Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2749/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: Nº 3 DO ARTº 566º DO CC
Sumário: Mesmo que o lesado, que ficou incapacitado, não exerça uma profissão à data do acidente, deve ser indemnizado, uma vez que a incapacidade de que ficou afectado constitui um dano futuro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


A... e mulher, B..., intentaram, em 10/04/2003, pela Vara Mista de Coimbra, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a C..., pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de € 47.385,80 e juros à taxa legal desde a citação, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram em consequência do acidente de viação de que foram vítimas em 26/04/2000, cerca das 9 horas, no IP3, na zona de Trouxemil, área desta comarca, provocado pelo veículo de matrícula 86-68-FP, seguro na ré (apólice nº 244728), ficando o acidente a dever-se a culpa exclusiva da condutora daquele veículo, D....
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A ré contestou, aceitando a culpa da sua segurada; e impugnando e invocando o exagero dos montantes peticionados para indemnizar os danos invocados pelos autores.
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Foi elaborado o saneador e seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, sem qualquer reclamação.
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A autora foi submetida a exame médico pelo Instituto de Medicina Legal, Delegação de Lisboa.
Junto o relatório, teve lugar o julgamento, com gravação da prova.
Decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor A... 4.000 € de danos não patrimoniais e 1.000 € de danos patrimoniais e à autora B... 12.500 € de danos não patrimoniais, tudo com os respectivos juros legais.
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Interpuseram recurso tanto a ré como os autores, sendo do seguinte teor as conclusões das respectivas alegações:
Recurso da ré:
1. Como tem vindo a ser definido pela doutrina, dano patrimonial é aquele que corresponde à frustração de utilidades susceptíveis de avaliação pecuniária.
2. Uma vez que a apelada se encontrava já reformada não irá sofrer um efectivo prejuízo patrimonial.
3. A apelante concorda, por isso, que o dano decorrente da IPP de que a apelada B... ficou a padecer seja qualificado como um dano não patrimonial.
4. Considera, no entanto, que, atenta a IPP de que ficou a padecer (7%) e a sua idade na data do acidente (58 anos), tal dano deve ser quantificado em medida inferior à arbitrada na decisão ora em crise, não devendo exceder os 4.500 €.

Recurso dos autores:
1ª- A incapacidade permanente de que padece a autora B... gerando, como gera, um maior esforço na execução das suas tarefas da vida diária, deverá ser valorada.
2ª- Vem entendendo a Jurisprudência que os danos decorrentes de incapacidades permanentes de que os lesados em acidentes de viação são portadores merecem a tutela do direito e, como tal, são indemnizáveis.
3ª- Vem entendendo a Jurisprudência que, mesmo quanto às incapacidades de que não resulte uma directa e efectiva quebra da capacidade de ganho, são credoras de indemnização a título de danos patrimoniais.
4ª- O Mmº Juiz a quo entendendo, como entendeu, valorar a incapacidade permanente de que a autora B... ficou portadora, deveria tê-lo feito a título de danos patrimoniais e não a título de danos morais.
5ª- O disposto no artº 496º do C. Civil não contempla os danos de natureza patrimonial mas tão só os de natureza não patrimonial.
6ª- A quantia de 6.500 € atribuída à autora B..., por força da incapacidade de que ficou portadora é irrisória face às lesões sofridas no acidente, devendo ser alterada para 15.000,00 €.
7ª- Por sua vez, a quantia de 6.000,00 € atribuída à autora B... a título de danos morais também é irrisória e ofende a regra da equidade.
8ª- À autora B... deverá ser atribuída, a título de danos não patrimoniais, uma quantia não inferior a 10.000,00 €.
9ª- Em face a tudo quanto fica dito, a sentença violou o disposto nos artºs 483º, 562º, 564º, 566º e 496º do C. Civil.
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Apenas a ré seguradora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso interposto pelos autores.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado, com interesse para a decisão dos recursos, o seguinte:
Factos Assentes:
A) - No dia 26 de Abril de 2000, cerca das 9 horas, ocorreu um acidente de viação no IP 3, na zona de Trouxemil, desta Comarca.
B) - Acidente em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula 86-68-FP, doravante designado por "FP" e o ligeiro de passageiros, matrícula 22-70-FE, doravante designado por "FE" .
C) - O veículo "FE" circulava pelo IP3, no sentido Souselas – A E, conduzido pelo autor A... e o "FP" em sentido contrário, tripulado por D....
J) - A condutora do 86-68-FP havia transferido para a ré a sua responsabilidade por danos causados a terceiros pelo referido veículo, através da Apólice n° 244 728 do ramo automóvel.
L) - Ré/seguradora que assumiu, desde logo, a sua responsabilidade pelas consequências do acidente - conforme carta que dirigiu ao autor A... em 6 de Julho de 2000.
N) - Para além dos danos no veículo, resultaram para ambos os autores diversos ferimentos.
O) - Tendo, ambos, sido transportados, de urgência, para o Hospital em Coimbra.
P) - Tendo, no mesmo dia, a autora B... sido transportada para o Hospital Fernando Fonseca, mais conhecido por Hospital Amadora - Sintra.
Q) - A. autora B... foi imobilizada com colete JeWett durante cinco meses.
R) - Durante a imobilização e após a mesma, a autora passou a ser seguida pelos Serviços Clínicos da ré.
S) - Onde fez sessões de fisioterapia e outros tratamentos com vista à sua recuperação física.
T) - Tendo tido alta em 16/11/2000.
U) - A autora B... era, à data do acidente, doméstica e continua a sê-lo.

Base Instrutória:
1º - A autora B... esteve internada durante nove dias no Hospital Fernando Fonseca (Hospital Amadora – Sintra).
2º - À entrada em tal Hospital a autora B... apresentava:
- fractura do corpo da L1 sem compromisso neurológico;
- fractura de vários arcos costais esquerdos.
3º - A autora B... apresentava, em 24 de Abril de 2001:
- fractura dos ossos costais consolidados sem desvio e subjectivos dolorosos escassos
- fractura consolidada do corpo da L1 com deformação do eixo raquidiano.
5º - A autora B..., devido às lesões sofridas no acidente, ficou afectada de uma IPP de 7 %, aqui se incluindo o previsível dano futuro (consubstanciado numa maior precocidade no desenvolvimento de alterações osteo-articulares degenerativas, determinada pelas alterações de dinâmica (defesa) da coluna vertebral.
6º - A autora B..., à data do acidente, era, para a idade, uma mulher sadia, não lhe sendo conhecidos – para além dos problemas de nervos que a levaram a aposentar-se da profissão de operária fabril – quaisquer problemas de saúde.
7º - Após o acidente, a autora B... andou triste e deprimida.
8º - É acometida de dores na coluna, que se agravam quando se senta.
9º e 11º - As lides domésticas – como o passar a ferro, aspirar a casa e pegar em pesos – obrigam-na a esforços acrescidos e por espaços de tempo limitados.
10º - As dores que a autora sofre na coluna agravam-se sempre que ocorre mudança de tempo.
12º - Por vezes, o marido ajuda-a.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Vamos apreciar os dois recursos simultaneamente, uma vez que a única questão suscitada pela ré é comum a uma das questões apresentadas pelos autores.


Na sentença recorrida entendeu-se que o dano decorrente da IPP de que a autora B... ficou portadora é ressarcível, mas a título de dano não patrimonial, fixando-se a indemnização, com recurso à equidade, em 6.500,00 €.
A autora B... discorda da qualificação do dano, que deve ser considerado como patrimonial e do montante, que não deverá ser inferior a 15.000,00 €.
A ré seguradora concorda com a qualificação do dano, mas não concorda com o montante, que não deve exceder os 4.500,00 €.
Vejamos.
Deu-se como provado que a autora B..., devido às lesões sofridas no acidente, ficou afectada de uma IPP de 7%, aqui se incluindo o previsível dano futuro (consubstanciado numa maior precocidade no desenvolvimento de alterações osteo-articulares degenerativas, determinada pelas alterações de dinâmica (defesa) da coluna vertebral (ponto 5º da Base Instrutória).
A sigla IPP (Incapacidade Permanente Parcial) está relacionada com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), que tem por objectivo fornecer as bases de avaliação do prejuízo funcional sofrido em consequência de acidente de trabalho e doença profissional, com perda da capacidade de ganho (cfr. Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro), tendo em vista a determinação dos montantes das indemnizações ou pensões a que os trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional legalmente têm direito.
Esta Tabela tem servido também de orientação para a avaliação da perda da capacidade de ganho e determinação do montante da respectiva indemnização do lesado em acidente de viação.
É entendimento praticamente unânime o de que o lesado que tenha ficado incapacitado e que exerça uma profissão à data do acidente tem direito a ser indemnizado, na medida em que tal incapacidade constitua um dano (patrimonial) futuro (cfr. artº 564º, nº 2, do Código Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).
No entanto, mesmo que o lesado não exerça qualquer profissão deve ter direito a ser indemnizado, se, de igual forma, a incapacidade constituir um dano futuro (cfr. Ac. do S.T.J. de 30/10/2003, in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, de Outubro de 2003, pág. 89).
É o que se passa, por exemplo, com uma pessoa que tenha por actividade a lide doméstica, e que, devido à incapacidade de que ficou afectada, tenha necessidade de utilizar os serviços de outra pessoa ou que passe a exercer tal actividade com maior dificuldade do que exercia até aí, desenvolvendo um maior esforço para atingir o mesmo fim.
A forma de fixar a indemnização é que poderá divergir, dada a inexistência de remuneração, devendo nesse caso o tribunal julgar equitativamente, de acordo com o disposto no nº 3 do artº 566º.
O dano deve, neste caso, ser considerado patrimonial, visto que abrange os prejuízos que, sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, podem ser reparados ou indemnizados, senão directamente (mediante restauração natural ou reconstituição especifica da situação anterior à lesão), pelo menos indirectamente (por meio de equivalente ou indemnização pecuniária).

No presente caso, a autora B..., devido às lesões sofridas no acidente, ficou afectada de uma IPP de 7%, na qual se inclui o previsível dano futuro (consubstanciado numa maior precocidade no desenvolvimento de alterações osteo-articulares degenerativas, determinada pelas alterações de dinâmica da coluna vertebral).
É certo que não exerce qualquer profissão remunerada, pois era, à data do acidente, doméstica e continua a sê-lo.
No entanto, as lides domésticas – como passar a ferro, aspirar a casa e pegar em pesos – obrigam-na a esforços acrescidos e por espaços de tempo limitados.
Tem, por isso, direito a ser ressarcida do prejuízo que resulta daquela incapacidade, visto a mesma constituir um dano futuro.
Como não é possível determinar o montante de tal indemnização, visto a autora ser doméstica e não auferir, portanto, qualquer retribuição, há que fixá-la de acordo com a equidade, como se fez na sentença recorrida, tendo em consideração, nomeadamente, a baixa percentagem de incapacidade e a idade da autora.
Assim, entendemos adequado atribuir-lhe, a título de indemnização de danos futuros, o montante de 7.500,00 €.
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Alegam os autores que a quantia de 6.000,00 € atribuída a título de danos não patrimoniais à autora B... é irrisória, devendo ser-lhe atribuída uma quantia não inferior a 10.000,00 €.
O artº 496º dispõe que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal.
Tal dispositivo legal não determina, pois, quais os danos não patrimoniais que são compensáveis, limitando-se a fixar um critério geral, que é o da gravidade dos danos.
Os danos não patrimoniais, “como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética”, são prejuízos que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização (cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 561).
No que respeita ao quantitativo da indemnização, que será fixado segundo critérios de equidade, há que atender à extensão e gravidade dos danos, ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. (cfr. Prof. Antunes Varela, ob. cit, 629, e Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., 525).
Não se deve confundir a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma traduzir “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…” (cfr. Ac. do S.T.J. de 10/02/1998, CJ, T1-65).
Como se refere no Acórdão desta Relação de 19/02/2004 (Apelação nº 3546/03, 2ª secção), merecem, ainda, ser destacados, nos parâmetros gerais a ter em conta, a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se deve também repercutir no aumento das indemnizações.
A jurisprudência actual encaminha-se no sentido de que, não obstante a dificuldade em quantificar os danos não patrimoniais, a indemnização a fixar procurará ser justa e equitativa, e não com um alcance meramente simbólico, uma vez que se destina a viabilizar um lenitivo ao lesado pelos padecimentos que tenha sofrido e que já nºão podem ser retirados por quem quer que seja, devendo a indemnização ter uma expressão monetária elevada se o dano não patrimonial for muito grave (cfr., entre outros, os Acs. do S.T.J. de 16/12/1993, CJ, T3-181, de 11/10/1994, CJ, T3-89, de 18/03/1997, CJ, T1-163, de 13/01/2000, BMJ 493º-354, e de 09/05/2002, DR, 1ª S., de 27/06/2002, págs. 5057 e ss.).

No presente caso, não há dúvida – nem isso vem questionado – que a autora B... sofreu danos de natureza não patrimonial e que estes assumem gravidade que merece a tutela do direito.
Para se poder aferir do quantum indemnizatório a atribuir à autora B..., há que considerar, nomeadamente, que a culpa na produção do acidente se ficou a dever à condutora do veículo segurado na ré, a situação económica desta e da autora, e que, como se extrai da matéria de facto dada como provada e atrás transcrita, além do mais, a autora, como consequência do acidente, esteve internada durante nove dias no Hospital Fernando Fonseca (Hospital Amadora-Sintra) e, à entrada em tal hospital, apresentava fractura do corpo da L1, sem compromisso neurológico, e fractura de vários arcos costais esquerdos, que foi imobilizada com colete JeWett durante cinco meses, que, à data do acidente, era, para a idade, uma mulher sadia, não lhe sendo conhecidos – para além dos problemas de nervos que a levaram a aposentar-se da profissão de operária fabril – quaisquer problemas de saúde, e que, após o acidente, andou triste e deprimida, é acometida de dores na coluna, que se agravam quando se senta, bem como sempre que ocorre mudança de tempo.
Tendo em conta esses factos e os princípios atrás enunciados, entende-se mais adequada a indemnização de 7.500,00 €, para ressarcimento dos danos em causa, em vez da fixada na 1ª instância.
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Conclui-se, assim, que o recurso interposto pelos autores apenas em parte merece provimento, improcedendo na totalidade o recurso interposto pela ré.
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Pelo exposto, acorda-se neta Relação em:
A) - Negar provimento ao recurso interposto pela ré seguradora;
B) - Dar parcial provimento ao recurso interposto pelos autores, condenando-se antes a ré a pagar à autora B... a quantia de 7.500,00 € a título de danos futuros, e a de 7.500,00 € a título de danos não patrimoniais, no mais se mantendo a sentença recorrida.

Custas: do recurso da ré a cargo desta, e do recurso dos autores na proporção do respectivo decaimento.