relativo ao valor da prova pericial; da nulidade da sentença por omissão de pronúncia; da impugnação da matéria de facto e dos vícios do artigo 410.º, n.º2, a) e b).

2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 21.11.2003, entre as 16h30 m e as 17h00, N... conduzia o veículo ligeiro de passageiros Ford Orion, matrícula JL-00-00 na sua faixa de rodagem e a velocidade reduzida, no sentido Praia da Vagueira – Costa Nova, na EM 592, Praia da Vagueira, área desta Comarca, transportando T..., R... e C....
2. O veículo JL pertencia a B....
3. No mesmo local, e em sentido inverso, o arguido conduzia o veículo ligeiro 0-00-EQ.
4. A Estrada Municipal n°592, no local do acidente, configura uma recta com boa visibilidade, superior a 50 metros, à data do acidente com piso em asfalto polido, já com alguns anos de utilização.
5. Com a largura de 6,30 metros e uma berma do lado direito com 2,30 metros, atento o sentido de marcha Costa Nova/Praia da Vagueira.
6. A referida Estrada Municipal tem duas vias de trânsito, uma para cada sentido de trânsito, separadas por uma linha longitudinal contínua – marca longitudinal M1 (linha contínua).
7. Atento o sentido de marcha Praia da Vagueira/Costa Nova existe uma curva 220 metros antes do local onde os veículos sinistrados ficaram imobilizados.
8. Atento o sentido de marcha Costa Nova /Praia da Vagueira existe uma curva 70 metros antes do local onde os veículos sinistrados ficaram imobilizados.
9. A condutora do Ford perdeu o controlo do veículo por si conduzido, entrou em despiste aos “esses”, pisou/transpôs a linha longitudinal contínua e foi invadir a faixa de rodagem da esquerda, por onde circulava o Toyota.
10. O arguido não conseguiu travar de modo a evitar a colisão entre os dois veículos, dada a proximidade a que se encontrava o Ford, quando invadiu a sua hemi-faixa de rodagem.
11. A colisão entre o Ford e o Toyota ocorreu na faixa de rodagem da direita, atento o sentido de marcha Costa Nova/Praia da Vagueira.
12. O embate deu-se entre a frente do Toyota e a lateral direita do Ford.
13. E registou-se com maior incidência entre a frente direita do Toyota, tendo provocado que o Toyota rodasse sob a sua esquerda, sobre a zona do habitáculo da lateral do Ford, e a frente lateral do Ford, na zona da suspensão frontal do lado direito do Ford e provocando o arrastamento deste veículo numa distância não concretamente apurada.
14. Os veículos imobilizaram-se lado a lado, hemi-faixa de rodagem da direita e na berma/valeta do lado direito, atento o sentido de marcha Costa Nova/Praia da Vagueira.
15. A traseira do Toyota ficou na berma e hemi-faixa de rodagem da direita, atento o sentido de marcha Costa Nova/Praia da Vagueira, a 0,60m da linha longitudinal contínua, que separa as duas vias de trânsito.
16. A traseira do Ford ficou na berma e na faixa de rodagem da direita, atento o sentido de marcha Costa Nova/Praia da Vagueira, a 1,20m da linha longitudinal contínua.
17. Após as operações de salvamento/resgate das vítimas do sinistro, ambos os veículos sinistrados foram retirados do local por um reboque.
18. Os pneus de trás do Ford estavam carecas.
19. O tempo estava nublado.
20. E estava de chuva.
21. Em consequência do acidente N..., T... e R... sofreram as lesões descritas no relatório de autópsia, que aqui damos por reproduzidas para os devidos efeitos legais, que foram causa directa e necessária da sua morte.
22. Em consequência do acidente, o assistente C... deu entrada no Hospital de Águeda em 24.11.2003, transferido do Hospital Infante D. Pedro, onde deu entrada em 21.11.2003.
23. Sofreu traumatismo crâneo-encefálico e fractura de ambos os fémures, sendo expoata à esquerda.
24. Foi operado a ambos os fémures no Hospital Infante D. Pedro.
25. Durante o internamento neste Hospital foi-lhe diagnosticada fractura da apófise odontoíde.
26. Em 15.11.2003 foi transferido para os HUC.
27. Em 30.12.2003, foi submetido a intervenção cirúrgica, tendo-se procedido a artrodese posterior com fios de Cerclage e enxerto ósseo autólogo (colhido a nível ilíaco) C1 C2 e imobilização do colar cervical.
28. Teve alta da enfermaria em 05.01.2004, por transferência para o Hospital de Águeda com a seguinte orientação: fazer pensos a nível da ferida operatória; retirar pontos da sutura, decorridos 15 dias; ser observado em consulta externa do serviço.
29. Teve alta hospitalar no dia 12 de Janeiro de 2004 para o domicílio, com colar cervical e marcha com apoio em andarilho e manteve seguimento em consultas de Ortopedia e de Fisioterapia, tendo iniciado programa de reabilitação diária de na Fisioterapia.
30. Foi internado na Clínica de Oiã em 13.07.2004, com diagnóstico de deslocamento do material de osteossíntese e realizou extracção da cavilha do fémur direito e recolocação de nova cavilha.
31. Teve alta para o domicílio e manteve marcha com andarilho.
32. Terá tido episódio de dores a nível da coxa esquerda e terá sido assistido de novo na Clínica de Oiã.
33. Terá mantido a marcha com apoio de canadianas, programa de reabilitação de fisioterapia e consultas de ortopedia nos HUC e na Clínica de Oiã.
34. Iniciou a marcha sem o apoio de canadianas cerca de um mês após a última cirurgia e por quadro de dores a nível do joelho esquerdo efectuou ecografia com diagnóstico de ruptura de ligamentos, tendo mantido fisioterapia e repouso no domicílio.
35. Teve alta médica das consultas em 15 de Janeiro de 2005 e iniciou a sua actividade laboral com limitações, não conseguindo permanecer em pé durante muito tempo e necessita de ajuda para realizar esforços.
36. A data da cura/consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15 de Janeiro de 2005.
37. Sofreu incapacidade temporária geral total durante 254 dias.
38. Sofreu incapacidade geral parcial durante 137 dias.
39. Sofreu incapacidade temporária profissional total desde 21.11.2003 até 15.01.2005.
40. Durante o período de incapacidade temporária sofreu quantum doloris fixável no grau importante.
41. O dano estético é fixável no grau Considerável.
42. O assistente padece de incapacidade permanente geral parcial global de 25%.
43. As sequelas que suportam a incapacidade são compatíveis com a actividade profissional, exigindo esforço acrescido.
44. O prejuízo de afirmação pessoal é qualificável de médio.
45. O arguido não tem antecedentes criminais.
46. É industrial e aufere cerca de 400€ mensais.
47. A mulher trabalha na mesma firma, que é familiar, auferindo a mesma quantia.
48. Tem dois filhos, que vivem a expensas próprias.
49. Vive em casa própria.
50. Encontra-se a pagar uma carrinha, cuja prestação mensal ascende a 300€, terminando o pagamento dentro de dois meses.
51. O assistente C... temeu pela sua própria vida.
52. Assistiu à agonia e posterior falecimento do seu irmão.
53. Temeu pela sua própria vida.
54. O assistente C... perdeu o gosto em jogar futebol e ir à praia.
55. À data do acidente tinha 17 anos.
56. Era alegre, extrovertido.
57. Á data do sinistro, exercia as funções de operador de máquinas, nas quais auferia um salário de 464,80€ mensais.
58. A falecida N… contava 54 anos à data da morte.
59. Era alegre e dinâmica.
60. Na altura era doméstica.
61. Era estimada pela família e amigos.
62. Era muito amiga e dava-se bem com o marido e os filhos.
63. O demandante C... ficou revoltado.
64. Perdeu o interesse por passear.
65. O sinistrado T... contava 10 anos à data da morte.
66. Era uma criança alegre, saudável, dinâmica e amiga dos seus pais e do irmão.
67. Era bom aluno.
68. A Demandante A... perdeu interesse e alegria nas actividades que lhe davam prazer.
69. O Assistente B... brincava com o T…, jogava com ele à bola, ia à praia.

2.2. Quanto a factos não provados consignou-se como não demonstrado (transcrição):
• O arguido seguia a velocidade não inferior a 100 km/h.
• A determinada altura, o arguido, por razões não concretamente apuradas, invadiu a hemi-faixa de rodagem de circulação contrária ao seu sentido de marcha, delimitada por um alinha longitudinal contínua, provocando que a condutora do JL-00-00, se tentasse desviar, mudando de direcção para a faixa de rodagem contrária.
• Ao mesmo tempo, o arguido tentou reformar a sua faixa de rodagem, embatendo com a frente do seu veículo na parte lateral direita do veículo JL-00-00, arrastando o JL pela via, cerca de 20 metros, no sentido Costa Nova/Praia da Vagueira, até se imobilizarem ambos os veículos na valeta.
• Com tal conduta, provocou o arguido o falecimento de N..., de T... e de R... e lesões corporais em C....
• O arguido imprimiu à sua viatura uma velocidade desajustada à via de trânsito onde seguia e às condições climatéricas que se faziam sentir, transpondo igualmente a linha longitudinal contínua que dividia a estrada onde seguia, invadindo a faixa de trânsito de sentido contrário ao seu, originando, por sua culpa exclusiva, o embate entre os veículos e consequentes óbitos de N..., T... e de R... e lesões corporais em C....
• O arguido não actuou com o cuidado exigível que se lhe impunha, omitindo deveres de diligência e, em consequência disso, não previu, como podia e devia, a realização do crime.
• O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
• O assistente C... trabalhava aos sábados, recebendo 50€ por cada sábado de trabalho.
• O assistente pagou as taxas moderadoras, os exames radiológicos nos diversos hospitais por onde passou.
• Pagou os medicamentos que se viu forçado a tomar.
• Pagou a intervenção cirúrgica a que foi submetido na Clínica Central de Oiã.
• Pagou e continua a pagar as consultas de psicologia.
• Suporta todas as despesas medicamentosas que ainda hoje despende.
• O assistente adquiriu uma passadeira de ginástica, uma bicicleta de ginástica e pesos.
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
Factos provados:
Factos 1 a 8 e 14 a 16: O Tribunal considerou o auto de participação de acidente da GNR, com o croquis do local do acidente e a posição das viaturas, constante de fls. 30 e 31, com o aditamento de fls. 35 a 42, referente à reportagem fotográfica do local do acidente efectuada pela GNR, aliados às declarações do arguido e do assistente C..., quanto ao sentido de marcha de cada uma das viaturas envolvidas no acidente e aos depoimentos do Soldado Q... e do Cabo Y... quanto à forma como procederam à recolha dos elementos no local para procederem à elaboração da participação do acidente.
Factos 9 a 13: Quanto à dinâmica do acidente, o Tribunal considerou as declarações do arguido, que mereceram a credibilidade do Tribunal, atenta a sua postura colaborante, serena e coerente que assumiu durante todo o julgamento, que descreveu a forma como se deu acidente, aliadas à perícia solicitada pela demandada seguradora à GEP, cujo relatório se encontra junto a fls. 808 e ss dos autos, aos esclarecimentos que o perito MT... da GEP prestou em sede de julgamento e ainda ao relatório pericial da Dekra, constante de fls. 954 dos autos, referente à simulação 1 por si efectuada.
Com efeito, não temos quaisquer testemunhas presenciais do acidente a não ser as pessoas que nele foram interveniente, ou seja, o arguido e o assistente C....
As declarações do assistente C... mostraram-se vagas, pouco concretas, referindo que se circulavam de vagar e que nunca saíram da sua mão de trânsito, mais referindo, no entanto, que ia a olhar para a ria quando o acidente ocorreu, tendo visto apenas um vulto escuro à frente da sua viatura.
Perguntado como teria surgido esse vulto, não foi capaz de explicar, acentuando no entanto uma preocupação, que o tribunal considerou como exagerada, em dizer que não saíram da sua faixa de rodagem.
Ora, não se diga que as declarações do arguido não são isentas por ser parte interessada nos autos, na forma como ocorreu o acidente, de forma a afastar a sua responsabilidade jurídico-penal. Com efeito, a nível de isenção, tanto valem as declarações do arguido como as do assistente C..., porquanto este também tem interesse na causa, designadamente na prova da dinâmica do acidente descrita na pronúncia, atento o pedido de indemnização civil deduzido.
Assim, ponderadas as declarações do arguido, pela forma concreta, coerente e serena com que as prestou e as declarações do assistente C..., vagas, com a preocupação em fazer passar a versão de que não teriam saído da sua mão de trânsito, aliados aos resultados da perícia da GEP e da Dekra – simulação 1, o Tribunal dá como provada a dinâmica do acidente de acordo com o que foi explicado pelo arguido.
Não obstante haver uma simulação da Dekra que define como possível, tendo em conta os dados objectivos que são levados em conta nestas simulações (o ângulo de embate e a posição final das viaturas), que o acidente tenha ocorrido no eixo da via, por ter sido o Toyota que se desviou da sua rota, o Tribunal não baseia a sua convicção apenas numa simulação elaborada em computador.
Num acidente intervém o factor máquina, traduzido pelo veículo e o humano, pelas pessoas que os conduzem. E a prova a produzir baseia-se no que nos referem as pessoas ouvidas em de audiência de julgamento, servindo a simulação apenas como auxiliar do tribunal para apreender a verdade material dos factos na medida do possível.
Como bem explicou o perito MT..., a análise das fotos com os danos nas viaturas são apreciadas pelo técnico, técnico que é um homem e que como tal os interpreta de forma subjectiva. É o resultado dessa interpretação que é introduzida no computador, que consubstanciam os dados a partir dos quais o programa inicia a simulação.
Quanto à posição final das viaturas, o facto de as mesmas na simulação computorizada elaborada pela GEP não ficarem exactamente na posição constante do croquis, o perito Manuel Teotónio explicou convenientemente a irrelevância dessa distância, a qual se pretende com o facto de a berma/valeta onde ficaram imobilizadas as viaturas, com as rodas da frente nessa parte, ser de gravilha, areia.
Acresce, por outro lado, que nenhuma das simulações efectuadas sustenta a versão constante da pronúncia, nem quanto a velocidade nem quanto ao facto de o acidente ter ocorrido na hemi-faixa de rodagem do Ford Orion, ou seja, no sentido Praia da Vagueira/Costa Nova.
Assim, considerando o exposto e da análise das declarações do arguido conjugada com os relatórios periciais constantes dos autos, o Tribunal deu credibilidade às declarações do arguido quanto à forma como se deu o acidente.
Facto 18: O Tribunal considerou o depoimento da testemunha U..., que foi quem procedeu ao reboque das viaturas.
Facto 19: O Tribunal considerou o depoimento da testemunha Y..., cabo da GNR, que referiu que foi fotografar os veículos na garagem do rebocador, referindo que analisou os pneus de ambas as viaturas, sendo que os de trás do Ford Orion se encontravam carecas. Embora apresentando rodado, já não tinham a profundidade legalmente exigida, tendo procedido à medição dos mesmos.
Não obstante a testemunha U... referir que os pneus ainda davam para circular, mereceu-nos credibilidade o depoimento da testemunha Y..., atenta a sua experiência nessa matéria e a exigência legal da profundidade, dadas as especiais funções que desempenha, designadamente na fiscalização de trânsito.
Facto 19 e 20: O Tribunal considerou a informação constante do croquis. Nenhuma das pessoas ouvidas em sede de julgamento soube precisar o estado do tempo no dia e hora do acidente, razão pela qual nos merece credibilidade o estado do tempo ali constante, atendendo ao tempo já decorrido sobre a ocorrência do acidente.
Facto 21: O Tribunal considerou os relatórios de autópsia constantes de fls. 119 a 134.
Factos 22 a 44: O Tribunal considerou o relatório do exame médico-legal constante de fls. 728 e ss dos autos.
Factos 45 a 50: O Tribunal fundou a sua convicção no certificado de registo criminal constante de fls. 1029 e nas declarações do arguido, que mereceram a nossa credibilidade no tocante à sua situação económico-financeira.
Factos 51 a 69: O Tribunal considerou as declarações dos assistentes C... e B... e às declarações das partes civis E... e F..., que descreveram a vivência familiar antes e depois do acidente e como isso mudou a vida de todos, tendo em conta a dor e desgosto por que passaram e ainda passam.
Não se consideraram os depoimentos prestados pelas demais testemunhas inquiridas, por não se revelarem relevantes para a prova dos factos, atenta a falta de conhecimento directo sobre os factos em discussão.
Factos Não Provados:
Quanto aos factos relacionados com a dinâmica do acidente, dou aqui por reproduzida a fundamentação dada para a prova dos factos 9 a 13 com as seguintes considerações.
Foi desconsiderado o depoimento da testemunha P..., tendo em conta a leitura do depoimento que prestou em sede de instrução e o agora prestado em sede de julgamento, pelo que nenhuma relevância é dada pelo Tribunal ao que por si foi dito. A consequência da irrelevância de tal depoimento, para efeitos de prova, é a de que desta forma não existem quaisquer testemunhas presenciais da ocorrência do mesmo.
Por outro lado, não obstante a testemunha G... e o assistente B... terem mencionado a existência de marcas de arrastamento, certo é que perante a reportagem fotográfica feita pela GNR constante de fls. 35 a 42 e efectuada na manhã seguinte à data da ocorrência do acidente não são visíveis quaisquer marcas, assim como as pessoas que as referiram foram incapazes de as identificar nas fotos que lhes foram exibidas.
Acresce que ainda referiu o assistente B... que no dia seguinte, à tarde, se deslocou ao local do acidente e viu vestígios do acidente, designadamente um pedaço de matrícula, plásticos e guarda-lamas do Ford Orion na berma do lado direito, atento o sentido de trânsito do Ford Orion, a cerca de 20 m para norte, atento o sentido de marcha do Ford, do local onde se imobilizaram as viaturas.
O assistente C... referiu que também avistou vestígios do embate no mesmo local, 15 dias após a ocorrência do mesmo.
Ora considerando mais uma vez a reportagem fotográfica elaborada pela GNR na manhã seguinte à data em que ocorreu o acidente e ainda o depoimento do CaboY..., que referiu que percorreram a pé e de carro as imediações do local do acidente, para fazer as medições para elaborar o croquis e para tirar as fotografias que foram juntas aos autos não tendo avistado quaisquer vestígios para além daqueles que se encontravam no local onde ficaram imobilizadas as viaturas.
Acresce por outro lado, que nenhum dos assistentes retirou uma fotografia aos alegados vestígios encontrados.
Considerando que porventura os mesmos ali se encontrassem, o que de todo não se provou, certo é que depois de os bombeiros terem procedido à lavagem do piso, os mesmos podem ter sido atirados para lá pela força da água das mangueiras e não porque o primeiro embate se tenha dado na hemi-faixa de rodagem do Ford Orion.
Quanto à demais matéria dada como não provada e atinente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente C..., não foi junto aos autos qualquer recibo comprovativo dos pagamentos que alegou ter feito pelas intervenções cirúrgicas de que foi objecto, nem dos tratamentos que fez e continua a fazer ou dos medicamentos que teve que tomar.
Efectivamente não foi feita qualquer prova cabal que permitisse concluir que foi o assistente C... quem suportou tais custos e não os seus pais, sendo certo que os mesmos não pediram indemnização pelos mesmos.
Acresce que nenhuma das testemunhas inquiridas soube dizer que máquinas adquiriu o C... para ajudar na convalescença nem o valor suportado pelas mesmas.
Quanto ao facto de o C... trabalhar aos sábados, o Tribunal entende que nenhuma prova foi feita nesse sentido. Não obstante o seu tio F... assim ter afirmado, certo é que não se revelou espontâneo nem muito claro no tocante à forma como seria esse trabalho prestado e muito menos quanto receberia por cada dia de trabalho.
Não foi arrolada ou indicada qualquer testemunha para quem o assistente C... possa ter trabalhado e que esclarecesse o valor do trabalho prestado aos sábados.

3. Apreciando
3.1. O Ministério Público junto da 1.ª instância suscitou, na sua resposta, a questão da legitimidade do recorrente para o recurso, por via de uma invocada inexistência jurídica ou nulidade insanável do despacho de pronúncia.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta não acompanhou o Ministério Público junto da 1.ª instância na suscitação dessa questão – que considera não se verificar.
Muito embora reconhecendo o apurado e qualificado esforço do Ministério Público junto da 1.ª instância na suscitação de tal questão, entendemos que o recorrente tem legitimidade para recorrer.
O arguido foi pronunciado na sequência de acórdão desta Relação que revogou o despacho de não pronúncia que havia sido anteriormente proferido e determinou que fosse substituído por outro que concluísse pela pronúncia.
Perante tal acórdão, não cabia ao tribunal de 1.ª instância senão dar-lhe preciso cumprimento.
Consequentemente, foi o arguido pronunciado, como se infere de fls. 505 e seguintes.
Como se verá, o despacho de pronúncia continha uma errada subsunção dos factos ao direito.
Certo é, porém, que os crimes aí enunciados constituem crimes públicos, pelo que, nessa perspectiva, o respectivo procedimento criminal não estava dependente de queixa.
Ora, a nosso ver, a circunstância de a instrução ter sido requerida por um dos ofendidos não inibia o juiz de instrução de, como lhe cabia, no estrito cumprimento do decidido por esta Relação, proferir decisão instrutória de pronúncia em relação a todos os crimes de natureza pública constantes do requerimento de abertura de instrução.
Como refere a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, «ainda que a subsunção jurídica dos factos pelos quais o arguido foi pronunciado não esteja correcta no que se refere a um dos crimes, o certo é que essa imputação se manteve até à prolação da sentença e é nessa qualidade, a de assistente/ofendido de um crime de ofensas à integridade física grave p.p. pelo art.l44°, d) do CP, que o recorrente vem recorrer da sentença, ainda que nesta, embora absolutória, se tenha alterado a qualificação jurídica dos factos que constava do despacho de pronúncia, conforme se alcança do seu texto e da respectiva acta - (f1s.1052/1054) - onde se registou que "a M.ma Juiz comunicou que da prova produzida em audiência resultou uma alteração da qualificação jurídica dos crimes pelos quais o arguido foi pronunciado, em concurso real de “um crime de homicídio negligente" p.p pelo art.137.º/1 do Cód. Penal, para em concurso real de “três homicídios negligentes" e a alteração de ''crime de ofensas à integridade física graves" p. p pelo art. 144º, d), do Cód. Penal, para ''crime de ofensas à integridade física negligente", p.p pelo art. 147.º/1 do Cód. Penal”, alteração que foi comunicada ao abrigo do disposto no art.358.º, n.º1 do CPP).»
Assim, não vemos que o tribunal, ao proferir despacho de pronúncia como lhe foi superiormente determinado e tinha de acatar, incorresse em qualquer inexistência ou nulidade insanável, nem que ao recorrente falte legitimidade para recorrer da sentença que absolveu o arguido, pelo que temos por inverificada a referida questão prévia.
3.2. O recorrente invoca a existência da nulidade prevista no artigo 119.º, aliena e), do C.P. Penal, que consistirá no facto de o julgamento ter decorrido perante tribunal singular quando, atenta a moldura penal abstracta dos crimes por que o arguido estava pronunciado, o julgamento deveria ter decorrido, no entender do recorrente, com intervenção do tribunal colectivo.
Compulsados os autos, verificamos que do despacho de pronúncia de fls. 505 e seguintes consta que o arguido é pronunciado «para julgamento perante tribunal singular».
A factualidade descrita na pronúncia é toda ela relativa a uma actuação negligente.
Porém, na parte da qualificação jurídica dos factos, fez-se constar que o arguido constituiu-se «autor material de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137.º, n.º1 do Código Penal e de um crime de ofensas à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º, al. d) do Código Penal».
É evidente que, quanto a este último, a menção deveria ser ao artigo 148.º, n.º3, com referência ao mencionado artigo 144.º, al. d).
No despacho que designou dia para julgamento foi determinado que os autos fossem autuados «como processo comum com intervenção do Tribunal Singular».
Atente-se que, na perspectiva de um julgamento por um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137.º, n.º1 do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física negligente p. e p. pelo artigo 148.º, n.º3, com referência ao artigo 144.º, al. d), do Código Penal, não ofereceria dúvida a intervenção do tribunal singular, tendo em vista as molduras penais aplicáveis e o disposto nos artigos 14.º e 16.º do C.P.P., devidamente conjugados. Não assim tomando como referência o crime «de ofensas à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º, al. d) do Código Penal».
No decurso da audiência, antes de serem tomadas declarações ao arguido, o Ministério Público, apercebendo-se dos termos que constavam da pronúncia, requereu:
«Por despacho de fls. 505 a 511, foi o arguido denunciado pela prática em autoria material por um crime de homicídio por negligência p.p pelo art. 137/1 do Cód. Penal, punível com pena de prisão até 3 anos e de um crime de ofensas à integridade física grave , p.p. pelo art. 144/ d) do Cód. Penal, punível com pena de prisão até 10 anos.
Atentas as molduras penais abstractamente aplicáveis a cada um dos ilícitos criminais pelos quais o arguido se encontra pronunciado, cabe ao tribunal colectivo, o julgamento dos mesmos, pois por força da alínea d) do n.º 2 do art. 14° do CPP, cabe a esse tribunal a competência para o julgamento dos crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável seja superior a cinco anos, mesmo quando no caso do concurso de infracções, for inferior o limite máximo correspondente a cada crime.
O caso dos presentes autos integra-se claramente no âmbito da última parte do referido normativo legal, porém o art. 16/3 do mesmo diploma, compete ao Ministério Público requerer o julgamento perante o tribunal singular quando entender em concreto que não deva ser aplicável pena de prisão superior a cinco anos. Acresce que só após ser proferido Despacho de Pronúncia é que o Ministério Público teve conhecimento do referido concurso de crimes.
Entendo pois que em concreto não deve ser aplicada ao arguido pena de prisão superior a cinco anos, pelo que se requer que o julgamento seja feito, pela intervenção do Tribunal Singular, pelo facto de: todos os factos terão ocorrido no mesmo contexto de tempo e lugar, não resultam dos autos, elementos relativos aos factos ou à culpa do agente, que justificam a aplicação ao mesmo de uma pena superior e a sanção penal proposta é em nosso entender adequada a satisfazer os fins da prevenção geral e especial das penas nos termos do art. 40.º/1 do Cód. Penal»
Atente-se que, estando presentes na audiência todas as pessoas convocadas (cfr. fls. 1011 e segs.), foi dada a palavra aos restantes sujeitos processuais que disseram nada opor.
Na sequência, a M.ma Juíza determinou o prosseguimento da audiência mediante a intervenção de tribunal singular, como fora requerido.
Mais tarde, veio a ser comunicada uma alteração da qualificação jurídica dos factos, que também não sofreu oposição.
Insurge-se, agora, o recorrente contra o facto de o julgamento ter decorrido com intervenção do tribunal singular.
Dispõe o n.º 3, do artigo 16.º, do C.P. Penal. «Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14º, nº 2, alínea b), mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos.»
O n.º 4 do mesmo artigo, por sua vez, preceitua que, nesse caso, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a cinco anos.
É sabido que chegaram a ser objecto de alguma controvérsia as normas do artigo 16.º, n.º3 e 4, do C.P.P., defendendo alguns autores que violam os princípios do juiz natural, da jurisdição, da legalidade e da igualdade. O Tribunal Constitucional, porém, tem considerado que elas não colidem com qualquer das garantias do processo criminal consagradas na Constituição (o B.M.J. 394 contém, nas páginas 188 e 189, uma relação de Acórdãos do T. C. proferidos neste domínio, nos anos de 1989-1990, que mantém o seu interesse).
A lei consagra, pois, no artigo 16.º, n.º3, os termos em que ocorre a determinação in concretum da competência do tribunal singular, por iniciativa do Ministério Público.
No caso apreço, em que o Ministério Público havia determinado o arquivamento do inquérito e em que o arguido só foi pronunciado na sequência de decisão do Tribunal da Relação, não era possível ao Ministério Público, como é óbvio, tomar posição, na acusação, quanto à pena a aplicar em concreto ao arguido, porquanto não foi deduzida acusação pública.
Porém, não vemos obstáculo a que, posteriormente, antes de se iniciar a produção de prova pessoal na audiência de julgamento (antes haviam sido juntos documentos), o Ministério Público viesse a tomar posição, em requerimento superveniente, tanto mais que os restantes sujeitos processuais, estando presentes, nada opuseram a que o julgamento decorresse com intervenção do tribunal singular, sendo até questionável se, face a tal atitude, é conforme à lealdade processual deixar decorrer o julgamento até ao fim perante tribunal singular para, só em recurso e face a uma decisão desfavorável, suscitar a questão, entretanto silenciada.
Só se o Ministério Público não tivesse chegado a fazer a determinação in concretum da competência do tribunal singular e, ainda assim, o julgamento decorresse com intervenção desse tribunal, é que teria ocorrido, a nosso ver, uma nulidade insanável. Mas como o Ministério Público procedeu a tal singularização, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º3, do C.P.P., a única questão que se poderia colocar consistiria em saber se o momento processual para o fazer foi o oportuno e, não o sendo, quais as consequências.
Ora, mesmo que se entendesse que o requerimento (superveniente) do Ministério Publico deveria ter sido deduzido anteriormente, afigura-se-nos que a sua dedução posterior não configuraria mais do que uma irregularidade processual, não tempestivamente arguida, precisamente porque com a posição do Ministério Público logo se conformaram todos os sujeitos processuais.
Daí que, sendo inequívoco que o julgamento decorreu perante o tribunal singular mercê de requerimento expressamente formulado nesse sentido pelo Ministério Público, entendemos inexistir a invocada incompetência do tribunal singular e, por conseguinte, não se verificar a alegada nulidade insanável.

3.3. O recorrente alega ter existido violação do disposto nos artigos 163.º e 127.º do C.P.P., com a consequente ocorrência de uma nulidade da sentença por violação do preceituado no artigo 379.º, n.º1, alínea c), do mesmo diploma, tudo porque a sentença recorrida teria indevidamente divergido de prova pericial subtraída ao princípio da livre apreciação da prova.
A invocada prova pericial consiste num relatório sobre a dinâmica do acidente de viação a que os autos se reportam, levado a cabo pela empresa “DEKRA Portugal».
Vejamos:
De harmonia com o disposto no artigo 127.º do C.P.P., salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Esta regra da livre apreciação da prova tem algumas excepções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (artigo 169.º); ao caso julgado, não obstante este apenas se encontrar indirectamente regulado no C.P.P., a propósito do pedido civil (artigo 84.º); à confissão integral e sem reservas no julgamento (artigo 344.º) e à prova pericial (artigo 163.º).
O artigo 163.º do C.P.P. dispõe:
«1 – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 – Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»
Reconhecendo-se que o juiz não comporta um saber enciclopédico, este artigo fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção “juris tantum” de validade do parecer técnico, científico ou artístico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. O que determina que a conclusão a que chegou o perito só pode ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do artigo 163.º).
O regime constante do Código de Processo Penal tem por base a posição defendida pelo Prof. FIGUEIREDO DIAS, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – “que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer” – enquanto que o juízo científico expendido só é passível de crítica “igualmente material e científica”. Excepções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência (Direito Processual Penal, I, Reimpressão de 1984, p. 209; Cfr , também, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ , 2.º semestre de 2005 , n.º 3, p. 219 .
A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, importa aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais e examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não é posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.
É esta a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163.º, do Código de Processo Penal, atenta a sua função de auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida (cfr. Acórdão do S.T.J., de 11 de Julho de 2007, processo 07P1416, www.dgsi.pt).
No caso em apreço, constata-se que o referido relatório se reporta a um parecer da mencionada «DEKRA», elaborado com base em simulações levadas a cabo com recurso a um programa informático.
E, com base nessas simulações, o dito parecer apresenta reconstituições virtuais do acidente de viação em causa, apontando os cenários plausíveis e conclusões.
Desde logo temos como seguro que o dito relatório não constitui verdadeira prova pericial.
Mas ainda que fosse, esquece o recorrente que nos autos existia, para além do relatório da «DEKRA», outro relatório da «GEP – Gestão de Peritagens Automóveis, S.A.», que o recorrente procura repetidamente desvalorizar por ter sido apresentado pela demandada civil.
E esquece, igualmente, que ambos os relatórios, elaborados com base em simulações de computador, utilizaram precisamente o mesmo programa informático, o «PC-CRASH».
Trata-se de um programa informático que efectua simulações de reconstituição de acidentes, de acordo com os elementos disponíveis, como rastos de travagem, danos dos veículos envolvidos, pontos de contacto na colisão, etc.
No que concerne às simulações apresentadas pela «DEKRA», o relatório respectivo refere que «computacionalmente as duas simulações são possíveis…». Para levar a cabo essas simulações, parte de pressupostos que são os dados de base inseridos no programa.
Por sua vez, também a «GEP» fez simulações, chegando a resultados distintos.
Aqui chegados, importa reter que o recorrente entende que, tendo sido impugnada pelos demandantes civis a junção do relatório da «GEP», a sentença recorrida incorreria em omissão de pronúncia por nada se dizer quanto a tal impugnação.
Tal «impugnação», porém, constante de fls. 850, mais não traduz do que a manifestação da discordância dos demandantes civis quanto às respectivas conclusões, salientando os demandantes, além do mais, ser patente que o programa de computador usado para «esquematizar» a versão do acidente previa varias hipóteses.
Tal «impugnação» consubstanciou, a nosso ver, apenas o exercício normal do princípio do contraditório por parte dos demandantes civis, perante a iniciativa processual da demandada, não se vislumbrando que exigisse, por parte do tribunal, qualquer específica tomada de posição nos autos.
A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença. E a sentença só padece da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do C.P.P. se a omissão se referir a uma questão em sentido técnico, não enfermando desse vício se ela apenas não tiver tomado em consideração um fundamento para decidir essa questão num ou noutro sentido.
No caso em análise, foi dada a oportunidade aos demandantes civis de tomarem posição sobre o relatório da «GEP», em homenagem ao princípio do contraditório, nada impondo que, na sequência dessa tomada de posição, o tribunal tivesse que proferir qualquer despacho.
Por outro lado, na sentença recorrida, o tribunal a quo considerou ambos os relatórios, em sede de decisão da matéria de facto, ciente das posições assumidas pelos sujeitos processuais quanto aos mesmos.
Não se vislumbra, por conseguinte, qualquer omissão de pronúncia.
Acresce que, como já se disse, nenhum dos relatórios das simulações em causa consubstancia verdadeira prova pericial e, ainda assim, sempre haveria que concluir pela existência de dois relatórios diferentes, elaborados com base no mesmo programa informático, pelo que o tribunal não estava vinculado a acolher como «bom» apenas o mencionado pelo recorrente.
Lê-se na sentença recorrida:
«Não obstante haver uma simulação da Dekra que define como possível, tendo em conta os dados objectivos que são levados em conta nestas simulações (o ângulo de embate e a posição final das viaturas), que o acidente tenha ocorrido no eixo da via, por ter sido o Toyota que se desviou da sua rota, o Tribunal não baseia a sua convicção apenas numa simulação elaborada em computador.
Num acidente intervém o factor máquina, traduzido pelo veículo e o humano, pelas pessoas que os conduzem. E a prova a produzir baseia-se no que nos referem as pessoas ouvidas em de audiência de julgamento, servindo a simulação apenas como auxiliar do tribunal para apreender a verdade material dos factos na medida do possível.
Como bem explicou o perito MT..., a análise das fotos com os danos nas viaturas são apreciadas pelo técnico, técnico que é um homem e que como tal os interpreta de forma subjectiva. É o resultado dessa interpretação que é introduzida no computador, que consubstanciam os dados a partir dos quais o programa inicia a simulação.
Quanto à posição final das viaturas, o facto de as mesmas na simulação computorizada elaborada pela GEP não ficarem exactamente na posição constante do croquis, o perito MT… explicou convenientemente a irrelevância dessa distância, a qual se pretende com o facto de a berma/valeta onde ficaram imobilizadas as viaturas, com as rodas da frente nessa parte, ser de gravilha, areia.
Acresce, por outro lado, que nenhuma das simulações efectuadas sustenta a versão constante da pronúncia, nem quanto a velocidade nem quanto ao facto de o acidente ter ocorrido na hemi-faixa de rodagem do Ford Orion, ou seja, no sentido Praia da Vagueira/Costa Nova.»
Quer isto dizer que o tribunal recorrido ponderou todos os elementos disponíveis, incluindo os relatórios relativos às simulações elaboradas pela «DEKRA» e pela «GEP», e que salientou que «nenhuma das simulações efectuadas sustenta a versão constante da pronúncia, nem quanto a velocidade nem quanto ao facto de o acidente ter ocorrido na hemi-faixa de rodagem do Ford Orion, ou seja, no sentido Praia da Vagueira/Costa Nova.»
Sendo inegável que as simulações realizadas com base em programas informáticos constituem importantes elementos a ponderar pelo tribunal, importa não perder de vista que se trata, apenas, de «simulações», dependentes dos dados introduzidos no computador, dados a que se chega, por vezes, a partir de interpretações subjectivas, como salienta a sentença recorrida.
Veja-se, por exemplo, partindo do relatório da «DEKRA», o ângulo de embate considerado em ambas as simulações (p. 19 e 34 do relatório), ou então a distribuição dos danos nos veículos, a partir da interpretação que foi feita nas fotografias disponíveis.
Em suma, entendemos que o relatório da «DEKRA» não pode ser entendido como verdadeira prova pericial. Trata-se de um relatório, elaborado a partir de simulações de reconstituição do acidente, que apresenta cenários possíveis e que teve por base um programa informático que também serviu para outra entidade, a «GEP», proceder a diferentes simulações e chegar a outras conclusões (veja-se, por exemplo, como nas diversas simulações feitas pelas duas entidades, as velocidades de pré-impacto surgem sempre relativamente baixas, inferindo-se que nenhuma delas reproduzirá, exactamente e de per si, os factos tal como se passaram).
Perante tais elementos, estava o tribunal recorrido habilitado a ponderar tais relatórios/pareceres, avaliando os respectivos pressupostos e confrontando-os com os elementos colhidos da prova produzida em audiência, por declarações e testemunhos, no quadro do princípio da livre apreciação da prova.
E não sendo coincidentes as simulações, quanto à dinâmica do acidente, é óbvio que não podiam ser acolhidas simultaneamente como reproduzindo a verdade dos factos, pelo que cabia ao tribunal ponderá-las, como efectivamente fez e de forma fundamentada, à luz da restante prova produzida, analisada criticamente.
Afigura-se-nos, pois, que a sentença recorrida não enferma de nulidade por omissão de pronúncia e que não incorreu em qualquer violação do disposto no artigo 163.º do C.P.P. sobre o valor da prova pericial.

3.4. O recorrente, na motivação do seu recurso, invoca também a existência do vício da omissão de pronúncia pela razão de a sentença recorrida não se ter pronunciado quanto à presunção de culpa do arguido na eclosão do acidente, nos termos do Código Civil.
O recorrente carece de razão.
É certo que a sentença recorrida não diz – e devia dizer – quem é o proprietário do veículo Toyota (veículo ligeiro 02-70-EQ).
Porém, tal omissão (tal como a omissão de referência ao contrato de seguro) não releva para o caso dos autos.
O artigo 503.º, n.º3, do Código Civil, prescreve: «Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º1.»
A sentença nada diz sobre a existência de uma relação comitente-comissário.
No entanto, é evidente que não há lugar à aplicação de qualquer culpa presumida, porquanto, nos termos da sentença, se apurou que a culpa efectiva na produção do acidente pertenceu à condutora do veículo Ford Orion, já que se deu como provado que foi esta a transpor a linha longitudinal contínua, invadindo a faixa de rodagem contrária, desencadeando o acidente de viação.
Por outras palavras: mesmo que se provasse que o condutor do veículo Toyota agia como condutor-comissário, a presunção de culpa prevista no artigo 503.º, n.º3, do Código Civil estaria afastada, nos termos da sentença recorrida, por se ter apurado a culpa efectiva da condutora do Ford Orion, que afasta qualquer culpa presumida do condutor do Toyota.
Face ao exposto, perde relevância a omissão à propriedade do Toyota e a qualquer eventual relação de comissão, porquanto, nos termos dos factos provados, não tem o mínimo cabimento a alusão à presunção de culpa, não havendo, nesta parte, qualquer omissão de pronúncia.

3.5. Da análise da motivação infere-se que o recorrente pretende impugnar a matéria de facto, fazendo menção a declarações e depoimentos prestados em audiência, muito embora o faça de forma algo imprecisa e confusa, com referência ao dever de fundamentação das decisões judiciais previsto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., e aos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do mesmo diploma.

3.5.1. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º4.

3.5.2. Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

3.5.3. Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, analisemos o recurso na parte em que se reporta, expressamente, a factos que considera incorrectamente julgados.
E a primeira observação a fazer é que o recorrente, muito embora mencione, por diversas vezes, a prova pessoal (declarações e depoimentos) produzida em audiência de julgamento, situa a sua discordância, no plano jurídico, na alegada violação do dever de fundamentação e das alíneas a) e b) do n.º2 do artigo 410.º, respeitantes aos vícios decisórios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Ainda assim, pese embora o modo algo deficiente como motivou o recurso nesta parte, infere-se que o recorrente quis, efectivamente, suscitar a reapreciação da prova, no que toca aos concretos pontos de facto que identifica e aos segmentos de prova que concretamente especificou, razão pela qual passamos a analisar as razões apresentadas, nos seus diversos planos.

3.5.3.1. Dispõe o artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º5, do C.P.P., prescreve que os actos decisórios «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. «Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina» (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 294).
A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da comunidade.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., a fundamentação consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Os factos provados e não provados são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais, e ainda os que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão. A imposição da enumeração dos factos provados e não provados só se satisfaz com a relacionação ou narração minuciosa, isto é, um a um, dos factos provados e não provados.
No caso vertente, da sentença recorrida consta a indicação pormenorizada dos factos provados e não provados.
As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem também ser especificadas na fundamentação, o que, no caso, acontece.
No que toca à fundamentação da decisão de facto, exige-se a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
O Acórdão n.º 680/98, do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998, D.R., 2ª Série, de 5 de Março de 1999, julgou inconstitucional a norma do n.º2 do artigo 374.º do C.P.P. de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do artigo 205.º da Constituição, bem como, quando conjugado com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do artigo 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do artigo 32.º, também da Constituição.
Escreveu Marques Ferreira a respeito da motivação de facto: «Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência». E acrescenta, mais adiante: «A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410.º, n.º2 (...).» Por sua vez, «extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade» (“Meios de Prova”, in Jornadas de Direito Processual Penal/ O Novo Código de Processo Penal, p. 229 e 230).
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, Processo:05P662, www.dgsi.pt).
Quer isto dizer que a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que a sentença reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (cfr. acórdão do STJ, de 26 de Março de 2008, Processo: 07P4833, www.dsgi.pt; sobre o tema da fundamentação das sentenças, o texto do Desembargador Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, p. 21 e segs.).
No caso em análise, o recorrente, ao sindicar os factos que considera incorrectamente dados como provados e não provados, começa por situar a questão no plano da alegada violação do dever de fundamentação.
Basta ler a extensa e especificada motivação da decisão de facto para concluir que o recorrente carece de razão.
Realmente, esforçou-se o tribunal a quo no sentido de explicitar, de forma tão completa quanto possível, as razões da sua convicção.
Para além de indicar concretamente as provas consideradas, a sentença detém-se no seu exame crítico, expondo as razões pelas quais, com base nas provas, o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada e não provada.
Tendo em vista que a prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência, em que se incluem as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, a sentença recorrida não deixou de apresentar, com meridiana clareza, as razões pelas quais concluiu nos termos em que o fez, sendo certo que, quanto ao valor do relatório/parecer da «DEKRA», já nos referimos supra de modo a se concluir que não tem razão o recorrente ao atribuir-lhe o valor de prova pericial subtraída à regra da livre apreciação da prova.
Conclui-se, pois, que poderá o recorrente discordar do julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo, mas que carece totalmente de razão quando pretende que a sentença recorrida não se mostra devidamente fundamentada, designadamente no que concerne à decisão sobre a matéria de facto.

3.5.3.2. Prosseguindo no exame das questões suscitadas, verificamos que o recorrente, ainda que de modo algo defeituoso, invoca algumas das provas gravadas, no que constitui um modo – criticável, certamente, pela forma como o faz – de suscitar a sua reapreciação.
Dentro dos limites acima traçados, importa salientar que a impugnação ampla supõe, sempre, que as concretas provas especificadas imponham decisão diversa da recorrida.
Tal pressuposto ganha particular acuidade quando, como é o caso, estamos perante uma sentença absolutória.
Realmente, o parâmetro em função do qual tem sempre de ser resolvida a questão da prova, em processo penal, para permitir a condenação do arguido, é o da prova além de toda a dúvida razoável ou “proof beyond any reasonable doubt”, tendo em vista o conhecido princípio in dubio pro reo.
Tal significa que, tratando-se de recurso de uma absolvição, para que a impugnação da matéria de facto alcance sucesso é necessário que as concretas provas especificadas pelo recorrente imponham, sem margem para dúvida, decisão diversa da tomada pela 1.ª instância, no sentido de, perante elas, não subsistir qualquer dúvida razoável sobre a realidade dos factos imputados.
No caso, os segmentos de prova concretamente indicados não consentem tal conclusão.
Como já se assinalou, ao contrário do que ocorreu com a 1.ª instância, este tribunal não beneficia da imediação, estando limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Na falta da imediação, o que podemos dizer é que a prova não desmente o juízo efectuado pela 1.ª instância e que o recorrente se socorre de excertos de prova descontextualizados para deles extrair consequências injustificadas.
A simples circunstância de o arguido dizer, a dada altura, que a condutora do Ford descreveu a curva e fez uns «esses» e, mais adiante, afirmar que teria travado se se apercebesse que ela vinha aos «esses», não tem a virtualidade de consentir a conclusão que, aparentemente, o recorrente pretende inferir.
É normal que no decurso das declarações e depoimentos sejam produzidos relatos dos factos que, se forem atomizados e retirados do seu contexto, podem parecer contraditórios.
Mas os segmentos de declarações especificados, descontextualizados e isolados, não chegam para concluir que, analisadas as declarações na sua globalidade, não sejam as mesmas merecedoras de credibilidade.
Repare-se que, no tocante às provas que o recorrente especifica, temos as suas declarações – em que disse que a condutora do Ford não saiu da sua mão de trânsito – e os depoimentos das testemunhas P..., U... e G....
A este propósito, lê-se na sentença recorrida:
«Quanto à dinâmica do acidente, o Tribunal considerou as declarações do arguido, que mereceram a credibilidade do Tribunal, atenta a sua postura colaborante, serena e coerente que assumiu durante todo o julgamento, que descreveu a forma como se deu acidente, aliadas à perícia solicitada pela demandada seguradora à GEP, cujo relatório se encontra junto a fls. 808 e ss dos autos, aos esclarecimentos que o perito MT... da GEP prestou em sede de julgamento e ainda ao relatório pericial da Dekra, constante de fls. 954 dos autos, referente à simulação 1 por si efectuada.
Com efeito, não temos quaisquer testemunhas presenciais do acidente a não ser as pessoas que nele foram interveniente, ou seja, o arguido e o assistente C....
As declarações do assistente C... mostraram-se vagas, pouco concretas, referindo que se circulavam de vagar e que nunca saíram da sua mão de trânsito, mais referindo, no entanto, que ia a olhar para a ria quando o acidente ocorreu, tendo visto apenas um vulto escuro à frente da sua viatura.
Perguntado como teria surgido esse vulto, não foi capaz de explicar, acentuando no entanto uma preocupação, que o tribunal considerou como exagerada, em dizer que não saíram da sua faixa de rodagem.
Ora, não se diga que as declarações do arguido não são isentas por ser parte interessada nos autos, na forma como ocorreu o acidente, de forma a afastar a sua responsabilidade jurídico-penal. Com efeito, a nível de isenção, tanto valem as declarações do arguido como as do assistente C..., porquanto este também tem interesse na causa, designadamente na prova da dinâmica do acidente descrita na pronúncia, atento o pedido de indemnização civil deduzido.
Assim, ponderadas as declarações do arguido, pela forma concreta, coerente e serena com que as prestou e as declarações do assistente C..., vagas, com a preocupação em fazer passar a versão de que não teriam saído da sua mão de trânsito, aliados aos resultados da perícia da GEP e da Dekra – simulação 1, o Tribunal dá como provada a dinâmica do acidente de acordo com o que foi explicado pelo arguido.
Não obstante haver uma simulação da Dekra que define como possível, tendo em conta os dados objectivos que são levados em conta nestas simulações (o ângulo de embate e a posição final das viaturas), que o acidente tenha ocorrido no eixo da via, por ter sido o Toyota que se desviou da sua rota, o Tribunal não baseia a sua convicção apenas numa simulação elaborada em computador.
Num acidente intervém o factor máquina, traduzido pelo veículo e o humano, pelas pessoas que os conduzem. E a prova a produzir baseia-se no que nos referem as pessoas ouvidas em de audiência de julgamento, servindo a simulação apenas como auxiliar do tribunal para apreender a verdade material dos factos na medida do possível.
Como bem explicou o perito MT..., a análise das fotos com os danos nas viaturas são apreciadas pelo técnico, técnico que é um homem e que como tal os interpreta de forma subjectiva. É o resultado dessa interpretação que é introduzida no computador, que consubstanciam os dados a partir dos quais o programa inicia a simulação.
Quanto à posição final das viaturas, o facto de as mesmas na simulação computorizada elaborada pela GEP não ficarem exactamente na posição constante do croquis, o perito Manuel Teotónio explicou convenientemente a irrelevância dessa distância, a qual se pretende com o facto de a berma/valeta onde ficaram imobilizadas as viaturas, com as rodas da frente nessa parte, ser de gravilha, areia.
Acresce, por outro lado, que nenhuma das simulações efectuadas sustenta a versão constante da pronúncia, nem quanto a velocidade nem quanto ao facto de o acidente ter ocorrido na hemi-faixa de rodagem do Ford Orion, ou seja, no sentido Praia da Vagueira/Costa Nova.
Assim, considerando o exposto e da análise das declarações do arguido conjugada com os relatórios periciais constantes dos autos, o Tribunal deu credibilidade às declarações do arguido quanto à forma como se deu o acidente.»
Analisado o registo da prova, não identificamos qualquer razão para censurar a valoração efectuada pelo tribunal recorrido.
No tocante às declarações prestadas pelo recorrente, o juízo de credibilidade efectuado pelo tribunal a quo não se revela minimamente inadequado face aos ditames da experiência comum, tendo em vista o teor das ditas declarações, que efectivamente se verifica serem pouco concretizadas, referindo que circulavam devagar, que nunca saíram da sua mão de trânsito e que, quando o acidente ocorreu, apercebeu-se apenas de um vulto escuro à frente da viatura.
Como se disse, em sede de credibilidade relativa de declarações e depoimentos, deve prevalecer, em princípio, o juízo efectuado por quem beneficiou da imediação.
Quanto ao depoimento de P..., importa reter que, havendo discrepância entre o depoimento que esta testemunha prestou em julgamento relativamente ao que prestara em sede de instrução, procedeu-se, em audiência, à leitura do depoimento prestado perante o juiz de instrução, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º2, al. b), do C.P.P., como se infere da acta, tendo sido, inclusivamente, ordenada a extracção de certidão para eventual procedimento criminal por falsidade de testemunho contra o referido P....
É inteiramente compreensível, por isso, que tenha sido desconsiderado o depoimento dessa testemunha e que, por via da irrelevância do mesmo, para efeitos de prova, não existam quaisquer testemunhas presenciais da ocorrência do acidente de viação em causa.
Quanto à testemunha U..., que foi quem procedeu ao reboque das viaturas, a mesma relatou que esteve presente no local, chamado pelas autoridades, quando ainda lá se encontravam a GNR, os bombeiros e os corpos das vítimas nas ambulâncias.
No que concerne às partes dos veículos que se mostravam embatidas, referiu a frente do Toyota e a lateral direita, mais à frente, do Ford.
É precisamente o que se deu como provado no facto n.º 12, não fazendo qualquer sentido que o recorrente pretenda, com base no depoimento dessa testemunha, que se dê como assente facto diverso.
No que toca ao estado dos pneus do Ford, a testemunha disse que estavam «a meio uso» e «um de trás mais gasto».
A este propósito, assinalou a sentença recorrida que se atendeu ao «depoimento da testemunha Y..., cabo da GNR, que referiu que foi fotografar os veículos na garagem do rebocador, referindo que analisou os pneus de ambas as viaturas, sendo que os de trás do Ford Orion se encontravam carecas. Embora apresentando rodado, já não tinham a profundidade legalmente exigida, tendo procedido à medição dos mesmos.»
E mais se acrescentou:
«Não obstante a testemunha U... referir que os pneus ainda davam para circular, mereceu-nos credibilidade o depoimento da testemunha Y..., atenta a sua experiência nessa matéria e a exigência legal da profundidade, dadas as especiais funções que desempenha, designadamente na fiscalização de trânsito.»
Face a estes elementos e tendo em vista os depoimentos gravados, não se identifica qualquer razão para alterar o decidido quanto ao facto de os pneus traseiros do Ford estarem «carecas».
Refira-se, igualmente, que esta testemunha, que não assistiu ao acidente, questionado nesse sentido, admitiu como possível – e foi apenas isso que admitiu – que o Ford pudesse ter sido arrastado. Foi uma hipótese levantada e não uma afirmação de que tal tenha ocorrido.
Quanto ao estado do tempo, o tribunal considerou a informação constante do croquis, acrescentando: «Nenhuma das pessoas ouvidas em sede de julgamento soube precisar o estado do tempo no dia e hora do acidente, razão pela qual nos merece credibilidade o estado do tempo ali constante, atendendo ao tempo já decorrido sobre a ocorrência do acidente.»
No tocante ao depoimento da testemunha P..., já assinalámos as razões, a nosso ver justificadas, para que o tribunal recorrido não lhe tenha reconhecido credibilidade.
Quanto à testemunha G..., é de salientar que esta disse ter chegado ao local quando ainda era dia, por volta das 16.30 h, perto das 17 h.
Não é certo, por isso, que tenha afirmado, de modo preciso, que chegou ao local às 16.30 horas.
Verifica-se que, realmente, a testemunha disse que não estava a chover e que, já depois, se levantou uma névoa.
O que não deixa de contrastar com o que consta do croquis do acidente, na altura elaborado pela autoridade.
Dado o tempo entretanto decorrido – os factos ocorreram em Novembro de 2003 –, não se figura desajustada a opção do tribunal recorrido de fazer prevalecer os elementos constantes da participação e croquis elaborados na altura, em detrimentos da memória dos mesmos, quanto ao estado do tempo, constante de um relato feito passados quase cinco anos depois dos factos.
No que concerne aos factos não provados, estriba-se o recorrente, além do mais, nos depoimentos das testemunhas E... e F....
O tribunal recorrido entendeu: «Quanto ao facto de o C... trabalhar aos sábados, o Tribunal entende que nenhuma prova foi feita nesse sentido. Não obstante o seu tio F... assim ter afirmado, certo é que não se revelou espontâneo nem muito claro no tocante à forma como seria esse trabalho prestado e muito menos quanto receberia por cada dia de trabalho.
Não foi arrolada ou indicada qualquer testemunha para quem o assistente C... possa ter trabalhado e que esclarecesse o valor do trabalho prestado aos sábados.»
Ouvida a prova gravada, não é desmentido o juízo efectuado pelo tribunal de 1.ª instância quanto à existência de dúvidas sobre se o recorrente trabalhava ou não ao sábado e quanto auferiria, dado o teor dos depoimentos produzidos e a falta de concreta identificação de alguém para quem o recorrente fizesse tais trabalhos.
Concluindo: entendemos que, com base nas provas concretamente especificadas, não existem razões que imponham que a decisão sobre a matéria de facto deva ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente.

3.5.4. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios de conhecimento oficioso.
Em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem sempre que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
Quanto à “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Quanto à “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
O recorrente diz que o tribunal recorrido teria violado as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º, do que se infere que entende estar a sentença afectada pelos respectivos vícios decisórios.
Do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios.
Nem a matéria de facto se mostra insuficiente para a decisão, no sentido supra apontado, nem se identifica qualquer incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também nesta parte o recurso não merece provimento.

Concluindo:
- Os factos dados como provados e não provados devem ter-se como assentes.
- Com base nos mesmos, a sentença recorrida deve ser mantida, não enfermando de nenhum dos vícios que lhe foram apontados.
Por conseguinte, terá de ser negado provimento ao recurso.


III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça.

Coimbra,
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

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(Jorge Gonçalves)

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(Jorge Raposo)