Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/07.5TBANS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
AVAL
INCAPACIDADE DO AVALISTA
INTERDIÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.149, 257, 350 CC, 712 CPC
Sumário: 1. Na impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de primeira instância, o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes uma apreciação e valoração autónoma da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto.

2. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento.

3. Para a anulação do aval prestado antes do anúncio da propositura da acção de interdição do avalista, não basta a prova da incapacidade do avalista, sendo necessário, além disso, demonstrar a notoriedade dessa incapacidade ou o conhecimento dessa incapacidade por parte do credor beneficiado com a prestação das garantias pessoais impugnadas ou ainda, o desconhecimento culposo dessa incapacidade.

4.A anulação do aval por incapacidade acidental do avalista pressupõe a alegação e prova de factos concretos que permitam concluir que tais actos eram causadores de prejuízos para o incapaz.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 09 de Setembro de 2009, por apenso à acção executiva sob forma comum nº 185/07.5TBANS-B.C1, instaurada pelo Banco (…), SA, no Tribunal Judicial da Comarca de Ansião, J (…) deduziu oposição à referida execução pugnando pela total extinção da acção executiva, na parte que lhe diz respeito.

            Em síntese, o opoente fundamenta a sua pretensão na alegada invalidade do aval que prestou por se achar incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens, tanto que foi declarado interdito por sentença proferida a 20 de Dezembro de 2007, fixando-se o começo da incapacidade em Julho de 2001, na circunstância das livranças não terem sido apresentadas a pagamento e na ineptidão do requerimento executivo, em virtude de aí não ter sido alegada a relação subjacente às livranças exequendas.

            A oposição foi liminarmente recebida, vindo o exequente a oferecer contestação em que alegou que não tinha conhecimento da alegada incapacidade do opoente na data da prestação do aval, que as livranças exequendas não carecem de protesto por falta de pagamento para ser exequíveis, pugnando pela total improcedência da oposição.

            A 22 de Janeiro de 2010, o opoente foi convidado a apresentar nova petição a fim de concretizar a matéria articulada no artigo 6º da oposição, convite que o opoente acatou, sendo o articulado aperfeiçoado notificado ao exequente que manteve a posição assumida na contestação que havia já oferecido.

            Proferiu-se despacho saneador em que se julgou improcedente a excepção dilatória de ineptidão do requerimento executivo e da inexequibilidade dos títulos exequendos, procedendo-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória.

            As partes ofereceram as suas provas, requerendo o opoente a gravação da prova produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento.

            O exequente veio requerer que fosse dado sem efeito o seu requerimento probatório.

            Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com registo da prova pessoal aí produzida, respondendo-se, seguidamente, à matéria vertida na base instrutória.

            Proferiu-se sentença que julgou totalmente improcedente a oposição à acção executiva.

            Inconformado com a sentença, o opoente interpôs recurso de apelação contra a mesma, formulando as seguintes conclusões:

I. O tribunal a quo julgou como provado que “Pelo menos, à data de emissão dos documentos aludidos em A) a F) dos factos assentes e seu aval, já era notado, pelo menos, com o esclarecimento, por pessoa que se relacionasse próximo com o opoente J (…) que o mesmo apresentava discurso ininteligível, desorientação temporo-espacial e em relação a si próprio e alterações mnésicas;”

II. Da prova testemunhal produzida resultou clara quer (1) a notoriedade da incapacidade do recorrente, quer (2) a dita incapacidade constante em L) dos factos provados: “apresenta ao corte transversal actual, entre outros sintomas, discurso por vezes ininteligível, desorientação temporo-espacial e em relação a si próprio, alterações mnésicas graves, designadamente memória de fixação, recente e de evocação e perturbações de compreensão e de cálculo, não parecendo compreender as questões colocadas e não reconhece o dinheiro.”

III. E para esta decisão é relevante desde logo o depoimento das testemunhas (…)

IV. Deste modo, o tribunal a quo devia ter dado como provado que “À data de emissão dos documentos aludidos em A) a F) dos factos assentes e seu aval, já era notado e por qualquer pessoa diligente ou que se relacionasse com o opoente J (…), nomeadamente o exequente, que o mesmo padecia do quadro clínico e efeitos referidos em L) dos factos assentes, e designadamente que não conseguia alcançar o sentido do declarado e exarado nos documentos referidos em A) a F) dos factos assentes.”

V. Dos autos consta uma sentença de interdição, fixando a data em que o recorrente deixou de ter capacidade – Julho de 2001 - de gerir a sua pessoa e dispor dos seus bens, o que constitui uma presunção judicial, nos termos do disposto no artigo 351º do CC.

VI. As presunções são ilações que o julgador retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, nos termos do disposto no artigo 349º do CC.

VII. Neste sentido, o tribunal a quo devia ter articulado a prova testemunhal produzida com a sentença judicial de interdição, dando como provado o artigo 1º da base instrutória.

VIII. Sem conceder, a existência de uma sentença judicial de interdição do recorrente é bastante para a anulabilidade dos avais prestados pelo recorrente.

IX. Pelo que a prestação dos avais realizados pelo recorrente são anuláveis, nos termos do disposto no artigo 257º, nº 1 do CC.

X. A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 257º 349º e 351º do CC.

            O recorrido contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º nºs 1 e 4, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos[1]), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação da resposta ao artigo 1º da base instrutória;

2.2 Da anulabilidade do aval prestado por J (...), com fundamento em incapacidade acidental.           

3. Fundamentos

3.1 Da impugnação da resposta ao artigo 1º da base instrutória

Enquanto o Supremo Tribunal de Justiça, apenas excepcionalmente conhece de matéria de facto (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), o Tribunal da Relação, é um tribunal de instância, em regra a segunda instância (artigo 210º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa) e, como tal, conhece de direito e de facto (artigo 712º do Código de Processo Civil).

            Assim, “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou” (artigo 712º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos e que é a que vigorava antes da entrada em vigor das alterações introduzidas pelo decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, porquanto as alterações emergentes deste diploma, em matéria de recursos, só se aplicam a processos instaurados a partir de 01 de Janeiro de 2008 – artigos 11º e 12º, nº 1, ambos do decreto-lei nº 303/2007).

            “No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados” (artigo 712º, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “A Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1ª instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes” (artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão” (artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

“Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade” (artigo 712º, nº 5, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

No recurso em que se vise a impugnação da matéria de facto, o recorrente deve “obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida” (artigo 690º-A, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

“No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C” (artigo 690º-A, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

O nº 2 do artigo 522º-C do Código de Processo Civil prescreve que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.”

Os ónus impostos ao recorrente que pretende sindicar o julgamento da matéria de facto visam combater uma indiscriminada e vaga manifestação contra o julgamento de facto, obrigando o recorrente a uma tomada de posição precisa quanto aos pontos de facto que entende mal julgados e ainda à indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, indicação que, no caso de gravação dos meios de prova, deve ser feita com referência ao assinalado na acta relativamente a cada depoimento[2]. Além disso, esses ónus processuais ajustam-se ao figurino paradigmático dos recursos no nosso sistema processual enquanto recursos de revisão ou de reponderação[3].

No entanto, afigura-se-nos que o ónus imposto ao recorrente que impugna a matéria de facto, no que tange a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, teve em vista essencialmente a situação em que a pretensão do recorrente se funda na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão sob censura. De facto, essa indicação parece mais talhada para os casos em que o recorrente sustenta a existência de prova do contrário ou de contraprova daquela que na decisão sob censura foi relevada (veja-se o artigo 346º do Código Civil).

Porém, estes casos não esgotam o universo das situações passíveis de motivar inconformismo contra a decisão de facto.

Assim, o erro no julgamento da matéria de facto pode derivar simplesmente do meio de prova aduzido para fundamentar a decisão do ponto de facto impugnado não conduzir a tal resultado probatório. Por exemplo, é afirmado que se julga provado o facto X, com base no depoimento da testemunha Y, quando, analisado tal depoimento, se chega à conclusão de que efectivamente essa testemunha não produziu um depoimento que permita a prova de tal facto, não tendo feito qualquer referência directa ou indirecta ao facto dado como provado.

Outra situação que nos parece não ter sido directamente contemplada na alínea b) do nº 1, do artigo 690º-A, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos, é a da alegada falta de credibilidade de um meio de prova pessoal aduzido para fundamentar um ponto de facto objecto de impugnação pelo recorrente.

Nas situações antes enunciadas é manifesto que o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da impugnada tem que ser adequadamente entendido, sob pena de conduzir a resultados absurdos.

Assim, na primeira situação enunciada, parece que o recorrente observará suficientemente o ónus processual previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 690º-A, do Código de Processo Civil, indicando o depoimento que afirma por si só insuficiente para conduzir ao resultado probatório que impugna, tal como quando estiver em causa a credibilidade de um certo meio de prova pessoal, bastará a remissão para os segmentos do meio de prova em causa que contenham a sua razão de ciência e a sua análise crítica ou, nos casos em que não seja indicada razão de ciência, a mera referência à ausência dessa indicação.

Afigura-se-nos bizantina a exigência de que a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada obrigue o recorrente à referência precisa das voltas da cassete ou dos minutos e segundos do CD em que é produzido o depoimento por ele invocado para confortar a decisão de facto que afirma ser a correcta.

É que, por um lado, a contagem dessas voltas, por razões diversas, pode variar de gravador para gravador, existindo mesmo gravadores que não indicam essas voltas. No caso da gravação digital em CD apenas pode ser indicada a duração total de cada depoimento[4], sendo que esse tipo de gravação permite a identificação individualizada de cada uma das gravações efectuadas. Por outro lado, a localização precisa dos segmentos probatórios que sustentam a pretensão do recorrente não dispensa o tribunal de recurso de analisar a generalidade da prova, pois que o Tribunal da Relação deverá oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto (artigo 712º, nº 2, parte final, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), podendo mesmo ter em conta outros elementos que não sejam indicados como fundamento da decisão de facto (artigo 515º do Código de Processo Civil), desta feita ao abrigo dos poderes de reapreciação oficiosa da matéria de facto, com base no previsto na primeira parte da alínea a), do nº 1, do artigo 712º do Código de Processo Civil, reapreciação que, quando necessária, deverá ter em atenção o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil[5].

Salvo melhor opinião, o que será absolutamente necessário para que o recurso relativo à matéria de facto possa ser apreciado é que os pontos do julgamento da matéria de facto postos em crise, bem como as razões da discordância do recorrente quanto ao julgamento da matéria de facto se compreendam, de forma inequívoca. Nalgumas situações, deverá convidar-se o recorrente a proceder aos necessários aperfeiçoamentos, desde que tal não implique a apresentação de novas alegações[6].

Importa ainda referir que no caso de impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de primeira instância, embora o Tribunal da Relação deva apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes uma apreciação e valoração da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento[7]. Se assim não fosse, a impugnação da matéria de facto não constituiria um verdadeiro recurso, como sucede no nosso direito constituído, mas antes um meio processual de provocar uma repetição, ainda que parcial, do julgamento da matéria de facto.

No caso dos autos, relativamente ao artigo cuja resposta é posta em crise, no decurso da audiência de discussão e julgamento, apenas foi produzida prova testemunhal.

            No que tange a força probatória, a prova testemunhal é apreciada livremente (artigo 396º do Código Civil). Contudo, como tem sido repetido à exaustão, livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária da prova, mas antes a ausência de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam[8].

            Na apreciação da prova testemunhal, ao invés do que se acha consagrado legalmente no domínio da prova por confissão (artigo 360º do Código Civil), não rege nenhuma regra de indivisibilidade. Por isso, pode um mesmo depoimento testemunhal relevar positivamente para a formação da convicção do tribunal, num certo segmento, por efeito, por exemplo, da corroboração por dados objectivos ou por outras provas pessoais e, noutro segmento, não ter tal relevo probatório, sendo insuficiente ou até inidóneo para a formação de uma convicção positiva do tribunal quanto à realidade de tais factos.

A prova em matérias de natureza reservada, como quase sempre sucede quanto estão em causa relações de natureza familiar, nem sempre é passível de ser produzida por meios directos.

Porém, tal não significa que tal dificuldade probatória deva conduzir a uma irrestrita admissibilidade de prova indirecta derivada das declarações das partes, sobre tais matérias e, em regra, sobre factualidade favorável à parte declarante, violando-se, desse modo, as regras legais sobre a admissibilidade do depoimento de parte (artigos 552º a 567º do Código de Processo Civil e 352º a 354º, estes do Código Civil).

Neste contexto, há que proceder com particular cautela na produção de prova em tais casos, no sentido de identificar elementos indirectos que conjugados entre si e com a prova pessoal e documental possam relevar para a prova dos factos controvertidos.
Assim, embora se reconheça que aquela prova terá de ser em certos casos necessariamente indirecta, não menos verdade é que tal tipo de prova não dispensa uma rigorosa análise dos factos que lhe servem de base e o apuramento de uma concatenação dos mesmos em ordem a firmar uma conclusão final segura e racional por parte do tribunal.
As provas indirectas ou por presunção são legalmente admissíveis face ao disposto no artigo 349º do Código Civil.
No entanto, por força de tal natureza indirecta ou mediata, as denominadas provas indirectas ou indiciárias, na terminologia dos nossos vizinhos espanhóis, devem ser usadas com particular cautela, a fim de evitar erros judiciários com consequências tanto mais devastadoras quanto maior for a gravidade ou o relevo social ou patrimonial dos factos objecto de julgamento[9].
Assim, a utilização segura e racional deste tipo de provas exige:
a) em primeiro lugar e em regra, uma pluralidade de elementos indiciários, joeirando-se os casos de pluralidade aparente dos casos de real pluralidade; tal pluralidade só não será de exigir quando o relevo probatório da prova indirecta for de tal forma forte que é desnecessário qualquer outro elemento corroborador, como poderá suceder nalguns casos de recolhas positivas de vestígios biológicos;
b) em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes;

c) em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios, isto é, importa que tais indícios sejam inequívocos[10].

No julgamento da impugnação da decisão da matéria de facto apela-se amiúde aos princípios da livre apreciação da prova e da imediação para, em atitude negacionista, vedar um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e reduzir o controlo do julgamento da matéria de facto a uma verificação da racionalidade e sustentabilidade da decisão de facto impugnada, atento tão-só ao texto desta decisão. Nesse trilho cita-se[11], amiúde, uma passagem de uma Comunicação à Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, na sessão de 24 de Abril de 1958, publicada no Boletim do Ministério da Justiça, nº 80, páginas 220 a 221, da autoria do Sr. Conselheiro Eurico Lopes Cardoso na qual referia que “[o]s depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas.

Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, muitas vezes, é um meio de o ocultar.

As artes plásticas têm poder de síntese expressiva inacessível à linguagem. O cinema fornece uma imagem mais real da vida que a literatura.

A mímica e todo o aspecto exterior influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe. O magistrado experiente sabe tirar partido desses elementos intraduzíveis e subtis. Nisto consiste a sua arte.

As próprias reacções quase imperceptíveis do auditório se vão acumulando no espírito do julgador, ávido de verdade, e vão formar uma convicção cujos motivos lhe será muitas vezes impossível explicar”.

A questão que se coloca é a de saber se no actual quadro legal e constitucional, totalmente diverso do que vigorava quando foi escrito o texto citado, é legítima a invocação de afirmações de tal natureza para, de facto, negar a reapreciação da decisão da matéria de facto efectuada em primeira instância.

Na Constituição de 11 de Abril de 1933, os Tribunais eram qualificados como órgãos de soberania (artigo 71º da referida constituição) e no Título V, da Parte II, do mesmo instrumento normativo (artigos 115º a 123º), dedicado aos Tribunais, nenhuma exigência de fundamentação das decisões judiciais era aí prescrita.

No Código de Processo Civil de 1939, nos artigos 653º, alínea g), segundo parágrafo e 791º, quarto parágrafo, não se aludia a qualquer exigência de fundamentação da decisão da matéria de facto. A previsão do artigo 158º do Código de Processo Civil de 1939[12] parecia referir-se apenas às decisões sobre matéria de direito.

Apenas com o Código de Processo Civil de 1961, na reforma operada pelo decreto-lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961, se passou a prever a necessidade de especificação dos fundamentos da decisão positiva[13] da matéria de facto (artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil de 1961[14], aplicável ao processo sumário por força do disposto no artigo 791º, nº 3, do mesmo diploma legal).

No ponto 16 do preâmbulo do decreto-lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961 justificou-se a inovação da obrigação de fundamentação das respostas positivas aos quesitos do seguinte modo:

Há duas razões ponderosas que podem ser. E foram realmente, invocadas contra a fundamentação do acórdão do colectivo.

Uma assenta na extrema dificuldade de enunciar, com precisão, as razões que, muitas vezes por simples via intuitiva, influem justamente no espírito do julgador ao emitir determinada resposta. A outra provém da aparente inutilidade da motivação, desde que se não conceda – e parece que não deve ser efectivamente concedida – ao tribunal de 2ª instância a faculdade de alterar, com base nela, as respostas dadas pelo colectivo à matéria do questionário.

Estas razões são indiscutìvelmente sérias, mas não parecem decisivas.

Com ser difícil, num ou noutro caso, não se julga impossível a tarefa de concretizar as razões em que se fundam as respostas ao questionário. E a perfeição dessas respostas só tem a lucrar com a substituição dos puros impulsos, tantas vezes desordenados e enganadores, da simples intuição pela análise serena e reflectida dos factos que só a razão é capaz de iluminar e controlar com a necessária segurança.

Só há vantagem em estimular os juízes a seguir atentamente o desenrolar de toda a instrução do processo, assim como há toda a conveniência em obrigá-los a anotar oportunamente os resultados dos diferentes procedimentos probatórios, a recapitular, no momento da decisão, as impressões colhidas através da produção das várias provas e a conferir, sobretudo, os efeitos aparentemente contraditórios dos elementos que lhes cumpre utilizar na formação da sua convicção.

A resposta à segunda objecção está implicitamente contida no que se afirma em relação à primeira.

A possibilidade de alteração das decisões do colectivo não é, como se vê, a única finalidade capaz de justificar o dever de fundamentação das respostas aos quesitos.

A necessidade de justificar a decisão, substituindo as respostas secas, dogmáticas, autoritárias do colectivo por uma fundamentação esclarecedora do raciocínio dos juízes pode contribuir de tal modo não só para o maior prestígio da decisão e do órgão donde ela emana, que estas razões bem legitimam, por si só, ou seja, independentemente da modificabilidade ou anulabilidade das respostas, a novidade da solução perfilhada pelo diploma.

O regime previsto para a falta de fundamentação das respostas aos quesitos no artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil de 1961 levou à formação de uma jurisprudência quase unânime no sentido de considerar cumprido o dever de fundamentação imposto no artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil com a mera indicação dos meios de prova em que se firmou a decisão[15], em clara colisão com o intuito perseguido pelo legislador com tal inovação, como ressalta do longo trecho do preâmbulo do decreto-lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961 que antes se citou.

Na redacção primitiva da Constituição da República Portuguesa inexistia qualquer preceito relativo à fundamentação das decisões judiciais (vejam-se os artigos 205º a 223º da Constituição da República Portuguesa). Apenas com a Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, artigo 159º, foi aditado um nº 1 ao artigo 210º da Constituição da República Portuguesa prevendo: “As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei.” Com a Lei Constitucional nº 1/89, de 08 de Julho, o artigo 210º da Constituição da República Portuguesa passou a ser o artigo 208º (veja-se o artigo 128º desta Lei Constitucional). Posteriormente, com a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa passou a ser o artigo 205º, aditando-se ao nº 1 do mesmo artigo a expressão «que não sejam de mero expediente» entre «tribunais» e «são» e substituindo-se a expressão «nos casos e nos termos previstos» por «na forma prevista». O artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa passou então a prever: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

 Ao nível infraconstitucional, o decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, deu nova redacção ao nº 2, do artigo 653º do Código de Processo Civil que passou a prever: “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.” A partir desta alteração legislativa quer as respostas positivas, quer as respostas negativas carecem de ser motivadas.

Após o confronto do contexto normativo à data em que foi escrito o trecho da autoria do Sr. Juiz Conselheiro Lopes Cardoso antes citado com o actualmente vigente, importa colocar a seguinte questão: será legítimo no actual quadro constitucional e legal que o juiz forme a sua convicção com base em elementos que não é capaz de explicar? Será admissível do ponto de vista constitucional e legal que o juiz fundamente a sua convicção afirmando que a mesma se alicerçou em elementos que não é capaz de explicar, mas que é uma convicção firme?

Na nossa perspectiva, no actual contexto normativo (legal e constitucional), as respostas às interrogações formuladas só podem ser negativas. De facto, a exigência de fundamentação da decisão da matéria de facto impõe que o julgador explicite as razões determinantes da decisão tomada. Essas razões têm que ser racionais (perdoe-se o pleonasmo), perceptíveis no sentido de poderem ser verbalizadas e compreendidas e têm que possibilitar a repetibilidade do raciocínio seguido pelo julgador[16].

A imediação na produção da prova tem um peso significativo na livre apreciação da prova, porquanto, presenciando-se a produção da prova, observa-se directamente a espontaneidade dos depoentes e as reacções às questões que lhes vão sendo colocadas, percepcionando-se todo um conjunto de elementos não verbais relevantes para a formação da convicção e para a valoração e apreciação crítica da globalidade da prova. Porém, o resultado desta imediação não pode ficar no “tinteiro”, se nos é permitida a expressão, ou refugiar-se em afirmações genéricas, em palavras “passe-partout” que para tudo servem, dada a sua vacuidade e que nada de concreto descrevem ou esclarecem.

Daí que a fundamentação tenha um valor crucial na delimitação dos poderes de cognição do tribunal da Relação porquanto uma referência detalhada e concreta a elementos apenas perceptíveis com imediação para justificar a convicção formada deixará um reduzido campo de manobra à instância de recurso.

De todo o modo, não se deve hipertrofiar o relevo da imediação, ao ponto de na prática se negar o direito à reapreciação da matéria de facto. Em segunda instância[17], apesar da imediação com a prova ser mais reduzida, com atenção, a audição da gravação permite a percepção de muitos elementos que não são facilmente verbalizáveis e que são decisivos para a formação da convicção. Além disso, o défice da imediação na produção da prova pessoal pode ser compensado por uma diferente perspectiva crítica, uma diferente experiência de vida.

Expostas estas considerações de ordem geral, é tempo de entrar, de forma detalhada, na cognição da impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelo recorrente.

(…)

Assim, tudo ponderado, deve manter-se a resposta restritiva que foi dada pelo tribunal a quo ao artigo 1º da base instrutória.

3.2 Fundamentos de facto enunciados na sentença sob censura e que se mantêm, no essencial[18], por a impugnação dessa decisão pelo recorrente ter sido indeferida e os elementos do processo não imporem decisão diversa, impassível de ser destruída por outras provas e ainda por não ter sido oferecido qualquer documento superveniente que por si só seja suficiente para destruir a prova em que a decisão recorrida assentou


3.2.1

Nos autos de execução a que a vertente oposição a execução se encontra apensa figura como títulos executivos os documentos aí juntos a fls.8 e 9 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), em cuja face consta em cada um a menção “NO SEU VENCIMENTO PAGAREI(EMOS) POR ESTA ÚNICA VIA DE LIVRANÇA AO BANCO COMERICAL PORTUGUÊS, OU À SUA ORDEM, e A QUANTIA DE quarenta e oito mil e setenta e dois euros e setenta e oito cêntimos”, e De mil quinhentos e noventa e um euros e noventa e cinco cêntimos, respectivamente (alínea A) dos factos assentes,corrigida em face dos originais dos títulos exequendos).

3.2.2

No documento de fls. 8 sob as palavras impressas “local e data de emissão”, “importância”, “valor” e “vencimento”, encontra-se inscrito, respectivamente, “Porto”, “2005.02.22”, “48.072,78”, “Conta Empréstimo” e “2006-11-23” (alínea B) dos factos assentes).

3.2.3

No documento de fls. 9 sob as palavras impressas “local e data de emissão”, “importância”, “valor” e “vencimento”, encontra-se inscrito, respectivamente, “Porto”, “2003.04.16”, “1.591,95”, “Conta Empréstimo” e “2006-11-23” (alínea C) dos factos assentes).

3.2.4

Ainda na face anterior de cada um dos documentos referidos em A), à frente da menção impressa “ASSINATURA(S) DO(S) SUBSCRITORE(S)”, consta uma rubrica, sobre a menção carimbada J (…)[19], Ldª, “O Gerente” (alínea D) dos factos assentes).

3.2.5

Acima da inscrição impressa “nome e morada do sacado”, encontram-se as palavras “J (…)[20], Ldª, Apartado dez-Avelar-3240 ANSIÃO” (alínea E) dos factos assentes).

3.2.6

No verso de cada um dos aludidos documentos consta a menção “Dou o meu aval à firma subscritora”, seguida dos nomes manuscritos-assinaturas-, sendo um deles a

do opoente (alínea F) dos factos assentes).


3.2.7

O exequente alegou em sede de requerimento executivo que “o Banco exequente é dono e legitimo portador por virtude de contrato de crédito praticado no exercício do seu comércio bancário, de duas livranças no montante de 48.072,78€ e 1.591,95€, respectivamente, com vencimento em 23/11/2006, subscritas pela executada J (…) Lda. e avalizadas pelos restantes executados” (alínea G) dos factos assentes).

3.2.8

Em 03/03/2006, foi proposta acção de interdição do oponente J (…)que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ansião, sob o nº 125/06.9TBANS (alínea H) dos factos assentes).

3.2.9

Em 22/03/2006 foi anunciada a referida acção, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 945º do CPC (alínea I) dos factos assentes).

3.2.10

Por sentença proferida, em 20/12/2007 foi decretada a interdição de J (…), tendo sido fixada em Julho de 2001 – a data do começo da sua incapacidade – data do quadro clínico do oponente com carácter irreversível (alínea J) dos factos assentes).

3.2.11

Na aludida sentença foi dado como provado, além do mais, que “O requerido” (opoente) “apresenta ao corte transversal actual, entre outros sintomas, discurso por  vezes ininteligível, desorientação temporo-espacial e em relação a si próprio, alterações mnésicas graves, designadamente memória de fixação, recente e de evocação e perturbações de compreensão e do cálculo, não parecendo compreender as questões colocadas e não reconhece o dinheiro”, sendo “portador de um quadro de Demência de Alzheimer (F00.9 da CID-10), há pelo menos Julho de 2001, que o torna totalmente incapaz de gerir a sua pessoa e dispor e gerir os seus bens, de carácter irreversível (alínea L) dos factos assentes).

3.2.12

À data de emissão dos documentos aludidos em A) a F) dos factos assentes e seu aval, já era notado, pelo menos, com o esclarecimento, por pessoa que se relacionasse próximo com o opoente J (…) discurso por vezes ininteligível, desorientação temporo-espacial e em relação a si próprio e alterações mnésicas (artigo 1º) da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Da anulabilidade do aval prestado por J (…), com fundamento em incapacidade acidental

O opoente recorre da decisão sob censura sustentando que mesmo sem alteração do julgamento da matéria de facto, sempre a sua pretensão de anulação dos avales que prestou procede porquanto, tendo os avales sido prestados dentro do período que foi determinado na sentença de interdição como sendo de incapacidade do opoente, tal constitui presunção da existência da incapacidade aquando da prestação dos avales, o que é bastante para se concluir pela anulabilidade dos avais prestados pelo recorrente.

Apreciemos.

A matéria de facto, ainda que sem a necessária e desejável segurança[21], aponta no sentido dos avales cuja validade é posta em crise pelo opoentes nestes autos terem sido prestados, respectivamente, a 16 de Abril de 2003 e a 22 de Fevereiro de 2005 (vejam-se os fundamentos de facto exarados em 3.2.2, 3.2.3 e 3.2.12).

Antes de mais, em primeiro lugar, deve salientar-se que alguma da doutrina que o recorrente cita no sentido da fixação da data provável do início da incapacidade na sentença de interdição constituir presunção iuris tantum de que a partir de então se verifica a incapacidade do incapaz, ilídivel mediante a prova do contrário (artigo 350º do Código Civil)[22], está presentemente ultrapassada, porquanto, na actualidade, a jurisprudência unanimemente atribui a essa fixação apenas o valor de uma presunção judicial, ilidível mediante simples contraprova (artigos 349º e 346º, ambos do Código Civil)[23].

Em segundo lugar, refira-se que, em todo o caso, para a anulação de avales prestados antes do anúncio da propositura de interdição, não basta a prova da incapacidade do avalista, sendo necessário, além disso, demonstrar a notoriedade dessa incapacidade ou o conhecimento dessa incapacidade por parte do credor beneficiado com a prestação das garantias pessoais impugnadas ou ainda, o desconhecimento culposo dessa incapacidade.

Analisando a factualidade provada verifica-se que o recorrente apenas logrou provar a sua incapacidade na data da prestação dos avales, não tendo provado factos que permitam concluir pela notoriedade dessa incapacidade ou pelo desconhecimento culposo dessa incapacidade por parte da contraparte, não tendo tão-pouco alegado factos no sentido de que o credor cambiário conhecia a incapacidade do opoente.

Neste circunstancialismo fáctico, a pretensão do opoente de que os avales que prestou sejam anulados com fundamento em incapacidade acidental, está votada, necessariamente, à improcedência, por indemonstração da notoriedade da incapacidade do opoente, do seu conhecimento pela contraparte ou do seu desconhecimento culposo pela contraparte (vejam-se a parte final do nº 1, do artigo 257º do Código Civil e o nº 2, do mesmo artigo).

Para além disso, se acaso a prestação dos avales foi na data que foi indicada na primitiva petição de oposição aos embargos, ou seja em data posterior ao anúncio da acção de interdição, sempre faltaria a alegação e a prova da prejudicialidade para o incapaz dos avales cuja validade é posta em crise. A circunstância de estarem em causa actos unilaterais e para garantia de obrigações assumidas por outrem, não significa que tais actos sejam necessariamente gratuitos[24] e prejudiciais para o incapaz. Para que os avales prestados pelo incapaz pudessem ser anulados ao abrigo do disposto no artigo 149º do Código Civil, impunha-se a alegação e a prova de factos concretos que permitissem concluir que tais actos eram causadores de prejuízos para o incapaz. Daí que, como já adiantámos e cremos ora ter justificado, não obstante não haver prova inequívoca da data da prestação dos avales, face à factualidade alegada, não ser indispensável a ampliação da matéria de facto, porque o resultado final seria sempre a improcedência da oposição, quer se demonstrasse que os avales foram prestados antes do anúncio da acção de interdição ou depois de tal anúncio.

A terminar, refira-se ainda que relativamente a actos praticados antes do trânsito em julgado da sentença de interdição, o incapaz não tem a faculdade de escolher a anulação dos actos que praticou com base em incapacidade acidental, ou com base no regime previsto no artigo 149º do Código Civil. Este último regime é sempre aplicável quando os actos cuja validade é posta em causa são praticados após o anúncio da acção de interdição. A imperatividade da aplicação deste regime justifica-se pela teleologia que lhe está subjacente e que é a de evitar uma espécie de morte civil do interditando logo que seja anunciada a acção de interdição, pois que não fora este regime especial, a generalidade das pessoas recusaria contratar com o interditando com receio da invalidação dos actos praticados, ao abrigo do instituto da incapacidade acidental[25].

Por tudo quanto precede, conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação interposto por J (…)

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por J (…) e, em consequência, em confirmar a sentença proferida nestes autos a 20 de Dezembro de 2010. Custas do recurso de apelação a cargo do recorrente.


***

O presente acórdão compõe-se de vinte e quatro páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Coimbra, 28 de Junho de 2011

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Uma vez que estes autos estão apensados a processo instaurado no ano de 2007, será aplicável a este recurso a redacção do Código de Processo Civil, que vigorava antes das alterações introduzidas pelo decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Repare-se que a lei não indica em que segmento das alegações devem ser observados os referidos ónus. Na nossa perspectiva, essas especificações devem decorrer quer do corpo das alegações, local onde de modo desenvolvido se exporão os pontos de facto impugnados bem como as razões dessa impugnação, quer das conclusões das alegações, segmento do recurso que de forma resumida, precisa e incisiva delimitará o objecto do recurso. Dada a função das conclusões das alegações, a indicação dos pontos de facto impugnados é o que aí se nos afigura imprescindível.
[3] Sobre esta classificação veja-se, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora 2009, Armindo Ribeiro Mendes, páginas 50 a 51.
[4] Ou de cada parte do depoimento. No caso de gravação digital, poderá ser indicado na acta a hora do início e do termo de cada depoimento, mas essa indicação não permitirá localizar segmentos desse depoimento, na medida em que, nesse caso, relativamente a cada depoimento ou segmento de depoimento gravado de modo autónomo, existe uma contagem independente com referência à duração de cada gravação efectuada e não uma contagem global referente à sessão da audiência de discussão e julgamento.
[5] A este propósito veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 346/2009, de 08 de Julho de 2009, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, acessível no site do Tribunal Constitucional e publicado na segunda série do Diário da República, nº 159, de 18 de Agosto de 2009.
[6] Neste sentido, que nos parece mais conforme com as exigências de prevalência do fundo sobre a forma visadas pela Reforma do Processo Civil operada pelo decreto-lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro e pelo decreto-lei nº 180/96, de 25 de Setembro, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Outubro de 2008, relatado pela Sra. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no processo nº 07B3011. Esta interpretação é também a que conduz a uma congruência dos poderes de actuação do tribunal em primeira e em segunda instância, evitando-se o contubérnio de um processo civil em primeira instância que dá prevalência ao fundo sobre a forma com um outro processo civil em segunda instância hiperformalista que se desinteressa pela finalidade última que corresponde à instrumentalidade do processo e que é a resolução substancial do litígio que opõe as partes. Nos recursos a que se aplique o regime introduzido pelo decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, face à estatuição de imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto no caso de inobservância do disposto no nº 1, alínea b), do artigo 685º-B, do Código de Processo Civil (artigo 685º-B, nº 2, do Código de Processo Civil), este procedimento não será viável. Ainda assim, mesmo neste novo regime, cremos que nos casos de recurso que vise impugnação da matéria de facto, quando se detectem vícios nas conclusões do recurso, no que respeita essa impugnação, será viável o aperfeiçoamento das conclusões por força do disposto no artigo 685º-A, nº 3, do Código de Processo Civil. Além disso, é de questionar a conformidade constitucional da estatuição de imediata rejeição do recurso que vise a impugnação da matéria de facto nos termos previstos no nº 2, do artigo 685º-B, por poder configurar-se como um ónus excessivo e desproporcionado atentatório do direito fundamental de acesso ao direito (sobre esta questão veja-se com pertinência, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2010, 2ª edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 439 e 440).
[7] Sobre esta questão veja-se, António Santos Abrantes Geraldes in Julgar, nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76. Não parece é que esse erro haja de ser notório, bastando que seja detectável um erro na apreciação e valoração da prova (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 241/05.4TTSNT.L1.S1 e acessível no site da DGSI).
[8] Nos termos do disposto no artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil, o “tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
[9] Estas provas indirectas ou indiciárias, como já antes deixámos escrito, são em matéria civil as denominadas presunções judiciais reguladas nos artigos 349º e 351º do Código Civil. Já houve no nosso direito uma regulação mais detalhada quanto à utilização da prova por presunções e em termos bastante próximos quanto àqueles que devem nortear a utilização das provas indirectas, regulação que constava do livro III, título V, artigo XXXII, § 969 do Código Comercial de 1833, previsão que é a tradução literal e quase integral do artigo 1353 do famoso Code Civil, vulgarmente conhecido como o Código Napoleão.
[10] Sobre a prova indiciária em processo penal, mas em termos que cremos transponíveis para o processo civil vejam-se, com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J. M. Bosch Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, páginas 231 a 249; La Prueba Indiciaria da autoria de Andrés Martínez Arrieta in La Prueba en el Proceso Penal, publicado por Centro de Estudios Judiciales, Colección Cursos, vol. 12, Madrid 1993, páginas 53 a 73; Tratado de la Prueba Criminal da autoria de C. J. A. Mittermaier, undecima edición adicionada y puesta al dia por Pedro Aragoneses Alonso, Editorial Reus, SA, 2004, páginas 363 a 366, 371 a 375 e 385 a 387. No domínio civil, reconduzindo a gravidade, precisão e concordância dos factos que servem de base à presunção à prudente apreciação do juiz veja-se, Boletim do Ministério da Justiça nº 110, Provas (Direito Probatório Material), Professor Vaz Serra, páginas 190 a 192.
[11] Importa realçar que nem todos os que citam a passagem transcrita têm uma atitude negacionista ou restritiva da intervenção do Tribunal da Relação na reapreciação da matéria de facto. Assim sucede com o Sr. Juiz Desembargador António Santos Abrantes Geraldes que desde a primeira hora se bateu por uma efectiva segunda instância em matéria de facto e que na segunda edição da sua obra Recursos em Processo Civil, 2008, página 281, nota 392, cita o aludido trecho.
[12] O artigo 158º do Código de Processo Civil de 1939 dispunha: “As decisões proferidas sôbre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas, quer defiram quer indefiram. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
[13] As respostas negativas não careciam de ser fundamentadas. Atente-se no ilogismo desta diversidade de exigências de fundamentação, tanto mais que, em caso de improcedência da pretensão em juízo, o núcleo dos factos não provados constituirá, em regra, a razão fulcral para esse insucesso. Ainda actualmente, na generalidade dos casos, no que respeita à fundamentação das respostas negativas, os tribunais limitam-se a uma fundamentação genérica das respostas negativas, por vezes em alternativa, afirmando-se, por exemplo, que as respostas negativas resultaram de não ter sido feita prova da factualidade em causa ou de ter sido produzida prova do contrário.
[14] O artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil de 1961 dispunha: “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão: de entre os factos quesitados, o acórdão declarará quais o tribunal julga ou não julga provados e, quanto àqueles, especificará os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador; mas não se pronunciará sobre os que só possam provar-se documentalmente, nem sobre os que estejam plenamente provados por confissão reduzida a escrito, acordo das partes ou documentos”.
[15] Neste sentido vejam-se, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 1983, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VIII 1983, tomo 4, páginas 143 a 145 e do Tribunal da Relação do Porto de 09 de Abril de 1987, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XII 1987, tomo 2, páginas 234 a 236; em sentido diverso veja-se o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Janeiro de 1981, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 305, página 346.
[16] Afigura-se-nos que estas exigências decorrem de um princípio nuclear de direito, na terminologia adoptada por António Cortês in Jurisprudência dos Princípios, Universidade Católica Editora 2010, páginas 263 a 266, mais propriamente o princípio do controlo crítico do poder.
[17] Mesmo em primeira instância, a imediação relativamente a alguns meios de prova é imperfeita. Assim sucede nas teleconferências, em que se tem uma visão muito limitada da testemunha, não se tendo sequer a percepção do espaço envolvente da testemunha. Por vezes, nem a imagem da testemunha é perceptível. Por outro lado, a violação do princípio da concentração (artigo 656º do Código de Processo Civil) constitui um duro ataque à imediação porquanto quanto mais tempo medeia entre a produção da prova e o momento em que a mesma é apreciada e valorada, menos vivas são as impressões que a prova foi produzindo no julgador e maiores as dificuldades na recuperação da memória de tais dados e na sua verbalização.
[18] Alterou-se a identificação do beneficiário das promessas de pagamento exequendas face ao teor dos originais dos títulos exequendos.
[19] Por lapso escreveu-se Cuz, lapso que pela sua ostensividade se corrigiu oficiosamente.
[20] Por lapso escreveu-se Cuz, lapso que pela sua ostensividade se corrigiu oficiosamente.
[21] Apesar de alguma insegurança nesta asserção, cremos que não estão reunidos os requisitos legais para determinar a ampliação da matéria de facto, porquanto, qualquer que fosse o resultado dessa determinação, com a fixação da prestação dos avales em data anterior ao anúncio da acção de interdição ou em momento posterior a este, sempre a sorte da acção seria a mesma, conforme iremos tentar demonstrar.
[22] Neste sentido vejam-se: Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Almedina 1974, 4ª reimpressão, Manuel A. Domingues de Andrade, página 91 e nota 2; Processos Especiais, Volume I, Reimpressão, Coimbra Editora 1982, Professor Alberto dos Reis, páginas 127 e 128. 
[23] Neste sentido vejam-se os acórdãos já citados na nota 20 deste acórdão.
[24] Veja-se com interesse, a propósito da prestação de garantias, em sede de insolvência, o critério aferidor da gratuitidade ou onerosidade de tais actos in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora 2005, Carlos Alberto da Mota Pinto, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, páginas 259 e 260, nota 291.
[25] Para a justificação do regime do artigo 149º do Código Civil vejam-se: Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora 2005, Carlos Alberto da Mota Pinto, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, páginas 238; Código Civil Anotado, Coimbra Editora 1987, Volume I, Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição revista e actualizada com a colaboração de M. Henrique Mesquita, página 156, anotação 2.