Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1478/07.7TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
SALÁRIOS A SEREM VENCIDOS PELOS VÍTIMA
CASO NÃO OCORRESSE A SUA MORTE
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 495º E 496º, NºS 2 E 3 DO CC
Sumário: I – Não existe fundamento legal para a fixação, num quadro de responsabilidade civil extra-contratual e no caso de morte da vítima, de uma indemnização respeitante a danos patrimoniais futuros (lucros cessantes) da própria vítima, traduzida na projecção do que esta auferiria a título de salários pelo seu trabalho, não fora a ocorrência do evento morte;

II – Com efeito, os artigos 495º e 496º, nºs 2 e 3 do CC sugerem fortemente uma vocação de resolver todos os problemas da indemnização por morte (os patrimoniais, no artigo 495º), sendo que a não consideração no âmbito destes dos salários “perdidos” pela vítima mortal, enquanto dano patrimonial desta, aponta no sentido da não consideração indemnizatória desse aspecto;

III – De qualquer forma, a hipotética consideração dos futuros rendimentos laborais do morto, enquanto dano patrimonial deste transmitido aos herdeiros, teria de ter em conta, nos termos do artigo 566º, nº 2 do CC, também os seus futuros gastos, subtraídos aos salários, sendo que só as futuras “poupanças” da vítima poderiam ser tidas em conta em sede indemnizatória, com toda a dificuldade e incerteza associada à prova desse elemento.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 12/06/2007[1], L… (A. e aqui Apelada) demandou o Fundo de Garantia Automóvel (R. e Apelado), invocando a ocorrência, em 19/09/2004, de um acidente de viação do qual resultou a morte do seu filho, S…, tendo tal evento gerador de responsabilidade civil extracontratual sido produzido por uma viatura desconhecida, que colheu a vítima e cujo condutor se colocou em fuga, impossibilitando assim a respectiva identificação e responsabilização.

            Em função disto formulou a A. contra o referido Fundo, ao abrigo do nº 8 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (então a lei aplicável), um pedido indemnizatório global de €172.817,00, sendo a parcela de €105.317,00 identificada como correspondente a danos patrimoniais[2] e a parcela de €67.500,00 como respeitante a danos não patrimoniais.

            1.1. O R. contestou a fls. 99/102 impugnando o pedido com base no desconhecimento das diversas incidências da situação ajuizada [valeu a este respeito o trecho final do nº 3 do artigo 490º do Código de Processo Civil (CPC)].

            1.2. A culminar o julgamento foi proferida a Sentença de fls. 412/449 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso – que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o R. Fundo de Garantia Automóvel a satisfazer à A. a quantia global de €76.900,00, sendo que esta corresponde à redução a metade do valor dos danos apurados (isto por atribuição ao lesante representado pelo Fundo R. de uma percentagem de culpa de apenas 50%) e, no que diz respeito a danos patrimoniais – os que estão em causa neste recurso –, atinge, sem a redução a metade, os valores de €65.000,00 (danos patrimoniais futuros da própria vítima), €20.000,00 (alimentos futuros da A.) e €1.500,00 (despesas de funeral).

            1.3. Inconformado com a fixação desta dimensão dos danos, reagiu o R. através do presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 462/465, rematando tal peça processual com as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]

            1.3.1. A A. respondeu ao recurso a fls. 469/470 pugnando pela confirmação do decidido.


II – Fundamentação

            2. O âmbito objectivo do recurso – de qualquer recurso – é definido (delimitado) pelas conclusões com as quais quem recorre remata a respectiva motivação (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC). Importa, assim, decidir as questões colocadas através dessas conclusões – e, bem assim, as questões pertinentes que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2 do CPC).

            Tendo presentes as conclusões acima transcritas, verificamos restringir-se o recurso à questão da entidade dos danos patrimoniais fixados na Sentença, defendendo o Apelante existir uma duplicação indemnizatória na consideração conjunta do valor atribuído à Apelada pela perda das contribuições periódicas que o filho lhe enviava para a Ucrânia (isto é, à projecção futura da perda dos alimentos que estas contribuições representavam para ela) e do valor, igualmente definido como dano patrimonial, que a Sentença identificou como correspondente à projecção futura das remunerações perdidas pela própria vítima mortal, enquanto dano da mesma vítima. Trata-se, pois, neste último aspecto, daquilo que a Sentença intitulou a fls. 436 como “lucros cessantes (ou danos patrimoniais futuros) relativos à vítima S…, quantificando-os em €32.500,00 (€65.000,00:2), e que cumulou com a indemnização, também respeitante a danos patrimoniais, relativa a “alimentos devidos à demandante” (fls. 440), quantificada esta última em €10.000,00 (€20.000,00:2).

            Para além deste aspecto (o que respeita à possibilidade de cumulação destas duas indemnizações), pretende o Apelante a redução do valor da subsistente indemnização correspondente aos danos patrimoniais.

            2.1. Restringindo-se a apelação aos dois fundamentos acabados de enunciar, pressupondo e aceitando o Apelante, como expressamente resulta da respectiva motivação, todos os factos fixados na primeira instância, consideram-se estes definitivamente assentes, aqui se transcrevendo o respectivo elenco retirado do texto da Sentença:
“[…]

            2.2. Refere-se esta dimensão do recurso, nos exactos termos em que o Apelante configura o problema, à possibilidade de cumulação das duas vertentes indemnizatórias respeitantes aos danos patrimoniais[3]: 1) o dano patrimonial respeitante à privação futura dos alimentos que à A. eram prestados pelo seu malogrado filho, indemnização esta fundada no nº 3 do artigo 495º do Código Civil (CC); 2) os chamados “lucros cessantes” correspondentes à cessação mortis causa – digamo-lo assim – da remuneração percebida pelo filho da A., vista a projecção futura desta cessação como um dano – ou seja, como a supressão de uma vantagem tutelada pelo Direito[4] – infligido ao próprio morto e que este transmitiria aos seus sucessores através das respectivas relações jurídicas de conteúdo patrimonial (artigo 2024º do CC).

            Para sermos analiticamente rigorosos na apreciação desta questão teremos de partir da explicitação que destas duas vertentes do dano patrimonial efectuou o Tribunal a quo. Vale a tal respeito o trecho da Sentença no qual este procedeu à diferenciação, no quadro da caracterização dos danos patrimoniais resultantes do evento, entre a cessação da prestação de natureza alimentícia à A. e a cessação da remuneração laboral prestada à própria vítima (não à A.), prestação esta descrita – e é essa a caracterização que inquestionavelmente efectua a Sentença – como dano próprio da vítima sucessoriamente transmitido à A. sua mãe[5].

            Existe na base desta diferenciação – e lembramos estar em causa a determinação das prestações indemnizatórias decorrentes da morte de S… a efectuar à mãe deste –, existe em tal diferenciação, dizíamos, o que consideramos ser um erro conceptual da Sentença, que, para além disso mesmo (de representar uma incorrecta caracterização de um dano passível de ressarcimento numa situação como esta), assenta numa visão muito discutível da caracterização pela A. no seu articulado inicial dos danos patrimoniais para os quais busca ressarcimento indemnizatório na presente acção.

            Efectivamente – e remetemos para a transcrição de alguns trechos da petição inicial incluída na nota 3, supra –, parece-nos incorrecta a caracterização do pedido formulado pela A. a título de danos patrimoniais resultantes da morte da vítima, como encerrando, cumulativamente, uma pretensão dirigida a suprimir o dano decorrente da cessação (para ela A.) da prestação de natureza alimentar que lhe era realizada pela vítima e aos afirmados “lucros cessantes” da própria vítima decorrentes do não percebimento das remunerações mensais que receberia, não fora a circunstância – e não vemos outra maneira de o dizer, seguindo o raciocínio da Sentença – de … ter morrido. Com efeito, não nos parece que a A./Apelada alguma vez tenha pedido nesta acção – não obstante parecer pretender agora, na resposta ao recurso, sugerir o contrário – prestações indemnizatórias a título de danos patrimoniais que não se referissem aos seus próprios danos patrimoniais resultantes da cessação do apoio patrimonial que lhe era prestado pelo filho através de remessas periódicas de dinheiro para a Ucrânia. Estamos convictos, por isso, que a Sentença, ao caracterizar como implicitamente contido no pedido (rectius, na caracterização do pedido feita pela A.) o valor que fixou em €65.000,00, reduzidos a metade (€32.500,00), valor que definiu como respeitante a lucros cessantes da própria vítima, estamos convictos, dizíamos, que a Sentença criou uma prestação indemnizatória que, para sermos rigorosos, não estava contida no pedido. Entendemos que a Sentença está a dar à A. o que não pode (o que não tem fundamento legal para dar) e, para além disso, pretende atribuir o que nem sequer foi pedido pela A ao Tribunal.

            Seja como for, podendo a questão ser encarada como de qualificação jurídica, desligada das asserções assumidas pelas partes, ou mesmo que a pretensão da A. se referisse, directa ou indirectamente, a este tal dano patrimonial da própria vítima, estaríamos perante uma dimensão indemnizatória que entendemos não ter fundamento algum – é, aliás, salvo erro, a primeira vez que a vemos atribuir como dano da própria vítima[6] –, no sentido em que ficciona esse elemento uma integração imediata, presume-se que no exacto momento da morte, no património da vítima de um crédito que só se concretizaria e venceria no futuro (os salários que a vítima receberia se tivesse ficado viva[7]), esquecendo, num quadro em que isso nos parece adquirir relevância, o termo da personalidade dessa mesma vítima (v. artigo 68º, nº 1 do CC), enquanto elemento determinante da impossibilidade de projecção no respectivo património de créditos de natureza pessoal a realizar, muito contingentemente, no futuro; créditos que pressupõem, no seu elemento identitário, que essa vítima esteja viva; créditos que, enfim, ficcionam, a par dessa (impossível) integração imediata no património de quem morre no momento da respectiva morte, a transmissão aos herdeiros, esquecendo que a sucessão, enquanto chamamento de determinadas pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida (artigo 2024º do CC), só opera relativamente a créditos efectivamente constituídos e integrados no património do de cuius ao tempo do seu decesso.

            E não tem qualquer sentido, neste caso, como pretende a Sentença, chamar à colação os argumentos normalmente esgrimidos a propósito da caracterização do chamado dano morte (da morte enquanto dano próprio de quem morre)[8], porque esse dano, entendido como dano de natureza não patrimonial da própria vítima, constitui-se aqui, foi autonomamente considerado pela Sentença como dano não patrimonial da própria vítima (foi quantificado em €50.000,00 e reduzido a metade)[9] e foi atribuído, como não poderia deixar de ser, à A., enquanto sucessora dessa vítima sua titular originária.

            O que se nos depara aqui, com a atribuição dos chamados lucros cessantes da vítima reportados ao não percebimento, por ela própria em função da sua morte, das remunerações que eventualmente venceria no futuro, foi a construção, numa base totalmente fictícia e inconsistente, de um dano patrimonial – que só pode corresponder ao reflexo do dano real no património do lesado – que, vistas as coisas como elas são, nos termos em que as podemos compreender e explicar racionalmente, se nos apresenta como uma construção metafísica, algo arbitrária, quanto àquilo que, na sua referenciação a quem morre no momento da própria morte, pode ser visto como traduzindo uma efectiva violação do seu próprio património.

Cremos ter aqui sentido a convocação da afirmação do Conselheiro Eduardo Arala Chaves, constante de um voto de vencido ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/1971 – e reconhecemos que o presente contexto não reproduz com exactidão o contexto original da afirmação –, de que seria “inadmissível reconhecer o nascimento do direito com o facto jurídico de que deriva, para o pretenso titular, a incapacidade para o adquirir”[10] e, acrescentamos nós, a própria impossibilidade desse direito de crédito adquirir uma existência referenciável a um património determinado.

Note-se a este respeito, não obstante tratar-se de um elemento meramente indicativo, que a Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio [que fixa “[…] os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III, do título II do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto” (artigo 1º, nº 1)], esta Portaria, dizíamos, ao definir os elementos indemnizatórios a considerar em caso de morte, indica os seguintes:

Artigo 2º
Danos indemnizáveis em caso de morte
São indemnizáveis, em caso de morte:
a) A violação do direito à vida e os danos morais dela decorrentes, nos termos do artigo 496.º do Código Civil;
b) Os danos patrimoniais futuros daqueles que, nos termos do Código Civil, podiam exigir alimentos à vítima, ou aqueles a quem esta os prestava no cumprimento de uma obrigação natural;
c) As perdas salariais da vítima decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data do óbito;
d) As despesas feitas para assistir e tratar a vítima bem como as de funeral, luto ou transladação, contra a apresentação dos originais dos comprovativos.
            [sublinhado aqui acrescentado]

            Vale esta indicação[11], particularmente tendo presente o teor da alínea c) sublinhada, como constatação daquilo que abrange na nossa ordem jurídica (usualmente, pelo menos) a indemnização, em sede de imputação delitual por morte, abrangendo esta, quanto a salários da vítima – e tratam-se de danos patrimoniais desta – as perdas salariais ocorridas durante a vida, no período de doença do qual vem a resultar a morte, não se considerando qualquer dano patrimonial futuro da própria vítima (no sentido de projectado ao período depois da morte) referente a salários.

            Tratando-se com a referência à Portaria nº 377/2008, como dissemos, de fornecer uma simples indicação de abrangência (de estabelecer um elemento interpretativo), entendemos constituir ela uma indicação muito significativa e que, por isso, deve aqui ser considerada com vocação de generalidade. De facto, aquilo que a Portaria caracteriza como tipos de indemnização devidos, face à morte da vítima de acidente, esgotam, quer-nos parecer, as realidades indemnizatórias consideradas na nossa lei substantiva. Com efeito, os artigos 495º e 496º, nºs 2 e 3 do CC parecem vocacionados a resolver todos os problemas da indemnização por morte (os patrimoniais, no artigo 495º), de modo que a “invenção” de um tipo de dano aqui não considerado parecerá sempre muito improvável (note-se, por exemplo, que, apesar da epígrafe, o artigo 495º, nº 1 também tem em conta despesas do próprio morto).

            Por outro lado – e parece-nos ser o essencial do problema colocado pela decisão apelada –, a consideração dos futuros rendimentos do morto teria forçosamente de ter em conta (pelo artigo 566º, nº 2 do CC) também os seus futuros gastos (roupa, alimentação, habitação e demais despesas passíveis de antecipação, para não falar do próprio dano – este talvez não patrimonial – que consistiria em trabalhar para auferir tais rendimentos). Ora, nesta linha de raciocínio, só as putativas futuras “poupanças” da vítima poderiam, em rigor, ser indemnizadas: mas se considerarmos o próprio futuro trabalho como valor a compensar, quer-nos parecer que nem isso!

            E a isto acresce, dentro da lógica indemnizatória algo paradoxal assumida pela Sentença, o problema, directamente focado pelo Apelante, da duplicação indemnizatória: se a A. já recebe aqui, ao abrigo do artigo 495º, nº 3 do CC, o que deixou de receber da vítima, aquilo que provinha do respectivo rendimento, como é que os herdeiros (no caso, de novo, a A., enquanto mãe da vítima) vão receber esse rendimento? É uma interrogação pertinente que a visão das coisas construída pela Sentença deixa sem qualquer resposta satisfatória.

Estamos, pois, no que tange à identificação dos danos patrimoniais que a morte provocou ao próprio lesado, num quadro que não nos permite referenciar o tipo de projecção futura realizado pela Sentença a respeito das remunerações mensais a perceber pela vítima, entendidas estas como dano patrimonial dessa mesma vítima transmitido aos seus herdeiros. A seguir-mos o entendimento da decisão, tendo presente a necessária quantificação do dano nos termos do artigo 566º, nº 2 do CC, conforme já apontámos, seriamos arrastados para campos de total incerteza em que a falta geral de prova possível impediria que se concedesse, com uma base minimamente realista, qualquer indemnização que não se traduzisse num exercício arbitrário de fixação de um valor. Certo é – e isto parece-nos inquestionável – que a base de cálculo simplista adoptada pelo Tribunal a quo (a simples projecção futura dos rendimentos brutos do trabalho) nunca constituiria um instrumento satisfatório de aferição.  

2.2.1. À consideração positiva deste fundamento do recurso, acrescentaríamos, desta feita confirmando a decisão apelada, que os restantes montantes indemnizatórios considerados na Sentença (os outros danos patrimoniais e não patrimoniais fixados pelo Tribunal), nos parecem adequadamente estabelecidos e não exageradamente quantificados (pelo contrário, no que se refere ao dano morte e aos outros danos não patrimoniais, quer-nos parecer que o Tribunal fixou quantitativos algo modestos[12]).

Confirma-mos, pois, no restante, no quadro em que é possível a intervenção desta Relação, o teor da Sentença apelada.

2.3. Excluímos, assim – é o que se conclui neste recurso –, a consideração indemnizatória dos afirmados lucros cessantes de S…, que a Sentença quantificou em €65.000,00, reduziu a metade (€32.500,00), por diminuição da percentagem considerada como contribuição da vítima para o acidente, e atribuiu à A. por via sucessória. Deve tal valor ser subtraído à indemnização fixada, permanecendo nela, exclusivamente, no que respeita a danos patrimoniais da A., o valor respeitante à projecção dos alimentos futuros perdidos (€20.000,00:2 = €10.000,00) e o valor de metade das despesas de funeral (€1.300,00:2 = €650,00), somando-se estes dois valores subsistentes aos diversos danos não patrimoniais considerados na Sentença: os da própria A., fixados em €15.000,00 (metade: €7.500,00); o sofrimento da própria vítima, avaliado em €2.500,00 (metade: €1.250,00); o dano morte da vítima, fixado em €50.000,00 (metade: €25.000,00).

Soma o montante global da indemnização a pagar à A. pelo R. (subtraídos os €32.500,00, excluídos neste recurso) o valor global de €44.400,00 (representa este o resultado da seguinte operação: €10.000,00 + €650,00 + €7.500,00 + €1.250,00 + €25.000,00 = €44.000,00).

Nestes termos, procede o recurso em parte muito significativa dos seus fundamentos (mas, todavia, só parcial, dado que o R. não logrou baixar, como pretendia, o valor indemnizatório subsistente relativo aos danos patrimoniais). Antes de formular a decisão que corresponde a este resultado, sumariamos aqui os traços fundamentais do percurso argumentativo deste Acórdão:


I – Não existe fundamento legal para a fixação, num quadro de responsabilidade civil extra-contratual e no caso de morte da vítima, de uma indemnização respeitante a danos patrimoniais futuros (lucros cessantes) da própria vítima, traduzida na projecção do que esta auferiria a título de salários pelo seu trabalho, não fora a ocorrência do evento morte;
II – Com efeito, os artigos 495º e 496º, nºs 2 e 3 do CC sugerem fortemente uma vocação de resolver todos os problemas da indemnização por morte (os patrimoniais, no artigo 495º), sendo que a não consideração no âmbito destes dos salários “perdidos” pela vítima mortal, enquanto dano patrimonial desta, aponta no sentido da não consideração indemnizatória desse aspecto;
III – De qualquer forma, a hipotética consideração dos futuros rendimentos laborais do morto, enquanto dano patrimonial deste transmitido aos herdeiros, teria de ter em conta, nos termos do artigo 566º, nº 2 do CC, também os seus futuros gastos, subtraídos aos salários, sendo que só as futuras “poupanças” da vítima poderiam ser tidas em conta em sede indemnizatória, com toda a dificuldade e incerteza associada à prova desse elemento.


III – Decisão


            3. Assim, na procedência parcial da apelação, alterando-se a Sentença recorrida no elemento referido no item 2.3. deste Acórdão, exclui-se da indemnização em causa nesta acção o valor de €32.500,00, considerado pela primeira instância, fixando-se o valor indemnizatório global a suportar pelo R. Fundo de Garantia Automóvel – no qual vai aqui condenado – em €44.400,00 (quarenta e quatro mil e quatrocentos euros), mantendo-se, em tudo o mais, o conteúdo decisório da Sentença apelada.

            Sem custas (já que a A. dispõe de apoio judiciário e o R. está isento).


Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia, 

(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] A indicação desta data evidencia que se aplica neste caso o regime processual recursório anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a). 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada no presente Acórdão pressuporá a versão anterior ao DL 303/2007.
[2] Por respeitar o presente recurso, em exclusivo, a estes danos, aqui transcrevemos alguns trechos do articulado inicial onde este elemento do pedido é caracterizado:
“[…]

104º

O S… era solteiro e não tinha a seu cargo mais ninguém do que a sua progenitora.

                                                                               105º

Deste modo, em Junho de 2001 arranjou um emprego na empresa denominada “F…, Lda.”, com sede em ...


106º

Tinha a categoria de Auxiliar de Serviços.

                                                                               107º

Sempre trabalhou na referida firma até à data da sua morte, ou seja, até Setembro de 2004.

                                                                               108º

Auferia nessa data mensalmente de salário base a quantia de €361,63, acrescido do valor mensal de €45,37 a título de subsídio de almoço, mais o quantitativo respeitante a subsídio de férias e subsídio de Natal (14 meses de salário) – junta-se a título exemplificativo a folha de salários correspondente ao mês de Setembro de 2004, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos (doc. nº 10), sem se deixar de referir que o correspondente valor se encontra deduzido os dias não contemplados em razão da sua morte

                                                                               109º

À data da sua morte tinha 28 anos.

                                                                               110º

Desta sorte, a sua esperança de vida, atentos às estatísticas oficiais, pela melhor qualidade de vida que hoje em dia as pessoas têm duraria pelo menos até aos 73 anos de idade.

                                                                               111º

Significaria que teria activamente mais 45 anos de vida para usufruir, ganhar o seu sustento e garantir a segurança de sua mãe, dele dependente.

                                                                               112º

Seja dito que, à data do falecimento de seu filho, a Autora tinha 52 anos, sendo perfeitamente admissível que vivesse ou pudesse ter vida por mais quarenta e tal anos.

                                                                               113º

Não obstava por isso, que o seu filho, que infelizmente morreu derivado ao acidente que curam os autos, lhe prestasse alimentos até essa idade.

                                                                               114º

O inditoso enviava através de transferência bancária para sua mãe, importâncias que variavam, a fim de a ajudar nas suas necessidades mais elementares e básicas.

                                                                               115º

Assim a título de exemplificativo, juntam-se ordens de transferências para os efeitos enunciados, documentos esses sob os nºs. 11, 12, 13, 14, 15 (com os respectivos anexos que compõem as suas traduções) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

                                                                               116º

Desta feita, atentos ao alegado nos itens 98º a 105º, deste articulado, os anos de laboração útil e o recebimento da média desses valores e a assistência de sua mãe que acabou por ficar desamparada, sem a sua ajuda, temos que considerar a perda de rendimento e a respectiva capitalização no decurso desses, pelo menos 45 anos de laboração útil.

[…]


118º

 Atentos à remuneração mensal de €250,00 (X14 meses), a uma taxa de juro de 4%, acrescida da taxa anual 2%, que se cifra na remuneração anual de €3.500,00, com 45 anos de Laboração activa (visto que, o se falecimento ocorreu quando tinha 28 anos) e uma taxa de juro aplicável de 0,0196, o total do capital a pagar monta a €104.017,00 (junta-se folha de cálculo para melhor facilidade e compreensão como doc. nº 16.

                                                                               119º

Com as despesas de funeral, que compreendem: urna de cremação, transporte de auto fúnebre, serviços de agência e documentação de transporte aéreo, serviços esses prestados pela Agencia Funerária, foi gasta a quantia de €1.300,00 (conforme docs. que se juntam sob os nºs. 17, 18, 19 e 20 que aqui se dão por integralmente reproduzidos)

                                                                               120º

Quem liquidou inicialmente esta despesas foi o primo do falecido, porém, a mãe deste já lhe pagou a referida importância.

                                                                               121º

Assim a totalidade relativa aos danos patrimoniais cifram-se em €105.317,00 (cento e cinco mil trezentos e dezassete Euros), que desde já se reclamam a este título.
[…]”
                [transcrição de fls. 16/19]
[3] Não se discutem no presente recurso quaisquer outros aspectos atinentes à fundamentação da imputação delitual ao interveniente desconhecido no acidente, aqui prefigurado pelo Fundo de Garantia Automóvel. Vale isto por afirmar que se pressupõe neste Acórdão toda a mecânica do acidente assente na primeira instância, a valoração desta, designadamente quanto à repartição de culpas entre os envolvidos, a afirmação do dever de indemnizar e até os factos-base atinentes à caracterização dos danos nas suas diversas dimensões. Discute-se aqui, por corresponder ao tema (único) do recurso, tão-só, a compatibilização lógica entre as duas vertentes indemnizatórias consideradas na Sentença quanto aos danos patrimoniais. 
[4] Utilizámos aqui a definição dada por António Menezes Cordeiro: “[…] dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito” (Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo III, Coimbra, 2010, p. 511).
[5] Para possibilitar a completa apreensão do argumentário da Sentença apelada, na caracterização desta asserção, aqui transcrevemos o trecho da mesma onde essa questão é apreciada:
“[…]

[C]omeça a A. por formular um pedido de €104.017,00 pela morte do seu filho e consequente perda de rendimento da demandante.

Mas, salvo o devido respeito, parece justapor a A., com tal pedido, duas realidades distintas, tratando-as como se fossem apenas uma e a mesma coisa.

Expliquemos.

No essencial – e se bem a entende o Tribunal –, a ideia expressa pela A. é a seguinte: tendo a demandante 52 anos de idade no momento da morte do seu filho e sendo perfeitamente admissível que vivesse ou pudesse viver ainda por mais de 45 anos (isto é, pelo período de vida activa que se supõe ser aquele de que o S… poderia gozar em termos de normal expectativa da realidade das coisas, caso não ocorresse o terrível acidente ora em discussão), nada obstaria, pois, a que aquele filho da A. lhe prestasse alimentos até ao fim da vida.

Então, prossegue a demandante o seu raciocínio mediante o uso de uma fórmula matemática tendente a apreender o capital necessário à produção do montante mensalmente auferido pelo S… ao longo dos anos que – a não ocorrer o seu decesso – comporiam, na normalidade das coisas, a sua vida activa. Por isso, fez a A. a multiplicação do montante mensal que o falecido alcançava no momento da sua morte por 14 meses (isto é, os 12 meses do ano, acrescidos do subsídio de férias e de Natal), utilizando depois uma taxa de juro de 4%, acrescida da taxa anual de 2%, considerando também os 45 anos de laboração activa ainda por cumprir, e ainda uma taxa de juro aplicável de 0,0196%, de acordo com a lógica de cálculo própria de uma determinada tabela financeira.

E foi o resultado de tal cálculo financeiro que a demandante impetrou como quantia que deve ser-lhe paga.

Parece, no entanto, a mesma A. dar a entender que a quantia por si alcançada lhe é devida porque o normal porvir sempre inculcaria a ideia de que o S… lhe prestaria (a ela, demandante) alimentos até ao final da sua vida laboral activa.

Pois bem, importará dizer que uma realidade é a dos lucros cessantes da vítima, outra é a da eventual prestação de alimentos que a mesma vítima poderia continuar a assegurar à impetrante caso não ocorresse o falecimento daquela.

Ou seja, impõe-se perceber a diferença das realidades agora em causa.

É que os danos patrimoniais ligados aos lucros cessantes (bem como, por exemplo, os danos não patrimoniais sofridos pela vítima imediatamente antes da morte) estão integrados no património hereditário criado pelo decesso do S…, património hereditário que in casu vem representado pela demandante, na qualidade de sua única e universal herdeira […].

Por seu turno, na matéria dos alimentos rege expressamente o art. 495º/n.º 3 C.C., preceito segundo o qual têm direito a indemnização, no caso de morte do lesado ou em quaisquer outros casos de lesão corporal, «(…) os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural».

Como bem se defendeu no Ac. S.T.J. de 13/2/91 (in A.J. n.os 15 e 16, pág. 6), a norma acabada de citar não concede às pessoas que podiam exigir alimentos ao lesado o direito de indemnização de todos e quaisquer danos patrimoniais que lhes hajam sido causados, mas apenas o direito de indemnização do dano da perda dos alimentos (que o lesado, se fosse vivo, teria de prestar-lhes); por outro lado, a concessão desta indemnização depende da prova de que os requerentes foram privados de alimentos a que teriam direito se o lesado fosse vivo ou que o lesado lhes prestasse alimentos no cumprimento de uma obrigação natural, isto é, fundada em um dever moral ou social específico entre as pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses ou ditames de justiça (artigo 402º C.C.).

Estão aqui em causa, pois, neste último caso, apenas os danos advenientes da perda dos alimentos, e não quaisquer outros.

Existe, como se vê, uma clara diferença entre as realidades apontadas, mas que (como se disse há pouco) parecem ter sido «justapostas» pela demandante no pedido que formulou d[e] condenação do Réu no pagamento da quantia de € 104.017,00 pela morte do filho e consequente perda de rendimento da A..

A este propósito, e percebido o raciocínio da demandante (que, como vimos, parece apontar para a valorização dos dois aspectos referidos – lucros cessantes e alimentos), dirá o Tribunal ser de considerar, cada um de per se, os dois distintos núcleos indemnizatórios.

O que se fará, aliás, de seguida.
[…]”
                [transcrição de fls. 434/436]
[6] Outra coisa seria dizer-se que o património dos que viviam em economia comum com a vítima ficou privado do acréscimo periódico que representava o salário desta, enquanto fonte de receitas dessa economia familiar global. Todavia, tratar-se-ia, nesta dimensão, de um dano próprio dos que viviam com a vítima, ainda abrangido no artigo 495º, nº 3 do CC, e não de um dano patrimonial da vítima transmitido mortis causa aos herdeiros, como aqui se entendeu. Note-se que esta dimensão do dano patrimonial da A. decorrente da morte do seu filho (o fim da contribuição deste para a ampliação do património da A.) já ficou, correcta ou incorrectamente quantificada, coberta pela indemnização respeitante a alimentos deixados de receber.
E note-se que isto também não exclui que possamos referenciar ao acto que conduziu à morte da vítima outros danos infligidos ao património da própria vítima. Tudo depende de tais danos serem alegados e de existir prova dos mesmos.
[7] Não se tratam estes, quer-nos bem parecer, de danos patrimoniais infligidos ao património do morto, sendo certo que nunca chegaram a constituir-se e, por isso, nunca chegaram a entrar nesse universo patrimonial.
[8] V. a discussão em torno desta questão, em António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo III, cit. pp. 516/527 e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 319/322.
[9] Vale a seguinte passagem da decisão apelada (nesse aspecto aqui incontestada):
“[…]

- Do chamado “dano de morte”:

Entrando agora na questão da perda do direito à vida, é apodíctica a afirmação de que o valor de uma vida é algo de absoluta e totalmente inestimável.

A morte é um dano único, que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais (Prof. Diogo Leite de Campos, “A vida, a morte e a sua indemnização”, in B.M.J. n.º 365, pág. 15).

Como facilmente se perceberá, no cômputo da compensação respectiva a lei manda atender a critérios de equidade (n.º 3 do art. 496º C.C.), isto é, e como decorre do já exposto, a critérios que atendam à justiça do caso concreto, potenciando-a e fortalecendo-a.

Entende o Tribunal que não pode ser olvidado, como ponto de partida, que a vida, como bem supremo, é algo de ponderoso em igual medida para todos; mas nuances como a idade da vítima, o factor saúde, ou até mesmo a situação relacional que tal vítima granjeou no contacto com os outros (embora aqui haja que ter muitas cautelas, de modo a não dar relevo a aspectos – como, por exemplo, a situação económica da vítima – que a lei, de caso pensado, e muito bem, não quer considerar), poderão ter o seu papel na formulação do juízo de equidade. Por outro lado, e como defende o Prof. Diogo Leite de Campos (estudo citado, pág. 15), «a indemnização do dano da morte deve ser fixada sistematicamente a um nível superior – pois a morte é um dano acrescido e isto tem de ser feito sentir economicamente ao culpado».

Partindo do critério apontado, tomar-se-á em consideração que os autos tratam de uma pessoa jovem – de 28 anos de idade – e, portanto, em uma fase de pujança da vida, integrada familiar e profissionalmente (entendamos este último aspecto cum grano salis), com todas as perspectivas que isto lhe proporcionava, além, obviamente, do amor que lhe era devotado por sua mãe.

Por todo o exposto, entende o Tribunal como adequada a compensação pela perda do direito à vida, relativamente ao S…, de € 50.000,00.
[…]”
                [transcrição de fls. 446]

[10] Acórdão do STJ., de 17 de Março de 1971, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 105.º, p. 63.

[11] V. igualmente o artigo 6º da mesma Portaria.
[12] Nenhum deles está em causa neste recurso (a A. conformou-se com a Sentença) em termos que nos permitissem ampliá-los.