Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
552/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
REQUISITO DA VIOLÊNCIA
CONVOLAÇÃO DA PROVIDÊNCIA REQUERIDA PELO TRIBUNAL
Data do Acordão: 04/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1261º, Nº 2, E 1279º DO C. CIV.; 392º, Nº 3, E 393 DO CPC .
Sumário: I – Não está o tribunal vinculado à providência cautelar concretamente requerida, podendo aplicar a que mais se adequar à situação que carece de tutela e desde que os factos alegados possibilitem a convolação .
II - O esbulho consiste na privação total ou parcial, contra a vontade do possuidor, do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar.

III – É maioritária a jurisprudência que sustenta que para efeitos de concessão do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, basta que tenha havido violência sobre as coisas, não sendo necessário que a violência se tenha exercido sobre as pessoas, nem que o esbulhado tenha de estar presente no momento da prática do esbulho .

IV – O acto de obstrução de uma passagem por caminho onerado com uma servidão de passagem aparente, através da colocação de um portão, constitui um meio de realização de esbulho violento, para efeitos dos artºs 1279º do C. Civ. e 393º do CPC, como privação da possibilidade de os requerentes utilizarem o caminho e continuarem a sua fruição, pelo que pode ser decretada a restituição provisória de posse em tal situação .

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A..., B..., C... e D..., requereram providência cautelar não especificada contra E... e F..., pedindo que estes sejam intimados a absterem-se de qualquer acto que impeça a passagem dos requerentes por um caminho que atravessa um prédio dos requeridos e no qual os requerentes invocam um direito real de passagem.
Alegam que os requeridos obstaram ao seu uso de tal caminho, tendo vedado o seu terreno com um muro e um portão, que mantêm fechado.
Citados, deduziram os requeridos oposição na qual impugnaram os factos alegados constitutivos do direito de passagem, afirmando que os requerentes têm outros acessos ao seu terreno, e questionando as consequências jurídicas atribuídas à conduta dos requeridos, no sentido de que estando a lesão ao direito que estes invocam já totalmente consumada, não se pode falar em justo receio de lesão futura do seu direito ou de agravamento de lesão já existente, pelo que não pode ser decretada qualquer providência cautelar.
I.2- Inquiridas as testemunhas arroladas pelos requerentes e efectuada inspecção judicial ao local, foi fixada a matéria de facto provada resultante da produção da globalidade da prova, a qual não foi objecto de reclamação.
Por último proferiu-se decisão, nos termos da qual e com fundamento no disposto nos arts.392º/3 e 393º do CPC, se ordenou a restituição à posse dos requeridos da faixa de terreno referida no ponto 7 dos factos provados e se condenou os requeridos a absterem-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso dos requerentes ao prédio referido em 1 através da mesma faixa de terreno, nomeadamente facultando aos mesmos as chaves do portão que erigiram sobre o caminho em causa ou deixando o mesmo destrancado.
Não conformados, dela agravaram os requeridos, em cujas alegações resumidamente concluem:
1ª- Não está verificado o periculum in mora, só se encontrando assente a impossibilidade de acesso dos requerentes, na qualidade de titulares do prédio dominante, ao alegado caminho de servidão, e não que aquele deixou de afectar as suas intrínsecas vantagens a estes como consequência dessa impossibilidade;
2ª- Assim, não se vislumbram quais os prejuízos que a demora na composição definitiva possa acarretar, até porque se encontra assente que o prédio dominante continua a ter acesso e é efectivamente acedido;
3ª- O tribunal decidiu-se pela aplicação do art.392º/3 do C.P.C. e, em consequência ordenou a restituição provisória da posse, quando, tendo sido alegados factos que consubstanciam a posse e o esbulho, calcorreado o articulado inicial não se nos deparam factos que materializem a violência;
4ª- Ao considerar verificada a violência no esbulho, o tribunal recorrido sustenta a decisão com base em factos que nos revelam ter sido a violência, a ter existido, exercida apenas sobre a coisa, o que nos permite concluir que tal violência representa em si mesma o próprio esbulho e não qualquer forma de coacção sobre os requerentes;
5ª- A presença dos requerentes, aquando da colocação do portão no acesso ao caminho de servidão, não está demonstrada, e ainda que tivesse sido violenta a colocação do portão, a mesma teria de imediato cessado com tal colocação, pelo que só poderia configurar uma forma de violência sobre a própria coisa.

I.3- Os requerentes contra-alegaram pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
Na 1ª instância foram considerados assentes os seguintes factos, não postos em causa pelos recorrentes:
1-Encontra-se inscrito na matriz predial da freguesia de Carvalhal Redondo, sob o art.3694, o seguinte prédio: terreno com 8 oliveiras, vinho e mato, sito ao Aboleiro, com área de 550 m2, a confrontar de norte com Arnaldo Sampaio, nascente com José P. da Silva, sul com José Ferreiro e poente com Delfim Simões;
2-Tal prédio tem vindo a ser utilizado há pelo menos 25 anos por Cidália Reis e Delfim Simões – pais dos requerentes C... e B... – e, após a sua morte, pelos primeiros requerentes;
3-Que o têm usado à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja;
4-Cultivando-o, lavrando-o, tratando das árvores e videiras que nele existem e colhendo os frutos dessa actividade;
5-Na convicção de serem os únicos e exclusivos donos do prédio;
6-Os requeridos são vizinhos daquele prédio, pois que proprietários do seguinte prédio rústico, assim identificado na matriz: pinhal, terra de cultura com 10 oliveiras e vinha, que confronta de norte com José da Silva e outro, nascente António Costa, sul António S. Coimbrãs e poente David Simões, e inscrito na matriz sob o nº3697 da freguesia de Carvalhal Redondo;
7-O acesso ao prédio dos requerentes foi sempre, desde há mais de 20, 30 e 50 anos, feito a pé, de carro, de carroça e de tractor por um caminho que se inicia no caminho do Aboleiro, segue pelo prédio referido em 6, ao longo da extrema nordeste do mesmo prédio, com o leito de 2 metros;
8-Requerentes e seus antecessores têm utilizado o mencionado caminho para acederem ao seu prédio;
9-E esse acesso foi sempre feito de pé e de carroça de bois, sem a oposição de ninguém;
10-Ostensivamente e publicamente, pois a vista de toda a gente;
11-Sempre o usando na convicção de ser esse um seu direito;
12-Sempre convictos de exercerem um direito próprio, e pois, não lesando terceiros;
13-Caminho que sempre, ao longo de várias dezenas de anos, se apresentou com sinais visíveis, permanentes e inequívocos, como sejam a terra batida, bem trilhada, e sem vegetação;
14-Os requeridos decidiram que no caminho referido não podem os requerentes passar de pé e de carro;
15-Nos fins de 2004 início de 2005, os requeridos resolveram vedar com um muro o seu prédio, tendo colocado no caminho de servidão um portão, que trancaram obstruindo-o, e impedindo o trânsito de pessoas e veículos pelo mesmo;
16-Desde a construção referida em 15 que, para acederem ao prédio referido em 1, os requerentes tem de passar por outro prédio rústico pertença dos primeiros requerentes.
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II.2 - de direito
Conforme resulta do que vem relatado, em face da pretensão material solicitada – absterem-se os requeridos de praticar actos que impeçam ou dificultem o livre acesso pelo caminho que descrevem, a pé, de carro, carroça e tractor para o seu prédio, retirando nomeadamente o portão - os requerentes lançaram mão do procedimento cautelar comum previsto no art.381º/C.P.C. (como os demais que sem origem se referirão). O tribunal recorrido, usando dos poderes conferidos pelo art.392º/3, decretou a providência especificada da restituição provisória de posse, por lhe parecer, em face da prova alegada e sumariamente provada, ser esse o procedimento adequado.
Reagindo a esta convolação, os agravantes argumentam em primeira linha ser exigível a demonstração do requisito do periculum in mora, que não resultaria da factualidade dada como provada.
Diz o nº3 do citado art.381º que as providências referidas no nº1 não são aplicáveis quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por algumas providências tipificadas na secção seguinte (arts.393º a 427º). Estabelece-se aí o princípio da especialidade na aplicação de cada uma das providências específicas, donde deriva que o recurso a procedimento cautelar não especificado só será legítimo se para a medida pretendida não houver um procedimento específico.
No caso em apreço e como bem entendeu a 1ª instância, a restituição provisória de posse é a providência específica no âmbito da qual se deve inserir a pretensão cautelar deduzida. Na verdade, analisando os factos articulados que fundamentam o pedido e a causa de pedir, é patente que os requerentes querem que se lhes devolva a posse da alegada servidão legal de passagem aparente constituída por usucapião e a onerar o prédio dos recorrentes, de que teriam sido por estes privados com a colocação de um portão.
Estabelece o art.1279º/C.C. que o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
A servidão é um direito real de gozo susceptível de posse (art.1543º/C.C.), gozando o seu titular de uma protecção jurídica que perdura enquanto a existência do seu direito não for posta em causa. Logo, é igualmente susceptível de fundamentar a providência cautelar de restituição provisória de posse prevista nos arts.393º a 395º, a qual constitui um meio de defesa da posse ao serviço do possuidor, contra actos de esbulho violento.
O esbulho consiste na privação total ou parcial, contra a vontade do possuidor, do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar.
Os recorrentes não questionam a invocada e indiciariamente provada posse exercida pelos requerentes sobre o caminho aludido em II.1 - 7 a 9. Igualmente não discutem a ocorrência do esbulho, uma vez que aceitam ter colocado um portão para impedir a passagem pelo referido caminho privando-o do exercício da fruição pelos requerentes e colocando-os em condições de não poderem continuar a fazê-lo. Questionam porém a qualificação deste esbulho como violento.
Vale tudo isto para dizer que os requerentes, para alcançarem a defesa da posse exercida sobre o caminho posto em causa com a conduta dos recorrentes, deveriam ter recorrido ao procedimento cautelar específico idóneo, ao invés do recurso ao procedimento cautelar comum de aplicação subsidiária.
Mas como atrás se disse, não está o tribunal vinculado à providência cautelar concretamente requerida, podendo aplicar a que mais se adequar à situação que carece de tutela e desde que os factos alegados possibilitem a convolação, como aqui acontece.
O que importa então apurar é se a matéria de facto sumariamente provada autoriza a conclusão de que o esbulho se possa caracterizar como violento, para ser decretada como foi, a restituição provisória de posse.
Na hipótese negativa, ou seja, apurada apenas a posse esbulhada mas sem violência, ponderar-se-á a substituição da decretada medida cautelar por outra não especificada (art.395º) caso se verifiquem os requisitos gerais do procedimento comum, designadamente o periculum in mora.
Consoante atrás se disse e resulta do disposto no art.1279º/C.C., o possuidor que deseje ser restituído provisoriamente à posse deve provar, além da posse e do esbulho, a violência.
A expressão «violência» aplica-se em geral a todo o acto de alguém realizado contra vontade efectiva ou presumida de outrem. [Cfr. Moitinho de Almeida, «Restituição de posse e ocupação de imóveis», pág.110]
A lei - art.1261º/2,C.C. – considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou de coacção moral nos termos do art.255º.
A coacção moral, na hipótese de esbulho, tem lugar, segundo o referido art.255º/2, quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação “pelo receio de um mal que (…) foi ilicitamente ameaçado (…)”.
A lei não define o conceito de «coacção física», que supõe completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada. [Cfr. P. Lima e A. Varela, «C.C. anotado», III, pág.20]
A jurisprudência tem-se dividido quanto à questão de saber se a violência que caracteriza o esbulho tem sempre de recair sobre pessoas, ou se pode, também, recair sobre coisas.
Julgamos ser maioritária a jurisprudência que sustenta que para efeitos de concessão do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, basta que tenha havido violência sobre as coisas, não sendo necessário que a violência se tenha exercido sobre as pessoas, nem que o esbulhado tenha de estar presente no momento da prática do esbulho. [entre outros, os Ac.STJ de 7.7.99, 25.11.98 e 10.7.97 in www.stj.pt, e de 28.5.98 (BMJ 477/506), Ac.RE de 12.3.98 (CJ II/98, 269), Ac.RL de 19.1.84 (CJ I/84-117), Ac.RE de 8.2.79 (CJ I/79-222), Ac.RL de 24.1.78 (CJ I/78-59). Na doutrina, cfr. A. Abrantes Geraldes, «Temas da reforma do processo civil», IV Vol., pág.42 e Moitinho de Almeida, ob.cit., pág.113.]
No caso vertente está indiciariamente provado que os ora recorrentes obstruíram a passagem pelo caminho onerado com a servidão de passagem aparente, através da colocação de um portão, colocando desse modo os requerentes e contra a vontade destes, numa situação de impossibilidade física de usar e fruir esse caminho para acederem ao seu prédio como até então faziam.
Assim, de acordo com a interpretação de que a violência pode ser exercida sobre as coisas, esse acto – colocação do portão - constituiu um meio de realização do próprio esbulho, como privação da possibilidade de os requerentes utilizarem o caminho e continuarem a sua fruição como vinham fazendo há longos anos.
Donde concluir-se que os recorrentes com o descrito comportamento praticaram esbulho violento para efeitos dos arts.1279º/C.C. e 393º, assim se verificando o requisito «violência» para ser decretada a restituição provisória de posse, determinando a desnecessidade de recorrer ao procedimento cautelar comum, e consequentemente à prova do receio da ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável, ou seja, a prova da existência do periculum in mora, pressuposto geral do procedimento comum.
A decisão recorrida não merece, pois, censura, com o que improcede o recurso.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão agravada.
Custas pelos agravantes.
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COIMBRA,