Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3810/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: COMPRA E VENDA DE VIATURA
ENTREGA DE OUTRA VIATURA COMO PAGAMENTO DE PARTE DO PREÇO
VÍCIO OU DEFEITO DESTA - DIREITOS DO VENDEDOR
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 837º, 838º E 874º DO C. CIV.
Sumário: I – Num contrato de compra e venda de veículo automóvel, em que o comprador paga parte do preço mediante a entrega de outra viatura usada, à qual é atribuído um valor para o efeito, esta entrega corresponde a uma dação em cumprimento, prevista no artº 837º do C. Civ..
II – Tal dação em cumprimento é uma causa extintiva das obrigações, que consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, visando extinguir imediatamente a obrigação ou parte dela .

III – Existindo um vício da coisa entregue no âmbito da referida dação em cumprimento, o artº 838º do C. Civ. concede ao credor as mesmas garantias que se encontram estabelecidas para a compra e venda, podendo optar pela prestação primitiva e reparação dos danos sofridos .

IV- Assim, quando o veículo entregue como forma de pagamento de parte do preço de outra viatura adquirida, vier a revelar defeitos que impedem a sua circulação, assiste ao vendedor da segunda viatura o direito de optar pelo pagamento em numerário a que o seu comprador estava inicialmente vinculado, independentemente de ter ou não existido culpa da parte deste na criação do vício da coisa, bem como a ser reparado pelos danos sofridos .

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra,

I – RELATÓRIO

A...., instaurou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a importância de esc. 1.341.904$00, acrescidos de juros vincendos, à taxa de 10%, desde a citação, até integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que no dia 22 de Outubro de 1996, celebrou com o réu um contrato de compra e venda relativo ao veículo automóvel de matrícula 92-71-DS, pelo preço de esc. 1.750.000$00, para cujo pagamento o réu lhe entregou um outro veículo de matrícula 36-72-EO, que a autora vendeu posteriormente a C..., o qual veio a ser apreendido pela Polícia Judiciária, em virtude de se encontrar viciado, uma vez que nele havia sido instalado um motor importado sem pagamento de quaisquer impostos e o cumprimento das formalidades legais.
Em virtude de tais factos, a autora, porque tinha vendido a viatura a C..., viu-se na obrigação de adquirir outro veículo igual ao EO, para entregar a esta última, posto que ficou privada do uso do mesmo, o que fez, tendo comprado o veículo de matrícula 47-39-FA de marca FIAT, por esc. 1.550.000$00, tendo, assim, ficado prejudicada no montante do preço por que adquiriu o EO e das despesas de entrega do mesmo para venda.
Na contestação, o réu negou ter qualquer responsabilidade pelo pagamento da quantia peticionada pela autora, por considerar, como acima ficou dito, que o único responsável pelos prejuízos alegadamente suportados pela autora foi D..., por ter sido ele quem procedeu à viciação do veículo, o que fez sem o seu conhecimento, tendo-se limitado a comprar-lhe o veículo, desconhecendo as suas características.
No mesmo articulado deduziu incidente de intervenção principal provocada do referido D..., na qualidade de único devedor, incidente este que foi julgado improcedente.
Proferido o despacho saneador, foram organizados a matéria assente e a base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
Respondeu-se à matéria de facto que integrava a base instrutória que não sofreu qualquer reclamação.
Foi proferida sentença, a qual julgou a acção provada e procedente, tendo condenado o Réu B... a pagar à autora, A..., a importância de esc. 1.341.904$00, acrescida de juros de mora, às taxas de 10%, desde a citação, até 17 de Abril de 1999, de 7%, desde 18 de Abril de 1999, até 30 de Abril de 2003 e, a partir de 1 de Maio de 2003, à taxa de 4%, até integral pagamento ( Portarias nº 1171/95 de 25.09; nº 263/99 de 12.4 e nº 291/03 de 8.4 ).
Inconformado com tal decisão, veio o Réu recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações nas quais exibiu as seguintes conclusões:
A - No âmbito do proc. n.º 127/1998 que correu termos no 2°. Juízo do Tribunal de Tomar, foi o Recorrente condenado no pagamento da indemnização pedida pelo A. acrescida de juros, desde a citação até integral pagamento;
B - A Srª. Juiz a quo fundamentou a sua decisão na nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre A. e R. donde
resultaria a obrigação do R. indemnizar a A. pelos prejuízos
decorrentes do facto ilícito que originou a nulidade do contrato;
C - Da audiência de julgamento, resultou provado que no dia
22/10/1996, a A. e R. celebraram um contrato de compra e venda relativo a um veículo automóvel com a matrícula 92-71-DS pelo preço de 1.750.000$00 (8.728,96 €) tendo o R. (comprador) entregue, para pagamento do mesmo, o veículo de matrícula 36- -72-EO no valor de 1.275.000$00 (6.359,67 €), bem como uma letra de câmbio no montante de 475.000$00 (2.370,00 E);
D - Em 23/5/1995, o referido veículo de matrícula 36-72-EO foi apreendido pela Policia Judiciária, já na propriedade de um terceiro (C...), porquanto nele tinha sido instalado um motor importado sem cumprimento das formalidades legais, pelo que a A. entregou a C... um outro veículo com a matrícula 47-39-FA no valor de 1.550.000$00 (7.731,37 €);
E - Mais ficou provado na douta sentença, nomeadamente através da alínea H da matéria assente, da resposta aos n°s. 7 e 8 da base instrutória e da certidão de fls. 46 e s.s., que o autor da viciação do veículo automóvel foi D..., tendo o mesmo sido condenado pela prática de um crime de falsificação na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e que nem a A. nem o R. tinham conhecimento de tal viciação;
F - Na petição inicial, a A. requer que o R. seja condenado no
pagamento dos prejuízos causados pela viciação do veículo 36-72- EO, facto que fez com que a A. entregasse a C... a viatura com a matrícula 47-39-FA, pelo que se considera
prejudicada no montante de 1.341.904$00 (6.693,39 €);
G - Salvo o devido respeito, a Srª. Juiz a quo, julgando a acção procedente, interpretou erradamente o artigo 289°. do Código Civil, bem como deixou de aplicar, quando o caso concreto o exigia, o regime da responsabilidade civil extra contratual previsto nos artigos 483.° e ss. do C. Civil;
H - Com efeito, o pedido formulado pela A. corresponde aos danos causados pelo facto ilícito (viciação do motor do automóvel), pelo que, tendo ficado provado que o Autor de tal facto foi D..., e que o Réu não tinha conhecimento da situação, no se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extra contratual prevista no artigo 483.° e ss. do C.C., pelo que o R. deveria ser absolvido do pedido;
I - Por outro lado, considerando a Srª. Juiz a quo que o contrato celebrado por A. e R. está ferido de nulidade, porquanto se reporta a objecto legalmente impossível, daqui retira o fundamento da obrigação de indemnizar;
J - Ora, do disposto no artigo 289°. do C.C. decorre apenas a obrigação de restituição das prestações, como consequência automática da declaração de nulidade e não de um eventual enriquecimento sem causa ou de qualquer outro regime, mas não decorre a obrigação de indemnizar quando não estão preenchidos os requisitos do art°. 483° do C.C.;
L - Como consequência da declaração de nulidade, a obrigação de restituição deve ser decretada oficiosamente, nos termos do art°. 286° CC., não sendo de aplicar o artigo 661°. nº. 2 do C.P.C., bem como não pode ser acrescida de juros;
M - No caso concreto, e uma vez que os veículos que constituíram as prestações do contrato já no pertencem a A. e R., a obrigação de restituição no valor correspondente, ou seja, no montante de 1 .750.000$00, respectivamente, pelo que operar-se-ia a compensação conforme disposto no artigo 847.°, n.º 1 do C.C, não podendo a A. exigir do R. o pagamento de qualquer quantia;
N - A douta decisão recorrida, viola os preceitos ínsitos, nas normas 286° e 289° do C. Civil e não fez uma correcta interpretação do art°. 483.° do mesmo código, norma esta em que se fundamentou o pedido formulado pela ora recorrida.

A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais sustentou a bondade da decisão recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.
Foram cumpridos os vistos legais.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO;
QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pelos recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso em apreço, os recorrentes não impugnam a matéria de facto, sendo que o recurso se cinge à matéria de direito.
São duas as questões que o apelante nos coloca neste seu recurso, as quais prendem-se, em primeira linha, com a natureza da responsabilidade civil que aqui estará em causa – contratual ou extracontratual – e, numa segunda abordagem, com os efeitos decorrentes da declaração de nulidade do negócio jurídico celebrado entre a autora e o réu – inexistência de obrigação de indemnizar, compensação e não condenação em juros.
III – FUNDAMENTOS

1. De facto

Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora dedica-se à comercialização de veículos automóveis, novos e usados (alínea A) da matéria assente);
2. No exercício da actividade descrita em A), em 22 de Outubro de 1996, a autora declarou vender ao réu, que declarou comprar-lhe, pela importância de esc. 1.750.000$00, um veículo automóvel de marca Opel, modelo Astra Van, 1.7 D, ligeiro de mercadorias, com a matrícula 92-71-DS (alínea B) da matéria assente);
3. Por conta da quantia referida em B), o réu entregou à autora o veículo ligeiro de mercadorias de marca Fiat, modelo Punto Van TD, com a matrícula 36-72-EO (alínea C) da matéria assente);
4. Ao qual foi atribuído o valor de esc. 1.275.000$00 (alínea D) da matéria assente);
5. Ainda, por conta da quantia referida em B), o réu entregou à autora uma letra de câmbio, com vencimento a 90 dias, no montante de esc. 475.000$00 (alínea E) da matéria assente);
6. O veículo 92-71-DS foi entregue ao réu (alínea F) da matéria assente);
7. Que, por seu turno, entregou à autora o veículo de matrícula 36-72-EO (alínea G) da matéria assente);
8. A autora estava convencida de que o EO se encontrava em condições técnicas e legais de circulação (alínea H) da matéria assente);
9. A autora procedeu a uma revisão mecânica e de pintura ao EO (alínea I) da matéria assente);
10. Posteriormente, declarou vendê-lo a C..., que declarou comprá-lo à autora (alínea J) da matéria assente);
11. Em 23 de Maio de 1997, o EO foi apreendido pela Polícia Judiciária (alínea L) da matéria assente);
12. Quando se encontrava a circular em poder de C... (alínea M) da matéria assente);
13. Tal apreensão verificou-se, porque no EO havia sido montado um motor que havia sido importado, sem a liquidação de quaisquer impostos e o cumprimento das formalidades legais (alínea N) da matéria assente).
14. Em resultado do facto descrito em N), a autora entregou, em substituição do EO, outro veículo automóvel a C... (resposta ao nº 1 da base instrutória);
15. De marca «Fiat», modelo Punto Van TD, com a matrícula 47-39-FA (resposta ao nº 2 da base instrutória);
16. O qual custou à autora a importância de esc. 1.550.000$00 (resposta ao nº 3 da base instrutória);
17. Sem que o EO voltasse a ser entregue a C... (resposta ao nº 4 da base instrutória);
18. Na revisão do EO, a autora despendeu esc. 66.904$00 (resposta ao nº 5 da base instrutória);
19. D... havia declarado vender ao réu o veículo 36-72-EO, que havia declarado comprar-lho, pela importância de esc. 1.500.000$00 (resposta ao nº 6 da base instrutória);
20. Tendo sido o D... o autor do facto descrito em N) (resposta ao nº 7 da base instrutória);
21. Sem que o réu de nada se tenha apercebido, enquanto circulou com o EO (resposta ao nº 8 da base instrutória);
22. No 2º Juízo deste Tribunal, correu termos o processo comum colectivo nº 7/98, contra D... (art. 10º da petição inicial e certidão de fls. 46 e seguintes);
23. No qual, por acórdão proferido em 8 de Maio de 1998, transitado em 22 de Maio de 1998, o mesmo foi condenado, como autor material de um crime de falsificação p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. b) e nº 3 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, com fundamento, entre outros factos, por ter alterado a chapa de matrícula e o número de chassis do veículo EO, referido em G) (art. 10º da petição inicial e certidão de fls. 46 e seguintes).

2. De direito

Apreciemos as questões supra elencadas, suscitadas pelo recorrente.
Como passo prévio à apreciação de tais questões, importará em primeira linha enquadrar juridicamente a situação apurada e dada por comprovada, a qual, afigura-se-nos, não terá os contornos jurídicos que lhe foram dados na sentença recorrida, situação que por certo condicionará a apreciação daquelas.
Com efeito, estamos face a um contrato de compra e venda (art.º 874.º do Código Civil( Diploma a que nos referiremos de ora em diante sempre que expressamente não indicarmos outro.)), através do qual o réu, aqui apelante, adquiriu à autora, aqui apelada, e esta lhe vendeu, a viatura automóvel Opel Astra com a matrícula 92-71-DS, pelo valor de 1.750.000$00 (ponto 2 do probatório)( O preço a que alude o art.º 874.º tem sido entendido restritivamente como reportado a numerário. Veja-se a tal propósito o acórdão do S.T.J de 08/05/91 (in www.dgsi.pt) , em que foi relator o Senhor Conselheiro Beça Pereira: “Com efeito, "preço" na compra e venda não pode ser representado por coisa diversa do dinheiro (Pires de Lima - Antunes Varela - obra indicada, (Código Civil anotado) II, 2.ª edição, página 153; Almeida Costa, "Noções de Direito Civil", 2 edição, pagina 335); neste aspecto, o Código Civil de 1867 era expresso, pois mencionava logo no artigo 1544, inicial do capitulo sobre a compra e venda: "... e o outro se obriga a pagar por ela certo preço em dinheiro".
Não pode duvidar-se da voluntariedade da supressão do limitativo "... em dinheiro" de um Código para o outro, mas não encontramos razões para assentar nela uma orientação diferente, neste aspecto. É sintomático que o projecto de Galvão Teles contenha uma definição de compra e venda que passou integralmente para o artigo 874 do Código de 1966; e que, na sua fundamentação, se aluda, a certo passo, "a quantia clausulada a titulo de preço..." - ("Contratos Civis", em "Boletim", 83, paginas 184 e 124).”).
Foi acordado entre as partes que tal preço seria pago mediante a entrega:
a) duma letra no valor de 475.000$00 (ponto 5 do probatório) e
b) da viatura automóvel Fiat Punto, com a matrícula 36-72-EO, à qual foi atribuído o valor de 1.275.000$00 (pontos 3 e 4 do probatório).
Ora se é certo que o contrato de compra e venda existe, não deixa de ser menos verdade que o acordo entre as partes no sentido de fazerem com que o quantitativo monetário fixado como contraprestação da entrega do veículo fosse cumprido através da entrega duma letra e duma outra viatura automóvel, é também uma realidade. Traduz-se esta, numa alteração de prestação que corresponderá juridicamente às figuras da dação pro solvendo (caso da letra) e de dação em cumprimento (no caso do veículo EO).
Por via desse acordo, consagrou-se que o referido veículo EO teria o valor de 1.250.000$00.
No caso, apenas é colocada a questão relativa à viatura EO, pelo que não abordaremos a letra, que como referimos supra representa uma dação pro solvendo.
Como dissemos, o acordo estabelecido entre as partes no sentido da contraprestação monetária pela aquisição do veículo Opel Astra, ser cumprida, em parte, através da entrega da viatura EO traduz a existência duma dação em cumprimento, a qual encontra-se prevista no art.º 837.º.
Trata-se duma causa extintiva das obrigações, consistindo na realização de uma prestação diferente da que é devida, visando extinguir imediatamente a obrigação (ou parte dela, nos casos, como o presente, em que a forma de cumprimento é mista, não se vislumbrando qualquer razão para se não aceitar a possibilidade dos contraentes convencionarem a dação em cumprimento apenas para parte da obrigação, afigurando-se-nos que tal se enquadra dentro do princípio da liberdade contratual previsto no art.º 405.º).
Tal causa extintiva tem pois por características fundamentais o facto de pressupor um acordo entre os contraentes no sentido de alterarem o meio de cumprimento da obrigação (aqui, parte do preço em numerário foi acordado que seria pago mediante a entrega da viatura EO) e de tal meio de cumprimento implicar a imediata satisfação do direito de crédito do credor e, consequentemente, levar à sua extinção parcial.
Trata-se de uma causa extintiva diversa da dação pro solvendo. Nesta, como se refere no acd. Do STJ de 1/07/2004( Em que foi relator o Senhor Conselheiro Gonçalves da Costa, in www.dgsi.pt ), expressa por seu turno a lei, por um lado, que se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu direito de crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva (artigo 840º, nº. 1, do Código Civil).
E, por outro, que se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, presume-se feita nos termos do número anterior (artigo 840º, nº. 2, do Código Civil).
Caracteriza-se, pois, essencialmente, a dação pro solvendo pela circunstância de, na intenção das partes, não pretenderem a imediata extinção da obrigação, antes configurando que ela subsista até à extinção do direito do credor por virtude da sua satisfação.
A diferença essencial entre a dação em cumprimento e a dação em função do cumprimento consubstancia-se essencialmente na circunstância de nesta última, o devedor pretender facilitar ao credor a realização do seu direito de crédito, realizando uma prestação diversa da devida, tendente a esse fim, e, na primeira, o devedor pretender extinguir imediatamente a sua obrigação por via de prestação diversa da devida.
No caso em apreço, há a registar que o Réu terá cumprido com a sua contraprestação, pois que entregou desde logo a viatura EO, bem como a letra de câmbio.
Sucede porém que quanto ao veículo algo se passou mais tarde.
Assim, quanto a essa viatura EO, veio posteriormente a verificar-se que a mesma, depois de ter sido vendida a uma terceira pessoa, foi apreendida pela Polícia (por se tratar de veículo objecto de viciação) e retirada da esfera patrimonial daquela adquirente, obrigando a que a apelada tivesse que entregar a esta uma outra viatura.
É neste contexto que a autora pretende obter do réu a quantia de 1.275.000$00 (valor do EO) acrescida de esc. 66.904$00, decorrentes do valor que despendeu com a revisão do mesmo.
Comprovou-se que o veículo EO foi apreendido pela Polícia Judiciária por se encontrar viciado, sendo que o autor de tal viciação foi condenado por ter alterado a chapa de matrícula e o número de chassis do veículo EO.
Tal situação levou a que essa viatura saísse fora da circulação, estando pois vedado o seu uso.
É inquestionavelmente uma situação de vício da coisa pois que a mesma não está tendo a utilidade para que foi criada (circular nas vias terrestres) e para que foi posta no comércio, sendo irrelevante se o vício deriva da coisa em si ou se decorre de impossibilidade legal.
Ora, existindo o vício da coisa entregue no âmbito da prestação, decorrente duma situação de dação em cumprimento, que direitos assistem ao credor?
O art.º 838.º responde-nos a tal questão, referindo que o credor goza das mesmas garantias que se encontram estabelecidas para a compra e venda, podendo porém optar pela prestação primitiva e reparação dos danos sofridos.
No caso em apreço, atento o pedido formulado pela autora( Art.º 21.º da petição inicial: Pelo que os prejuízos sofridos pela A. totalizam esc. 1.341.904$00 (esc. 1.275.000$00 valor do EO + esc. 66.904$00 da revisão do EO), que ora reclama do R. ) verificamos que terá optado pela segunda alternativa.
Efectivamente, tendo presente o que se deixou dito, assiste à autora o direito de optar pelo pagamento em numerário a que o réu estava inicialmente vinculado, independentemente de ter ou não existido culpa da parte deste na criação do vício da coisa, bem como a ser reparada pelos danos sofridos.
Ora, a autora pediu que o réu lhe restituísse o quantitativo monetário correspondente ao valor que tinham fixado para a viatura EO (esc. 1.275.000$00), acrescido da quantia que despendeu com a revisão do mesmo (esc. 66.904$00).
Trata-se, no que concerne à primeira quantia, da primitiva prestação a que o réu se vinculara perante a autora e, no que concerne à segunda, do quantitativo que foi gasto no arranjo da viatura e que permitiu a sua venda a terceiros, sendo inquestionavelmente um dano passível de ser ressarcido.
Assim sendo, tem todo o sentido a acção proposta, bem como o pedido principal nela formulado, o qual deverá proceder, embora por razões distintas das que foram expressas na sentença recorrida, sendo certo porém que este tribunal não está limitado na sua apreciação pelo que é alegado pelas partes no tocante a interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do Código de Processo Civil).
Quanto à questão que tinha sido colocada pelo apelante no que respeita à responsabilidade extracontratual, face ao quadro fáctico-jurídico que aqui se deixou expresso, há que concluir sem margem para dúvidas que estamos perante uma situação nítida de responsabilidade contratual nos termos supra indicados, não sendo por isso de acolher tal questão.
No que concerne aos efeitos decorrentes da declaração de nulidade do contrato, não se tendo verificado esta, logicamente fica prejudicada a abordagem que teria de ser feita caso a mesma se verificasse.
Resta-nos apreciar a questão inerente à condenação do réu no pagamento de juros.
Na sentença condenou-se o réu a pagar à autora juros de mora à taxa legal, a contar da citação, invocando-se o art.º 1270.º para sustentar tal decisão.
O recorrente sustentou não serem devidos quaisquer juros, baseado no facto de, na sua óptica, se estar perante uma obrigação de restituição derivada da verificação da nulidade do contrato, pelo que a restituição não deveria ser acrescida de juros.
Vejamos.
Está em causa o nascimento da obrigação de juros moratórios que, como se sabe, se vencem, em princípio, a partir da mora. Isto é, da data em que ocorre a falta culposa de cumprimento por parte do devedor da obrigação principal, a qual, analisando-se numa prestação positiva, há-de continuar a ser possível (art.º 804.º, n.º 2 do CC) e há-de apresentar-se como certa, líquida e exigível.
Como é fácil de ver, as dúvidas suscitadas pelo apelante quanto ao facto de não deverem ser fixados juros de mora, reportava-se a uma situação de nulidade do contrato de compra e venda que, como demonstrámos já, não corresponde à configuração fáctico-jurídica que aqui delineámos para o caso em apreço.
Ora, no âmbito do que aqui foi decidido, no enquadramento que demos à situação sub judice, não se pode assumir outra posição que não seja a de condenar (como se condenou na 1.ª instância, embora com fundamento diverso) o réu no pagamento à autora de juros de mora desde a citação, pois que desde tal interpelação poderia e devia ter cumprido com a sua obrigação de pagamento da prestação inicialmente prevista acrescida do quantitativo resultante das despesas efectuadas pela autora com a revisão da viatura (artgs. 804.º, n.ºs 1 e 2 e 805.º, n.º 1, não se aplicando ao caso nenhuma das situações previstas nas alíneas do n.º 2 deste último normativo).
Do que se deixa dito há pois que concluir que também quanto à questão dos juros não assiste qualquer razão à apelante, sendo os mesmos devidos.

IV – DECISÃO

Assim, acorda-se em negar provimento ao recurso e, nessa conformidade, mantém-se o decidido, pese embora fundado em raciocínio substancialmente diverso do desenvolvido na sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra,