Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/06.4TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 329º, 330º Nº 1, 332º Nº 1 E 337º DO CPC
Sumário: Numa acção de responsabilidade civil extracon­tratual cujo processo corre termos entre dois particulares, a intervenção acessória de ente público provocada pelo réu com base em eventual direito de regresso não interfere na competência material do tribunal judicial.
Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I- Relatório:

A... e mulher intentaram aos 21-12-2005 a presente acção sumária contra B... , reivindicando determinado prédio com base na usucapião e pedindo determinada indemnização (reconstituição natu­ral) pelos danos que o réu lhes causou ao ter realizado ilicitamente obras de alar­gamento de um caminho.
Na contestação, o réu alegou que em 1995, no exercício da sua actividade profissional, executou trabalhos de conservação e melhoramento do caminho, mas fê-los sob solicitação e por conta do Município da D... e em conformidade com as instruções dadas pelo Presidente da Junta de Freguesia de E... , C... . Alegando que, a proceder a acção, terá direito de regresso contra o Município e a Freguesia, pediu o chamamento destes como assistentes, ao abrigo do disposto no art. 330º nº 1 do CPC.
Os AA. nada opuseram e tais terceiros foram chamados ao abrigo desse preceito.
No seu articulado, o Município e a Freguesia chamados deduziram a excep­ção de incompetência material do tribunal, com fundamento no disposto no art. 4º nº 1 al. g) da Lei nº 13/02 de 19-2, na redacção dada pela Lei nº 107-D/03 de 31-12. Acrescentaram que C... era Presidente da Junta à data dos factos e agiu com diligência e zelo manifestamente inferiores ao que estava obrigado em razão do cargo, praticando culposamente actos ilícitos no exercício das suas fun­ções ou por causa delas, pelo que os intervenientes, se condenados, terão direito de regresso contra aquele, nos termos dos art. 2º nº 2 do DL nº 48051 de 21-11-67 e 96º nº 2 e 97º nº 2 da Lei nº 169/99 de 18-9. Concluíram pedindo:
1º A sua absolvição da instância pela invocada incompetência material e, subsidiariamente:
2º O chamamento de C... nos termos do art. 330º do CPC.
3º A improcedência da acção.
No momento do saneador, foi julgada improcedente a excepção de incom­petência material do tribunal, foram redigidos factos assentes e elaborada a base instrutória ( 1 ).
Dessa decisão de improcedência recorre o Município.
Não houve contra-alegação.
Foi tabelarmente mantida a decisão impugnada.
Correram os vistos legais.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II- Fundamentos:

A questão a reapreciar consiste em saber se, como pretende o Município, o tribunal judicial é materialmente incompetente, por a competência material estar legalmente deferida aos tribunais administrativos.
Mas a questão concreta ainda não está correctamente enunciada. E a enunciação correcta da questão concreta é condição indispensável para uma solu­ção correcta e minimamente aceitável. Caracterizada a causa, é mister perguntar: materialmente (in)competente em atenção a quê, ou sob que critério. Depois, é mister reverter ao caso concreto.
É sabido que a competência material dos tribunais judiciais é residual, de modo que esta ordem de tribunais só é competente em razão da matéria da causa se, no caso, tal competência não estiver legalmente deferida a outra ordem jurisdi­cional (cfr. art. 66º do CPC).
Não importa discorrermos acerca dos critérios que doutrinariamente são apontados como possíveis para atribuição da competência material aos tribunais de jurisdição administrativa: a qualidade dos sujeitos, a caracterização do acto em causa como de gestão pública ou de gestão privada, etc. A lei actual indica-nos o critério a apli­car.
A causa caracteriza-se sumariamente, como consta do relatório: particulares demandam outro particular, reivindicando determinado prédio com base na usuca­pião e pedindo determinada indemnização (reconstituição natu­ral) pelos danos que o réu lhes causou ao ter realizado ilicitamente obras de alar­gamento de um cami­nho; o réu provocou a intervenção de pessoas colectivas de direito público, como suas auxiliares, para eventual acção de regresso.

Preceitua o art. 4º nº 1 al. g) da Lei nº 13/02 de 19-2, na redacção dada pela Lei nº 107-D/03 de 31-12 (vigente desde 1-1-2004):
«Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da fun­ção legislativa».
O preceito combina dois critérios cumulativos: o da qualidade dos sujeitos e o da matéria da causa. Pelo primeiro, o sujeito a quem é imputada a responsabili­dade civil há-de ser uma pes­soa colectiva de direito público. Pelo segundo, há-de tratar-se de matéria de responsabilidade civil extracontratual.
Com efeito, num litígio, numa causa, só se questiona a responsabilidade civil extracon­tratual de pes­soa colectiva de direito público quando o demandante (autor ou reconvinte) formula o pedido com base na responsabilidade civil extra­contratual que imputa ao demandado.
A questão a resolver consiste pois em saber se na causa (nesta acção sumária) se questiona a responsabilidade civil extracon­tratual de pes­soa colectiva de direito público.
A resposta só pode ser negativa. Desde logo, o litígio que o tribunal tem de dirimir através do presente processo corre apenas entre dois particulares, pois que inexiste qualquer pedido do autor formulado contra qualquer pes­soa colectiva de direito público, o Município ou a Freguesia. Por outro lado, ao tribunal não compete decidir da procedência ou improcedência do pedido de indemnização com base em responsabilidade civil extracon­tratual de pes­soa colectiva de direito público, mas sim com base em responsabilidade civil extracon­tratual de um particular.
É certo que na causa, acessoriamente, se pôs à discussão também uma relação conexa susceptível de basear um outro pedido de indemnização.
Mas isso acessoriamente. E um outro pedido de indemnização, sim, mas a formular em acção de regresso a intentar futura e eventualmente (secundum eventum litis), isto é, apenas para a hipótese de a presente acção posta por Leo­nido vir a proce­der contra B..... Quanto a essa relação conexa, na presente acção o tribunal não tem de se pronunciar sobre qualquer pedido de indemnização nela baseado, de modo a reconhecer ou não reconhecer um crédito indemnizatório do ora réu sobre o Município ou a Freguesia e condenar ou absolver o Município ou a Freguesia.
Ou seja, o tribunal judicial não irá, para efeitos decisórios, “apreciar o litígio” entre o réu e o Municí­pio ou a Freguesia, logo a sua competência material não lhe está subtraída pelo dito preceito do art. 4º nº 1 al. g).
Objectar-se-á: foram formulados quesitos na base instrutória sobre a matéria alegada pelo réu segundo a qual fez trabalhos de conservação e melhoramento do caminho, mas fê-los sob solicitação e por conta do Município da D.... e em conformidade com as instruções dadas pelo Presidente da Junta de Freguesia de E...., C... . Logo, o tribunal irá conhecer dessa matéria.
A refutação impõe-se. O tribunal judicial não é solicitado a conhecer decisoriamente, na presente acção, de qualquer pedido indemnizatório do ora réu contra o Município ou a Freguesia. Nem tal pedido foi formulado.
Aquela formulação de quesitos é correcta e, face ao disposto no art. 332º nº 4 do CPC, a sentença constituirá caso julgado quanto ao chamado relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do réu, por este invocável em ulterior acção de indemnização. Simplesmente, nesta acção, trata-se de matéria de defesa do réu, e nesta acção os chamados, eventuais obrigados de regresso, apenas intervêm acessoriamente, isto é, como auxiliares do réu na sua defesa (art. 330º nº 1, 332º nº 1 e 337º do CPC).
Esta não é acção em que tenha sido actuado o direito de regresso nos termos do art. 329º do CPC (que respeitasse à intervenção principal de condevedores solidários), de modo que o tribunal pudesse conhecer decisoriamente desse direito nesta mesma acção. Trata-se antes de prevenir eventual direito de regresso, contra entidades terceiras, que nos termos do disposto nos art. 330º ss do CPC (respeitantes à intervenção acessória) são chamadas a auxiliar o réu na presente defesa como eventuais obrigados a indemnizar o ora réu em regresso em futura acção.
Nessa futura acção de regresso, se a ela houver lugar, é que teria ou terá cabimento a consideração da competência material a que se refere o citado art. 4º nº 1 al. g).
Este preceito legal não tem aqui aplicação.
O tribunal judicial é materialmente competente, como a 1ª instância decidiu.

III- Decisão:
Pelo exposto, nega-se o provimento ao agravo, confirmando-se a decisão impugnada.
Custas pelo agravante.
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(1) Não se mostra nestes autos em separado ter havido pronúncia sobre a pretensão de intervenção acessória sucessiva, o que, a ser assim, se deverá aparentemente à circunstância de essa pretensão ter sido formulada subsidiariamente. Esse ponto, porém, exorbita do âmbito do recurso.