Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3410/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CRÉDITO
COMERCIANTE
Data do Acordão: 02/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 317.º AL. B) DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O crédito de comerciante, pela venda de materiais de construção a comerciante ou industrial, não prescreve no prazo de dois nos termos do artigo 317.º al. b) do Código Civil, quando se destinam às instalações comerciais ou industriais do comprador.
Decisão Texto Integral: 5

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demandou, na comarca da Guarda, “B...”, com sede na Guarda, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 13.022,13 € e respectivos juros, por lhe ter fornecido artigos do seu comércio, que não pagou.
A ré aceita os factos referentes aos fornecimentos, mas alega que pagou e invoca a prescrição presuntiva do artigo 317.º, al. b) do Código Civil.
O autor respondeu e, no saneador, foi julgada procedente a excepção da prescrição e a ré absolvida do pedido, não sem que antes tivesse sido considerada, a requerimento da ré, a inadmissibilidade da alteração da causa de pedir, no articulado de resposta.

2. O autor não se conforma e apela da decisão, concluindo:
1ª. Na Resposta o A. não alterou a causa de pedir limitando-se a alegar factos e circunstâncias factuais tendentes a demonstrar que a Ré, ao contrário do que alegou, não pagou o preço das mercadorias que o A. lhe vendeu.
2ª. Os fornecimentos de areia, brita, blocos de cimento, vigas e outros materiais destinados à construção e ampliação de edificações nas quais a Ré exerce a sua actividade comercial e/ou industrial de venda de lubrificantes, combustíveis, pneus, peças, estação de serviço e manutenção de automóveis, têm de se considerar como fornecimentos feitos a comerciante e/ou industrial e destinados ao exercício do comércio e/ou industria da Ré.
3ª. A prova dos factos integrantes da situação referida no ponto anterior faz afastar a aplicação do artigo 317.º b) do C.C., caso em que não se verificará a prescrição invoca da pela Ré.
4ª. Assim, o actual estado do processo, à data da prolação da douta Sentença recorrida, não permitia ao Tribunal que tivesse já conhecido da prescrição invocada pela Ré, antes exigia a prossecução dos autos em ordem à realização de Audiência de Julgamento para discussão daquela factualidade e, em face da prova/não prova da mesma, então sim o Tribunal conhecer nesse momento da excepção invocada.
5ª. Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” violou ou fez errada interpretação ao disposto nos artigos 317.º b) do C.C. e 510.º n.° 1 b) do C.P.C. (à contrário) já que deveria ter aplicado tais artigos no sentido da prossecução dos autos com elaboração da Base Instrutória e Factos Assentes com vista à realização de Audiência de Julgamento.
6ª. Deve ser a douta sentença recorrida ser substituída por decisão que ordene a prossecução dos autos com vista à realização de Audiência de Julgamento,

3. A ré contra-alegou no sentido da confirmação do julgado. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Devem ser considerados assentes os seguintes factos:
- O autor é um empresário em nome individual que se dedica, com carácter habitual e fins lucrativos, à compra e venda de materiais de construção;
- No exercício dessa actividade vendeu à ré as mercadorias referidas na petição inicial, designadamente nos pontos 4.º a 29.º, pelo montante de 13.022,13 €;
- A ré aplicou esses materiais “em obra levada a efeito em suas instalações” (cfr. ponto 4.º da contestação)
- A última venda foi efectuada em Janeiro de 2000;
- A acção entrou em 13 de Novembro de 2003.

4. A apelação, cujo âmbito se delimita pelas conclusões da respectiva alegação, coloca duas questões: i) a da inadmissibilidade da alteração da causa de pedir; ii) e a da prescrição presuntiva.
Sobre a primeira foi entendido que o autor, na resposta, converteu a causa de pedir inicial (compra e venda) em contrato de conta corrente e, considerando a alteração inadmissível, o sr. juiz indeferiu-a. Sendo assim, mantém-se a causa de pedir invocada na petição inicial. O autor defende que não pretendeu, na resposta, alterar a causa de pedir e que esta continua a ser o contrato de venda.
Ainda que se nos afigure que tem razão, dispensamo-nos de tecer quaisquer considerações, porque em nada vinham alterar a situação. Trata-se, para já, em nosso entender, de uma questão irrelevante.
O cerne da questão, neste momento, é o seguinte: o autor diz que vendeu à ré materiais de construção para esta aplicar nas suas instalações comerciais (ou industriais). A ré reconhece que comprou esses materiais e diz que os pagou. Só que, em vez de provar que pagou, invocou a prescrição presuntiva que, como muito bem se diz na sentença recorrida, apenas a dispensa de fazer essa prova. Logo, se não houver prescrição, a ré não estará dispensada de fazer a prova de que pagou.
Pois bem, o artigo 317.º, al. b) do Código Civil diz que prescrevem no prazo de dois anos “os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor”.
Prescrevem, então, no prazo de dois anos:
a) os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante;
b) os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem seja comerciante e os não destine ao seu comércio.
c) os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.

É ponto assente que o industrial é aqui equiparado ao comerciante ( cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 285), pelo que não prescrevem em dois anos os créditos de comerciante pela venda de produtos do seu comércio a quem seja industrial e os destine à sua indústria e (ou) comércio.
A nossa questão está então só em saber se os materiais de construção vendidos à ré, para aplicar nas suas instalações, tiveram um destino excluído da sua actividade industrial ou comercial.
Como é sabido, a razão de ser da prescrição presuntiva reside no facto de se tratar de créditos normalmente exigidos a curto prazo e prontamente satisfeitos pelo devedor, que muitas vezes nem sequer exige recibo, ou não o guarda. É normal o consumidor comum, não comerciante, não ter um arquivo para este tipo de documentos quando relacionados com a aquisição de objectos do consumo quotidiano. Já não é normal que o comerciante não faça contas a tudo o que se relacione com a sua actividade comercial e nessa medida não tenha as suas pastas onde arquiva tudo o que tem de entrar nas suas contas, para apurar o lucro, que é, ao fim e ao cabo, tudo o que daí retira. Já se compreenderá que o não faça em relação aos consumos pessoais.
E é aqui que está diferença. A prescrição presuntiva de curto prazo protege o consumidor comum. A sua inaplicabilidade entre comerciantes protege o seu comércio. Sendo esta a ideia base, então há-de ter-se em conta tudo o que se prende com a actividade comercial do comerciante; ou seja, não só a aquisição de produtos para revenda, ou transformação e venda, no âmbito da sua actividade, mas para tudo o que com ela esteja intimamente conexo.
Não se vê por que razão se há-de fazer uma interpretação restritiva da lei de modo a só incluir o débito do comerciante pela aquisição de produtos que destina a revenda e não já os que destina ao suporte dessa mesma actividade e sem os quais ela não seria possível, designadamente as instalações, máquinas, material de escritório, viaturas, etc. Comprar um veículo comercial para o exercício do comércio não é o mesmo que comprar um automóvel para uso pessoal e familiar. Daí a diferença. Ao revendedor de combustíveis não só não pode assistir o direito do consumidor comum invocar a prescrição presuntiva de curto prazo na compra de combustíveis para revenda, como na compra de tudo o que esteja exclusivamente relacionado com essa actividade
Por conseguinte, o crédito de comerciante, pela venda de materiais de construção a comerciante ou industrial, não prescreve no prazo de dois nos termos do artigo 317.º al. b) do Código Civil, quando se destinam às instalações comerciais ou industriais do comprador.
Logo, não há prescrição presuntiva no caso em apreço. O que acontece é que a ré confessa que o autor lhe vendeu aqueles materiais e que os pagou. Logo, terá que provar o pagamento e a acção deve prosseguir para que o possa fazer.

5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que se revoga a sentença recorrida, para que a acção prossiga com a selecção dos factos assentes e os que devem constituir a base instrutória e termos posteriores.
Custas a final, pelo vencido.
Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros