Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4292/06.3YXLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
MORA DO CREDOR
BOA-FÉ
Data do Acordão: 11/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1, 762.º, N.º 2, 799.º, N.º 1, 813.º, IN FINE E 814.º A 816.º DO CCIVIL
Sumário: 1. No caso dos autos, o autor credor não logrou provar ter procedido à liquidação/quantificação dos montantes assumidos pelos réus em face da celebração dos referidos contratos de mútuo, nos quais se discriminam as quantias em dívida relativas à penalização por liquidação antecipada e demais despesas ora peticionadas.

2. De igual forma, o autor, não provou que, em qualquer outro momento, tenha informado os réus de qual o quantitativo exacto de tais despesas.

3. Acresce que, por se tratar de quantia ilíquida, deveria, ainda informá-los da data, pelo menos, aproximada, da respectiva cobrança.

4. Não o fazendo, não pode exigir dos réus o respectivo pagamento, dado o desconhecimento destes acerca do quantitativo das suas responsabilidades e, assim, incorreu o credor em mora.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... com sede ...., propôs a presente providência de injunção contra B... e exigindo o pagamento da quantia de 7.012,02 €, sendo de capital 5.985,52, acrescidos de 901,44 € de juros de mora, à taxa de 23% entre 01/11/2004 e 27/6/2005, data de entrada da providência e de 89,00 € de taxa de justiça paga, e ainda de outras quantias no valor de 36,06 €, emergente de um contrato de abertura de crédito nº 915483454 de 14.12.2001, alegando, em síntese, o descoberto na conta de depósito à ordem à data de 1.11.2004, juros à taxa anual de 23%, acrescido do imposto de selo (4% sobre os juros devidos) até integral pagamento, que se computam em € 937,49 à data de 28.6.2005.

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 Os Réus foram regularmente citados a fls. 77 e 78, tendo apresentado oposição, na qual alegam, em síntese que, nada devem ao autor, nunca lhe pediram para lhes autorizar qualquer descoberto na sua conta nem o utilizaram. Solicitaram um empréstimo de 134.000€ ao autor para compra de casa na Marinha Grande, valor que aquele lhes creditou e em 1.4.2003 os réus liquidaram o empréstimo, ficando com um saldo credor na sua conta de 3.583,82€.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 183 a 187, na qual se procedeu ao saneamento dos autos, se fixou a matéria de facto dada como provada e respectiva motivação, se aplicou o direito e se decidiu pela improcedência da presente acção, com a consequente absolvição dos réus, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com a sentença proferida, interpôs recurso o autor, recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 196), concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

            I. Os dois contratos celebrados entre as partes oneraram os RR no pagamento de despesas devidas pela liquidação antecipada dos valores mutuados.

II. Ao assinarem estes dois documentos, os RR autorizaram o autor a cobrar na respectiva conta à ordem os valores correspondentes às despesas devidas.

III. Os RR são funcionários bancários e nessa qualidade têm um dever acrescido de conhecer as vicissitudes e as implicações, em termos de custos, de uma liquidação antecipada de contratos de mútuo.

IV. A liquidação dos mútuos concedidos ocorreu a 01/04/2003, tendo ficado na conta à ordem um remanescente de € 3.583,82.

V. No decurso dos dez dias seguintes, os RR utilizaram a maior parte desse remanescente, deixando a conta à ordem sem provisão suficiente para o pagamento das despesas devidas ao A.

VI. Após esta cobrança a conta ficou a descoberto e nunca mais foi regularizada.

VII. Os RR são devedores ao A. das quantias indicadas no requerimento de injunção.

Termina, pedindo seja dado provimento ao seu recurso, com a consequente revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que julgue a presente acção procedente.

           

            Contra-alegando, os recorridos, pugnam pela manutenção da decisão em análise, apoiando-se nos fundamentos na mesma invocados e porque o autor nunca lhes liquidou as quantias relativas a tais despesas, nem nuca lhes exigiu o respectivo pagamento, pelo que não pode, agora, exigir o respectivo pagamento.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.  

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se o autor tem direito a exigir dos réus as quantias peticionadas, relativas às despesas devidas pela liquidação antecipada dos valores mutuados.

            São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

            Os réus celebraram com o autor em 14.12.2001, um contrato de abertura de crédito, na agência da Marinha Grande, com a conta nº 91 5483454.

No dia 1 de Março de 2002, no cartório Notarial de Marinha Grande, “D....” como primeiro outorgante, os réus como segundo outorgantes e o autor como terceiro outorgante celebraram escritura de compra e venda e empréstimo com hipoteca.

Neste acto os réus confessaram-se devedores ao autor da importância de 79.807,66 €, que receberam a título de empréstimo por crédito na conta à ordem de que são titulares com o nº 91/5483454

Em 1 de Março de 2002 entre o autor e os réus foi celebrado contrato de empréstimo no montante de 49.879,79 €

Em 1.4.2003 os réus liquidaram o empréstimo através de duas transferências bancárias, uma de 78.369,14 € e outra de 48.981,39 €, ficando um saldo credor na conta de 3.583,82€.

                                                            *

Não se provaram quaisquer outros factos, com relevância para a presente decisão.

            Se o autor tem direito a exigir dos réus as quantias peticionadas, relativas às despesas devidas pela liquidação antecipada dos valores mutuados.

            Alega o recorrente que assim é porque, nos termos contratuais, tais despesas são devidas, o que os réus bem sabiam, não só por isso constar do contrato, bem como, também por, posteriormente, terem sido avisados pelo A.

Contrapõem os réus que não obstante a obrigação do pagamento de tais despesas resultar do contrato que assinaram, o facto é que o autor nunca lhes entregou qualquer nota discriminativa e justificativa das despesas agora peticionadas, ou seja, nunca as liquidou, pelo que, agora, não terá direito a havê-las à sua custa.

Efectivamente conforme cláusulas 14.ª e 11.ª, dos contratos em causa (cf. fl.s 144 e 145 e 152 dos autos, respectivamente) convencionou-se que ficavam por conta dos mutuários, ali segundos outorgantes, todas as despesas a efectuar para garantia e cobrança do reembolso de cada um de tais empréstimos, nomeadamente as do contrato respectivo, do seu registo e distrate e as de qualquer avaliação que o A... mande realizar ao bem hipotecado, ficando o A... autorizado a debitar na conta dos réus (ali melhor identificada), quaisquer despesas relativas ao mesmo e a cujo reembolso tenha direito.

As partes gozam de liberdade para fixar o conteúdo dos contratos que celebram (artigo 405.º, n.º 1 CC) mas, fixados os seus termos, em tais condições, devem-nos cumprir pontualmente – cf. artigo 406.º, n.º 1 do CC.

Tais despesas não foram pagas, dado que em face da matéria assente, os réus apenas liquidaram as quantias referentes aos empréstimos contraídos perante o autor, ficando, na conta em causa, após a liquidação de tais empréstimos, em 01 de Abril de 2003, a quantia de 3.583,00 € e conforme análise do respectivo extracto de conta corrente, em 10 de Abril desse ano, a referida conta já dispunha de um saldo equivalente à quantia de 281,63 € e a partir daí sempre com saldo negativo.

Ou seja, tal como os próprios réus admitem, as quantias ora peticionadas não foram pagas.

Resta, agora, em face da materialidade fáctica dada por assente, averiguar das consequências daí decorrentes.

É indubitável que tratando-se como se trata, do direito a que se arroga o autor, a este incumbe a demonstração dos respectivos pressupostos – cf. artigo 342.º, n.º 1 do CC.

Ora, o autor não provou que, aquando da realização da escritura, tenha exibido aos réus os documentos de fl.s 129 e 130 (quantificação/liquidação dos montantes assumidos pelos réus em face da celebração dos referidos contratos de mútuo, nos quais se discriminam as quantias em dívida relativas à penalização por liquidação antecipada e demais despesas ora peticionadas).

De igual forma, contrariamente ao que, agora, alega o autor, ora recorrente, não se provou que, em qualquer outro momento, este tenha informado os réus de qual o quantitativo exacto de tais despesas.

Isto é, os réus nunca souberam quanto deviam ao autor, em virtude do pagamento antecipado dos mútuos que contraíram perante o autor.

Esta falta de liquidação/quantificação era essencial para o cálculo das quantias que este poderia exigir dos réus, as quais, como referido, nos termos contratuais, são da responsabilidade destes e sobre os quais incumbia a obrigação de provisionarem a conta em moldes de o autor as cobrar, o que não aconteceu.

A não demonstração da liquidação das quantias em dívida, dado que se trata de factos constitutivos do direito do autor, a nível de decisão, tem de lhe ser desfavorável – cf. artigo 342.º, n.º 1, do CC, o que acarreta a improcedência da acção, dado que se desconhece qual a quantia efectivamente em dívida, em face dos factos dados por assentes e não impugnados pelas partes.

Sem se saber quanto devem os réus, não pode a pretensão do autor obter provimento.

Isto sem olvidar que, nos termos do disposto no artigo 762.º, n.º 2 do CC:

“No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.”

E se é certo que é ao devedor que incumbe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – cf. artigo 799.º, n.º 1, do CC, no caso em apreço, os réus não podem ser responsabilizados pelo facto de em 10 de Abril de 2003, não disporem na sua conta da quantia suficiente para o autor cobrar as quantias a que se arroga.

Efectivamente, com respeito pelos ditames da boa fé, impunha-se-lhe que indicasse aos réus qual a quantia referente a tal penalização, bem como o dia, ainda que aproximado, da sua cobrança.

Se lhes indicou quais as quantias para estes, por antecipação, poderem liquidar os empréstimos, por maioria de razão, lhes deveria quantificar as demais quantias em dívida, uma vez que as mesmas nunca lhes haviam sido discriminadas, nem delas lhes deu conhecimento.

Em suma, os réus precisavam de saber quanto deviam (até porque tinham o direito de sindicar as quantias apresentadas) e quando as deveriam liquidar, não se lhes podendo exigir que, indefinidamente, mantivessem a conta provisionada, tanto mais que já haviam liquidado os empréstimos contraídos perante o autor.

Assim não procedendo, o banco autor não procedeu de acordo com os ditames da boa fé, nos assinalados termos.

Mais, esta sua atitude, fá-lo incorrer em mora, nos termos do disposto no artigo 813.º, in fine do CC, de acordo com o qual:

“O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, … não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.”

Como o referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Volume II, 2.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1981, a pág. 76. “… em relação às obrigações de conteúdo positivo, o credor tem sempre de cooperar, quando mais não seja para receber ou aceitar a prestação. Ora, há mora do credor, se ele não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação.”.

Ali acrescentando que: “… quando a lei fala na falta dos actos necessários ao cumprimento da obrigação, se quer apenas referir àqueles cuja prática incumbe ao credor – não, positivamente, àqueles que o obrigado deva praticar.”.

Ora, um dos actos que incumbia ao autor, na qualidade de credor, era, fora de dúvidas, o de informar os réus qual a quantia em dívida, o que não fez.

Em segundo lugar, pensamos que, por se tratar de quantia ilíquida, deveria, ainda informá-los da data, pelo menos, aproximada, da respectiva cobrança.

Não o fazendo, não pode exigir dos réus o respectivo pagamento, dado o desconhecimento destes acerca do quantitativo das suas responsabilidades e, assim, incorreu em mora.

Também o STJ, considerou existir mora do credor, em caso em que este não entregou os documentos necessários à efectivação da liquidação de juros – cf. Acórdão do STJ, de 23/09/2004, Processo 04B2271, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.

As consequências da mora do credor, acham-se previstas nos artigos 814.º a 816.º do CC e embora se mantenha o vínculo obrigacional do devedor perante o credor, nos moldes aí previstos, têm em vista não agravar a sua responsabilidade perante o credor, designadamente, quanto a juros e risco da impossibilidade superveniente da prestação.

Daqui decorre, pois que, embora se mantenha a obrigação dos réus em satisfazerem as obrigações contratualmente assumidas, nas quais se inclui a obrigação do pagamento das quantias ora, em abstracto, peticionadas, o certo é que, por falta de liquidação, nesta acção, o autor, nos termos expostos, não pode ver satisfeita a sua pretensão.

Em consequência do que, embora com diferente fundamentação, tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:       

            Julgar improcedente a apelação deduzida, em função do que se mantém a decisão recorrida.

            Custas pelo apelante.