Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2082/06.2TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 11/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 107º, DO RGIT, 129º, DO C. PENAL E 71º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Estando em causa no pedido cível deduzido, pelo assistente, não directamente o incumprimento da obrigação legal (tributária) de entregar as prestações devidas à segurança social, mas sim a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, pelo qual o arguido/recorrente, tal como a sociedade arguida, foram pronunciados e vieram a ser condenados, no plano substantivo, colhem aplicação as normas do Código Civil, para as quais remetem, quer o artigo 129º, do C. Penal, quer o artigo 3º, do RGIT e, consequentemente, por força do princípio da adesão (cfr. art.º 71º e ss., do C. Proc. Penal), deverá o pedido cível, cuja fonte entronca na prática do crime, ser formulado e conhecido, no processo penal, carecendo de fundamento a invocada violação dos referidos art.ºs 71º, do C. Proc. Penal e 129º, do C. Penal e, bem assim, do art.º 7º, do D.L. n.º 42/2001, de 09.02 (regime jurídico especial do processo de execução das dívidas à segurança social), sustentado numa diferente fonte de indemnizar a qual, seguramente, não se confunde com a que suportou a dedução do pedido e respectivo conhecimento.
Decisão Texto Integral:

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I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 2082/06.2TDLSB da Comarca do Baixo Vouga – Oliveira do Hospital – Juízo de Instância Criminal foram pronunciados para julgamento com a intervenção do tribunal singular os arguidosA...., Lda.”, B... e C..., melhor identificados nos autos, pela prática, em autoria material, na forma consumada:
- a arguida “A...– ., Lda” um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos pelos artigos 11º, 30º, n.º 2 e 79º do Código Penal e artigos 7º, nº 1 8º e 107º, n.º 1, por referência ao artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.);
- a arguida B..., um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma cotinuada, p. e p. pelos artigos 30º, nº 2 e 79º do Código Penal e 6º, 7º, 8º, n.º 1 e 107º, nº 1, por referência ao artigo 105, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.);
- o arguido C..., um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2 e 79º do Código Penal e artigos 6º, 7º, 8º, nº 1 e 107º, nº 1, por referência ao artigo 105º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.) – cf. fls. 521 a 529.

2. Realizado o julgamento, por sentença de 31.05.2012 foi proferida a seguinte decisão:
“Nestes termos o Tribunal decide:

1. Condenar o arguido C..., pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, nº 1, por referência ao artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), o que perfaz o montante total de € 960 (novecentos e sessenta euros), e no caso de não pagamento, em 80 (oitenta) dias de prisão subsidiária;
2. Condenar a arguida “A...., Lda”, pela prática de um crime de abuso de confiança á Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, nº 1, por referência ao artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), o que perfaz o montante total de € 960 (novecentos e sessenta euros);
3. Absolver a arguida B... do crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, nº 1, por referência ao artigo 105º, nº 1, do RGIT, de que se encontrava acusada;
4. Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, em consequência, condenar os arguidos/demandados civis «A...., Lda» e C... a pagar a quantia de € 23.417,08 (vinte e três mil quatrocentos e dezassete euros e oito cêntimos) ao Instituto de Segurança Social de Aveiro, IP, acrescida de juros, desde a notificação para contestar o pedido cível, à referida taxa legal de 4%, até integral pagamento, absolvendo a arguida B... do montante contra si peticionado;
(…)”.

3. Inconformado com o decidido recorreu o arguido C..., limitando o recurso à parte cível, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1) A obrigação de pagamento das contribuições e acréscimos legais a favor da Segurança Social emerge da relação jurídica administrativa – tributária especial e rege-se pela legislação de direito público;
2) O princípio da adesão ao processo penal e o atinente regime constante dos artigos 71º e segs, do CPP, apenas admite a formulação e conhecimento de pedido de indemnização de natureza civil conexa com o facto crime, portanto indemnização cuja obrigação se situa no âmbito das relações jurídicas privadas.
3) Consequentemente, o pedido de indemnização civil formulado pela Segurança Social extravasa esse princípio da adesão e o atinente regime, pelo que se verifica uma excepção dilatória inominada, que determina o arquivamento do pedido erradamente dito cível, obstando ao seu conhecimento.
4) Foram violadas, entre outras, os artigos 71º e 129º do CPP, art. 7º, do DL n.º 42/2000, de 09/02, entre outras.

Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser provido e, consequentemente, revogada a douta sentença no segmento impugnado, proferindo-se douto acórdão que absolva o recorrente do pedido de pagamento da indemnização civil.

4. Ao recurso respondeu o assistente/demandante Instituto da Segurança Social, I.P., concluindo:

1. Tendo o ora recorrente sido condenado pelo Ilustre Tribunal a quo no pagamento do pedido de indemnização civil formulado, veio recorrer desta decisão com o fundamento que o pedido não deverá ser admitido, esgrimindo o seu entendimento no argumento que a responsabilidade em causa é meramente tributária, não dando lugar a qualquer responsabilidade civil.
2. Ora, não se pode concordar com tal argumento, porque, embora o crime de que o arguido vêm acusado tenha na sua génese o incumprimento de uma relação contributiva, consubstanciando-se num crime omissivo puro de não entrega das cotizações deduzidas nos valores das retribuições, não se confunde com essa mesma relação.
3. Como exemplos destas diversas realidades indica-se, entre outros:
- A responsabilidade tributária do aqui recorrente é subsidiária à da sociedade da qual é gerente, já a responsabilidade criminal, e a responsabilidade civil dela decorrente, é originária e cumulativa, estando o arguido acusado como co-autor da prática do crime;
- As contribuições (tributos) em dívida correspondem a soma das parcelas da responsabilidade da entidade empregadora e da responsabilidade do trabalhador (contribuições e cotizações), já os valores em dívida que consubstanciam o crime são unicamente os referentes aos trabalhadores (cotizações).
4. Assim sendo, a sua responsabilidade criminal, e a responsabilidade civil extra-contratual dela decorrente, não se pode confundir com a sua responsabilidade tributária.
5. Neste sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n.º JTRP00042469, de 20-04-2009, proferido no âmbito do Proc. n.º 0817625, e em que foi relator a Exma Sr.ª Dr.ª Juiz Desembargadora Maria Leonor Esteves, quando afirma que “trata-se de realidades diferentes, na medida em que os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação contributiva não são necessária e integralmente coincidentes, obedecendo a fins e regimes próprios”.
6. Ademais positiva de forma clara o art. 3.º, alínea c), do RGIT, que quanto à responsabilidade civil, são aplicáveis subsidiariamente, as disposições do Código Civil e legislação complementar.
7. E por força do princípio inscrito no art. 483.º, n.º 1, do CC, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violara ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
8. Nos presentes autos, o ora recorrente é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual – art. 6.º, do RGIT – sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo – artigo 483.º, do CC.
9. Citando a este propósito o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo n.º 322/05.4TAEVR.E1.S1, de 15-09-2010, em que foi Relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Conselheiro Raul Borges, “nestes casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a mesma tem a sua génese no crime, sendo um crime o seu facto constitutivo, a causa de pedir da pretensão ressarcitória”.
10. Prosseguindo, o douto Acórdão afirma que “na execução fiscal o devedor substituto não figura no título de cobrança do tributo”, pelo que “ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do artigo 467.º do Código de Processo Penal”.
11. Pese embora o ora demandante pudesse interpor execução contra a sociedade arguida, porque possui quanto a ela título executivo, e pudesse ainda nessa sede requerer a reversão contra os respectivos representantes legais, “nada impede que faça uso da faculdade conferida em processo penal do princípio da adesão” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo n.º 322/05.4TAEVR.E1.S1, de 15-09-2010.
12. Neste mesmo sentido igualmente se pronunciou o douto Acórdão desta Relação proferido no âmbito do processo n.º 4/02.9IDMGR.C1, de 8-2-2012, em que foi relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador, Luís Teixeira, e ainda o Acórdão desta Relação proferido no âmbito do Processo n.º 74/07.3TAMIR.C1, de 25-1-2012, em que foi relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Luís Ramos.
13. Neles se refere, em súmula, que “o que está em causa no pedido civil deduzido pelo assistente é, não directamente o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, mas antes a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social que a acusação imputa em coautoria aos arguidos. E esta determina-se e resolve-se segundo as regras do Código Civil, para que remete o art. 129.º do Código Penal e para que também remete o art. 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, dispondo que, quanto à responsabilidade civil, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Civil e legislação complementar” – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do processo n.º 4/02.9IDMGR.C1, de 8-2-2012.
14. Face ao supra referido, dúvidas inexistem em como o tribunal criminal tem competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo ora recorrente, e, por terem sido dados como provados os requisitos cumulativos de que depende a sua condenação, deverá o demandado ser condenado no pedido formulado.

Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Ex.as por certo suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, e ser confirmada a douta sentença ora impugnada.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 898].

6. Na Relação o Ex.mo Procurador – Geral Adjunto apôs o visto.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No caso em apreço a questão suscitada traduz-se em saber se ao conhecer do pedido de indemnização formulado pelo Instituto de Segurança Social, IP, violou o tribunal a quo os artigos 71º do CPP, 129º do CP e 7º do D.L. nº 42/2001, de 09.02.

2. A decisão recorrida

No que concerne à matéria de facto ficou a constar da sentença recorrida:

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade “A...., Lda” é uma sociedade por quotas, com sede em … , que teve como objecto a exploração de um lar de idosos, com a correspondente assistência e alojamento.
2. Os arguidos C... e B.... foram casados entre si e constituíram a sociedade arguida, sendo os seus únicos sócios.
3. Por designação do contrato social, o arguido C.... desde a constituição da sociedade em Setembro de 2003, até à sua dissolução em Setembro de 2007, assumiu sempre as funções de gerente, gerindo as actividades da sociedade arguida e procedia ao pagamento das remunerações dos empregados da sociedade.
4. O arguido C.... deparando-se com dificuldades financeiras da sociedade decidiu apoderar-se, nos períodos compreendidos entre Fevereiro de 2004 a Dezembro de 2004 e Fevereiro de 2005 a Março de 2006, dos montantes pecuniários que, em virtude do regime social contributivo instituído, deveria entregar à Segurança Social.
5. Em concretização do referido propósito, o arguido C...deduziu no valor das remunerações pagas aos trabalhadores as contribuições devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 11% sobre as remunerações efectivamente pagas, no total de € 23.417,08 (vinte e três mil quatrocentos e dezassete euros e oito cêntimos), assim discriminados:
a) No período correspondente a Fevereiro de 2004, a quantia de € 505,57;
b) No período correspondente a Março de 2004, a quantia de € 582,01;
c) No período correspondente a Abril de 2004, a quantia de € 702,44;
d) No período correspondente a Maio de 2004, a quantia de € 684,44;
e) No período correspondente a Junho de 2004, a quantia de € 724,87;
f) No período correspondente a Junho de 2004, a quantia de € 79,75;
g) No período correspondente a Julho de 2004, a quantia de € 855,20;
h) No período correspondente a Julho de 2004, a quantia de € 114,13;
i) No período correspondente a Agosto de 2004, a quantia de € 802,58;
j) No período correspondente a Agosto de 2004, a quantia de € 79,75;
k) No período correspondente a Setembro de 2004, a quantia de € 853,67;
l) No período correspondente a Setembro de 2004, a quantia de € 79,75;
m) No período correspondente a Outubro de 2004, a quantia de € 931,55;
n) No período correspondente a Outubro de 2004, a quantia de € 79,75;
o) No período correspondente a Novembro de 2004, a quantia de € 1.564,40;
p) No período correspondente a Dezembro de 2004, a quantia de € 913,49;
q) No período correspondente a Fevereiro de 2005, a quantia de € 1.053,36;
r) No período correspondente a Fevereiro de 2005, a quantia de € 79,75;
s) No período correspondente a Março de 2005, a quantia de € 1.033,95;
t) No período correspondente a Março de 2005, a quantia de € 114,13;
u) No período correspondente a Abril de 2005, a quantia de € 1.013,07;
v) No período correspondente a Abril de 2005, a quantia de € 79,75;
w) No período correspondente a Maio de 2005, a quantia de € 1.038,81;
x) No período correspondente a Maio de 2005, a quantia de € 114,13;
y) No período correspondente a Junho de 2005, a quantia de € 1.111,04;
z) No período correspondente a Junho de 2005, a quantia de € 79,75;
aa) No período correspondente a Julho de 2005, a quantia de € 941,59;
bb) No período correspondente a Julho de 2005, a quantia de € 79,75;
cc) No período correspondente a Agosto de 2005, a quantia de € 808,42;
dd) No período correspondente a Agosto de 2005, a quantia de € 79,75;
ee) No período correspondente a Setembro de 2005, a quantia de € 840,10;
ff) No período correspondente a Setembro de 2005, a quantia de € 181,73;
gg) No período correspondente a Outubro de 2005, a quantia de € 716,27;
hh) No período correspondente a Novembro de 2005, a quantia de € 738,69;
ii) No período correspondente a Dezembro de 2005, a quantia de € 1.308,97;
jj) No período correspondente a Janeiro de 2006, a quantia de € 968,90;
kk) No período correspondente a Fevereiro de 2006, a quantia de € 758,47;
ll) No período correspondente a Março de 2006, a quantia de € 723,35.
6. Deste modo, em execução daquele desígnio apropriativo, o arguido C...., não obstante ter entregue as declarações de remunerações mensais, não remeteu nem fez remeter à Segurança Social qualquer das cotizações assim retidas pela sociedade arguida até ao dia 15 do mês seguinte, como lhe competia, nem nos 90 dias posteriores ao termo de tal prazo, nem até à presente data.
7. Em 26 de Março de 2009 foi o arguido notificado para proceder ao pagamento ou fazer prova de ter pago, no prazo de 30 dias, os valores acima referidos e respectivos juros moratórios, mas sem que haja procedido a tal pagamento naquele prazo.
8. Assim, agindo em representação e em benefício da sociedade arguida, o arguido logrou apropriar-se do valor total de € 23.417,08, montante que fez seu e utilizou em benefício daquela sociedade, integrando as disponibilidades financeiras provenientes daquelas prestações no normal giro da sociedade.
9. O arguido C...agiu de forma livre, voluntária e consciente, em nome e no interesse da sociedade arguida, no quadro da situação económica desvantajosa da sociedade arguida com a intenção alcançada, de auferir uma vantagem patrimonial indevida, as quantias retidas e não entregues, bem sabendo que as mesmas não lhes pertencia e sim à Segurança Social e que as mesmas deveriam ter sido entregues no prazo acima referido.
10. Permanece, assim, a Segurança Social, prejudicada no aludido montante que não recebeu.
11. Em 6 de Setembro de 2007, o arguido C.... procedeu à dissolução da sociedade arguida, ao abrigo do procedimento administrativo para dissolução e liquidação de entidades administrativas.
12. Neste âmbito, o arguido C.... deliberou no sentido de a sociedade arguida não ter qualquer passivo, quando esta já se tinha constituído devedora da Segurança Social pelo menos desde o ano de 2004.
13. O arguido C.... ao realizar esta declaração, sabendo que a mesma não correspondia à verdade, logrou obter o registo da dissolução e encerramento da liquidação da sociedade “A...– ., Lda.”, extinguindo-a.
14. O arguido C...sabia que a sua conduta era punida por lei penal.
15. O arguido C...optou por efectuar pagamentos de salários a funcionários e dívidas a fornecedores, em detrimento das cotizações à Segurança Social.
16. O arguido C...já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:
I – SuC...nº 299/05.6GTCBR, do 2º Juízo Criminal das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por factos de 24.09.2005, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de € 10, e na pena acessória de proibição de conduzir por 3 meses, por sentença proferida em 26.09.2005, transitada em julgado em 11.01.2005, já extinto.
II – Comum Colectivo nº 252/09.0GGCBR, da 2ª Secção, das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra, pela prática de um crime de homicídio negligente, por factos de Outubro de 2009, na pena de 4 anos de prisão, suspensa por 4 anos, por acórdão proferido em 13.04.2011, transitado em julgado em 12.05.2011.
17. O arguido C...tem como habilitações literárias o curso técnico de informática e gestão, e frequência do 1º ano do curso superior de gestão e administração pública; aufere mensalmente € 768, acrescido de horas extraordinárias em montante variável; vive sozinho; paga pensão de alimentos no montante de € 200; paga a quantia de € 143 às Finanças e a quantia de € 120 para amortização de outras dívidas; não tem outros encargos, além dos normais.
18. A arguida é primária face ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
19. A arguida tem como habilitações literárias o 2º ano do curso superior de gestão e administração pública; vive com a mãe e filhas, com 17 e 10 anos de idade, estudantes; aufere mensalmente cerca de € 800; tem um empréstimo para aquisição de veículo próprio no montante de € 154 e um crédito pessoal no montante mensal de € 87; não tem outros encargos, além dos normais.

III – Factos não provados
Resultaram não provados os seguintes factos:
- A arguida B.... procedia ao pagamento das remunerações dos empregados da sociedade conjuntamente com o arguido C… ..
- Apesar de não ser designada para o cargo da gerência, também a arguida B.... exercia funções conducentes a tal categoria uma vez que tomava decisões que afectavam a vida da sociedade e dos seus funcionários, conhecendo as obrigações contributivas que impendiam sobre a sociedade “A...., Lda.” e sobre se as mesmas eram ou não cumpridas.
- A arguida B.... tenha decidido apoderar-se de montantes pecuniários que deveria entregar à Segurança Social.
- A arguida B.... tenha deduzido no valor das remunerações pagas aos trabalhadores as contribuições devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 11% sobre as remunerações efectivamente pagas.
- Deste modo, em execução daquele desígnio apropriativo, a arguida B...., não obstante ter entregue as declarações de remunerações mensais, não remeteu nem fez remeter à Segurança Social qualquer das cotizações assim retidas pela sociedade arguida até ao dia 15 do mês seguinte, como lhe competia, nem nos 90 dias posteriores ao termo de tal prazo, nem até à presente data.
- A arguida B...agiu de forma livre, voluntária e consciente, em nome e no interesse da sociedade arguida, no quadro da situação económica desvantajosa da sociedade arguida com a intenção alcançada, de auferir uma vantagem patrimonial indevida, as quantias retidas e não entregues, bem sabendo que as mesmas não lhes pertencia e sim à Segurança Social e que as mesmas deveriam ter sido entregues no prazo acima referido.

IV - Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido desconsideradas todas as afirmações conclusivas e de direito e, nomeadamente:
- nas declarações prestadas pela arguida B..., que negou a prática dos factos, referindo que não tinha qualquer intervenção na gestão dos pagamentos das obrigações contributivas do lar às várias instituições, nem aos funcionários ou fornecedores; reconhece que prestou serviços no lar, tendo inclusivamente requerido licença sem vencimento para ajudar a organizar o lar, em termos administrativos, nada mais; depois do gozo da licença sem vencimento, só se deslocava ao lar esporadicamente, uma vez que tinha o seu trabalho nos HUC, em Coimbra; não tinha conhecimento de qual o montante pago pelos utentes, dos salários dos funcionários, nem dos movimentos bancários; tratava das limpezas e da higiene e alimentação dos idosos, ficando sempre sob as ordens do arguido C...; desta forma, não restaram dúvidas quanto aos actos que esta arguida praticava na sociedade; depôs de forma convincente sobre a situação pessoal, profissional e económica, até porque coincidentes com o relatório social de fls. 652-655;
- nas declarações prestadas pelo arguido C..., que confessou os factos aqui em causa, referindo que não efectuou o pagamento das cotizações à Segurança Social porque o dinheiro do lar não chegava; refere que dividiu tarefas com a arguida B..., sendo que esta tratava da parte administrativa, como por exemplo, fazia as escalas dos funcionários, as compras, admissão de idosos, deixando cheques assinados à arguida para esta proceder a pagamentos, e o arguido da parte clínica e contas; refere também que eram os dois arguidos que decidiam a quem efectuar os pagamentos; refere que as dificuldades financeiras surgiram porque foi feito um grande investimento inicial, e depois começaram a pagar ao anterior dono, pelo que havia mais despesa do que receita; refere que quem mandava os mapas preenchidos para a Segurança Social era o Vítor (da empresa de contabilidade), que depois comunicava os valores a pagar, tanto a si, como à arguida B...; as quantias em causa nos presentes autos ainda se encontram em dívida, apesar de retidas nos vencimentos aos funcionários; a partir de Março de 2006 começou a pagar à Segurança Social e Finanças; refere que em conversa com a arguida decidiram não efectuar o pagamento das cotizações à Segurança Social; disse ainda que a arguida B...dava ordens aos funcionários, supervisionava o trabalho, recebia pagamentos, e reclamações dos utentes; a partir de Fevereiro de 2005, e após a separação do casal, o arguido ficou sozinho no lar; resta concluir que era o arguido quem exercia as funções de gerência na sociedade, tomando todos os actos decisórios relativamente aos pagamentos; depôs de forma convincente sobre a situação pessoal, profissional e económica, até porque coincidentes com o relatório social de fls. 635-639;
- no depoimento da testemunha … , técnica oficial de contas, que procedia à contabilidade do lar; depôs de forma convincente; desconhece se os pagamentos eram ou não feitos à Segurança Social, apenas elaborando as guias para pagamento, conforme se encontra previsto na lei; refere que posteriormente foi contactada pela arguida, para saber o estado da contabilidade do lar;
- no depoimento da testemunha … , auxiliar no lar, de 2003 a 2006; depôs de forma convincente; refere que quando iniciou funções no lar estavam presentes os dois arguidos; recebia instruções dos dois arguidos; a arguida era uma pessoa presente no lar, e dava ordens; já em relação aos vencimentos quem os entregava era o arguido C...; do que pode perceber a arguida B...não tinha contacto com os fornecedores, dando apenas ordens na parte prática; a parte económica era com o arguido C...; diz que a arguida B...era patroa porque dava ordens e era a mulher do patrão;
- no depoimento da testemunha … , funcionária do lar, desde a data em que abriu, até 2004; depôs de forma convincente, esclarecendo que recebia ordens dos dois arguidos; se alguma situação corria menos bem, quem chamava a atenção eram os dois encarregados; o vencimento já o recebia com os descontos para a Segurança Social, e quem os entregava eram os encarregados; a arguida B...por vezes dava uma ajuda na hora das refeições, mas nas limpezas nunca viu;
- no depoimento da testemunha … , funcionária do lar, desde a abertura, até há cerca de dois anos; depôs de forma convincente; refere que considera a arguida patroa porque era a mulher do patrão, e dava ordens, nomeadamente, nas limpezas; já em relação aos pagamentos, quem os fazia era o arguido C...; a arguida B...andava a tratar dos idosos, enquanto o arguido C...e a … davam ordens;
- no depoimento da testemunha … , amigo da arguida, há vários anos; depôs de forma convincente; esclareceu que não trabalhou no lar, mas sim a sua mulher, Teresa, na qualidade de médica; como era a testemunha que depositava os cheques do vencimento da mulher, sabe que os mesmos eram assinados pelo arguido C..., depois pelo pai do C..., e alguns também pessoais da mãe do C...; a arguida B...só a conheceu em 2006, quando teve de ir para tribunal por causa de uma dívida do lar à mulher;
- no depoimento da testemunha … , médica, que prestou serviços no lar, em 2003/2004; depôs de forma convincente, esclarecendo que quem dirigia o lar era o arguido; a arguida tratava dos idosos ao nível da higiene e alimentação; refere que a arguida não se distinguia das outras funcionárias; a testemunha deslocava-se aos fins-de-semana ao lar, e durante a semana, sempre que necessário; aos fins-de-semana a arguida costumava estar no lar, para auxiliar os idosos;
- no depoimento da testemunha … , amiga de curso universitário dos arguidos, desde 1996/1997; depôs de forma convincente; esteve a trabalhar no lar cerca de 5 meses, de Outubro de 2003 a Março de 2004, fazendo as escalas dos funcionários, ementas, os cálculos dos custos da medicação mensais; recebia orientações/ordens ao arguido C..., sendo que os pagamentos, as mensalidades eram sempre assuntos da responsabilidade do arguido C...; depois do divórcio do casal, perdeu o contacto com o arguido C..., permanecendo amiga da arguida, até porque é madrinha de uma das filhas; considera a arguida B...boa pessoa e trabalhadora;
- no depoimento da testemunha … , que depôs de forma convincente, tendo conhecimento dos factos porque fez a contabilidade do lar de 2003 a 2006; na altura só conhecia o arguido C..., era o único que contactava; refere que a arguida recusou aprovar as contas do lar, no exercício de 2003 e 2004; aliás, todas as contas do lar eram de difícil aprovação, por um lado, porque o arguido C...não fornecia todos os documentos, e por outro, porque a arguida B...não as aprovava; não conhecia mais ninguém no lar com funções de chefia;
- no depoimento da testemunha … ., irmã da arguida, que trabalhou no lar, ajudando quando era preciso; depôs de forma convincente, até porque coincidente com as anteriores testemunhas, referindo que a arguida esteve de licença sem vencimento do seu local de trabalho, quando o lar abriu, e a partir daí começou a ajudar na cozinha e no tratamento dos idosos, principalmente aos fins-de-semana, porque existiam menos funcionários de escala; quando surgia alguma dificuldade era com o arguido C...que tratava; depois do divórcio dos arguidos não voltou a ir ao lar.

Quanto aos factos não provados, pela incoerência no discurso do arguido C..., pois refere que a arguida B...tinha conhecimento das contas do lar, tendo decidido conjuntamente com ele não efectuar os pagamentos à Segurança Social; ora, este facto é contraditório com a necessidade de a arguida pedir esclarecimentos sobre as contas do lar, na altura da aprovação anual das contas, como resulta do depoimento da contabilista … , que foi claro no sentido de esclarecer que todos os anos existiam problemas com a aprovação das contas, sendo que o arguido lhe terá dito que apenas devia informar a arguida naquilo que ele permitisse; acresce que não é pelo facto de a arguida dar ordens no funcionamento do lar que, desde logo, se pode extrair a conclusão que exercia de facto as funções de gerente, até porque outras funcionárias também davam ordens, e não eram por esse motivo gerentes; resultou também da audiência de julgamento que as funcionárias chamavam à arguida “patroa” porque, como dizem, era a mulher do “patrão”, e trabalhava também no lar; daqui não resulta que era a arguida que geria as contas e pagamentos do lar. Já em relação à admissão de funcionárias ao serviço do lar, também não se pode concluir que é um acto de gestão – caso contrário, as empresas de recrutamento de pessoal seriam também gerentes!...
Acresce que a prova documental existente a fls. 171-178, nomeadamente, a fls. 177, em que a arguida B...se absteve de aprovar as contas relativas ao exercício de 2003 por, e passo a citar “a mesma justificou a abstenção pelo facto de não conhecer detalhadamente os actos de comércio da sociedade, a saber: pagamentos a fornecedores, clientes, encargos com pessoal, IRC, Segurança Social e a ter em aviso, datas e montantes de suprimentos e empréstimos de capital à sociedade” – ora, tal apenas permite concluir que as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pela arguida são verdadeiras, no sentido de não ter qualquer acto de gestão financeira na sociedade, nem ter conhecimento das contas correntes da mesma.
Ajudou, ainda, a formar a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos, em sede de inquérito e admitidos posteriormente e os Certificados de Registo Criminais.



3. Apreciando


Nos presentes autos, para o que ora releva, foi o arguido, ora recorrente, pronunciado e a final condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artigo 107º do RGIT, com referência ao artigo 105º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Na procedência do pedido cível enxertado na acção penal, deduzido pelo assistente/demandante Instituto de Segurança Social, I.P., cuja causa de pedir assentou na responsabilidade civil extra-contratual, por facto ilícito, decorrente da prática do crime, foi ainda condenado bem como a sociedade arguida – em nome e no interesse da qual, enquanto gerente de direito e de facto, o primeiro praticou as condutas típicas, ilicitas e culposas - no montante peticionado.

Defende, em síntese, o recorrente não colher aplicação o princípio da adesão [artigo 71º e ss. do CPP], dada a obrigação de pagamento das quantias em causa e legais acréscimos a favor da Segurança Social emergir de relação administrativa – tributária e, como tal, estar-se-ia perante uma execpção dilatória inominada que deveria ter conduzido ao arquivamento do pedido cível, obstando ao seu conhecimento.
Indica como violados os artigos 71º do CPP, 129º do CP e 7º do D.L. nº 42/2001, de 09.02.

Vejamos.

Reconhecendo, embora, alguma divergência quanto ao modo de encarar a questão suscitada, designadamente por parte dos tribunais, desde já se adianta não se perfilhar o entendimento sufragado pelo recorrente, afigurando-se-nos essencial debruçar-mo-nos sobre algumas decisões, as quais, de uma forma ou de outra, contrariam a génese da solução por si preconizada, não sem que, contudo, antes, nos detenhamos no que a tal respeito tem sido avançado pela doutrina.
A propósito, escreve Germano Marques da Silva «Alguma doutrina e jurisprudência separam em absoluto a responsabilidade pelo crime da responsabilidade pela prestação tributária e consideram arredada a responsabilidade civil pela indemnização dos danos emergentes do crime, no entendimento de que o crime não causa danos indemnizáveis já que a obrigação tributária e o inerente dever de prestar existem independentemente da prática do crime e a falta de cumprimento da obrigação acarretaria tão – só responsabilidade tributária pelo incumprimento da obrigação, reguladas pelas leis tributárias. Não nos parece que seja assim.
Entendemos que não há qualquer incompatibilidade entre a responsabilidade por falta de cumprimento da obrigação tributária e a responsabilidade civil emergente do ilícito penal tributário e que ambas estas obrigações se regem, no que toca aos seus sujeitos passivos por princípios distintos, no primeiro caso a responsabilidade dos membros dos corpos sociais é subsidiária, no segundo é solidária.
(…)
Como referimos já, alguma jurisprudência é no sentido de que o incumprimento da obrigação tributária se rege exclusivamente pela Lei Geral Tributária com exclusão de quaisquer outras normas ou responsáveis não previstos naquela Lei.
Se assim fosse teríamos uma ruptura na ordem jurídica, excluindo a responsabilidade civil por facto ilícito doloso causador de danos. Não nos parece que a Lei Geral Tributária exclua essa responsabilidade, limitando o disposto no Código Penal e Civil.
(...)
O art. 3.º do RGIT dispõe que «são aplicáveis subsidiariamente: a) quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar; b) quanto à responsabilidade civil, as disposições do Código Civil e legislação complementar.
Acresce que o art. 8.º do Código Penal atribui a esse diploma o carácter de diploma subsidiariamente aplicável aos factos puníveis pela legislação especial, salvo disposição em contrário, sendo comum o entendimento que são subsidiariamente aplicáveis todas as normas da parte geral do Código Penal que não forem contrárias ao RGIT. Entre essas normas encontra-se a do art. 129.º que dispõe sobre «a indemnização por perdas e danos emergentes de crime» e é essa indemnização que «é regulada pela lei civil».
Somos, assim, levados a concluir que, quer por força do disposto no art. 8.º do Código Penal, quer por força do disposto no art. 3.º do RGIT, são aplicáveis aos crimes tributários as normas da parte geral do Código Penal e por isso também o seu art. 129.º, salvo disposição em contrário do RGIT. E conterá o RGIT disposição em contrário?
Parece-nos que não. O art. 9.º do RGIT dispõe que «o cumprimento da sanção penal não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais». Significa que a lei considera que do crime tributário não emerge outro dano porque a prestação tributária em dívida se mantém independentemente do facto criminoso, sendo objecto de regulamentação especial? Dá prática do crime para além das consequências de natureza criminal, não emerge outro efeito que não a manutenção da dívida do imposto que a prática do crime pretendeu frustrar?
Não cremos que seja assim. O valor do dano causado à administração tributária corresponde, em regra, ao valor da prestação tributária em falta, mas a causa do dano é outra, é a prática do crime. Nem o RGIT nem a LGT afastam a regra geral constante dos arts. 483.º a 498.º do Código Civil, aplicáveis por remissão do art. 129.º do Código Penal, porque aqueles diplomas nunca se referem aos danos emergentes do crime, salvo, por remissão, quando o art. 3.º, al. c) do RGIT manda aplicar subsidiariamente as disposições do Código Civil.
A unidade e coerência do sistema impõem que se distinga a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente a Lei Gerla Tributária, e a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador de dano à administração tributária ou à administração da segurança social.
(…)
A disposição legal (art. 9.º do RGIT) … nada tem que ver com a questão que nos ocupa, ou seja, com a responsabilidade pelos danos emergentes do crime. Significa tão – só que o crime tributário não implica novação objectiva ou subjectiva da dívida tributária. A dívida tributária existe e mantém-se independentemente da prática do crime tributário, mas se o crime causar danos os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais» - [cf. “DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO – SOBRE AS RESPONSABILIDADES DAS SOCIEDADES E DOS SEUS ADMINISTRADORES CONEXAS COM O CRIME TRIBUTÁRO”, Universidade Católica Editora, 2009, pág. 118 e ss.].
Defende, pois, o Autor que «se o crime não é o facto gerador da dívida de imposto (da prestação tributária não paga) pode ser a causa do não pagamento e nessa medida é causa do dano para a administração tributária», podendo, assim, a indemnização pelos danos causados pelo crime, em regra correspondente à dívida de imposto e juros moratórios, ser pedida no processo - crime nos termos dos artigos 71º e ss. do CPP – [cf. ob. cit., págs. 120-183.].

No mesmo sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque quando refere «A acção cível é também autónoma em relação à satisfação do crédito tributário. Assim, a responsabilidade civil derivada da apropriação das quantias devidas e não entregues à segurança social, que integram a prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, tem como fundamento a prática desse facto ilícito e não o incumprimento da correspondente obrigação contributiva” – [cf. “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 231].

Sobre a questão já, por diversas vezes, se debruçou o Supremo Tribunal de Justiça, o que fez, entre outros, nos acórdãos de 11.12.2008 [proc. nº 08P3850] e de 29.10.2009 in CJ, ASTJ, Ano XVII, T. III, pág. 220 e ss.
No primeiro ficou consignado «… a indemnização destes autos não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podem naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.
Não há, pois, identidade de causa de pedir, pois a pretensão deduzida nas execuções fiscais e a pretensão formulada no presente processo não procedem do mesmo facto jurídico (cfr. o disposto no artigo 498º, n.º 4, do C. P. Civil).
(…)
O Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar sobre tal questão no (AcSTJ de 26.1.2006, proc. n.º 231/05 – 5, Relator: Conseheiro Rodrigues da Costa), entendimento que se mantém
(…)
Em situações idênticas, tem vindo a ser entendido, quer pela doutrina (Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, 1998, págs. 232 – 234, e ABÍLIO NETO, Código De Processo Civil Anotado, 16.ª ed., pág. 630, nota 15.), quer pela jurisprudência, que, se o demandante pretende obter título executivo também contra os sócios gerentes da devedora fiscal, tem necessariamente de os demandar em acção de condenação, como sucedeu nos presentes autos.»
E prosseguindo, com referência a elementos jurisprudenciais aduz:
«Como se fez notar no acórdão da Relação de Évora, de 30-06-2004, Proc. nº 912/04 – 1, «pouco releva o facto de o IGFSS ter “outros meios para obter o pagamento das quantias em dívida, designadamente a execução fiscal” (…).
É que o facto de a IGFSS dispor de título executivo que lhe permitisse cobrar, em execução fiscal, a respectiva dívida nos termos do artº 162º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL 433/99, de 26/10, a execução só poderia ser intentada contra a devedora principal, como tal figurando no título de cobrança, nos termos do artº 153º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Porém, relativamente aos sócios gerentes, porque a sua responsabilidade é subsidiária – artº 24º, nº 1, al. a) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98, de 17/12 – ela só se efectiva por reversão do processo de execução fiscal, sujeita aos condicionalismos previstos na lei – artº 23º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma. Assim, para poder obter título executivo contra todos os arguidos, sempre o recorrente teria que formular o pedido cível dos autos, como o fez (Cf. ainda os Acs. da Relação do Porto de 15-07-80, BMJ 299º/414, e de 23-04-81, BMJ 306º/295, e da Relação de Guimarães de 21-10-02, Proc. nº 909/02, CJ Ano 2002, tomo IV, e de 28-04-03, Proc. n.º 625/03, CJ Ano 2003, tomo II, págs. 295 – 296).
Acresce que … fundando-se o pedido de indemnização na prática de crime, teria ele de ser deduzido por dependência da acção penal, como decorre do princípio da adesão estabelecido no art. 71º do CPP, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei, como se acentuou no acórdão no acórdão deste STJ de 06/01/2005, Proc. n.º 4450/04, da 5ª Secção, SuC...s de Acórdãos do STJ, n.º 87, p. 108 … Ora, não configura excepção a tal regra o facto de a legislação tributária permitir ao demandante obter o pagamento das quantias em dívida por outros meios, concretamente pela execução fiscal …
(…)
De tudo se conclui que não podia o tribunal recorrido ter decidido, como decidiu, pela absolvição dos demandados da instância civil, com fundamento na falta de interesse em agir, pois que se impunha a apreciação do mérito do pedido.» - [destaque nosso].

No mesmo registo, citando Germano Marques da Silva, “Responsabilidade Penal das Sociedades, e dos seus Administradores e Representantes”, Editorial Verbo, 2009, págs. 453-454, lê-se no segundo dos citados arestos «Sucede, porém, que se o crime não é o facto gerador da dívida de imposto (da prestação tributária não paga) pode ser a causa do não pagamento e nessa medida é causa do dano para a administração tributária. A generalidade dos crimes tributários são susceptíveis de causar dano à administração tributária, frustrando o pagamento da prestação tributária em falta. Este prejuízo coincide quantitativamente com a prestação tributária em dívida, mas a sua causa é autónoma. A dívida tributária existe e o seu fundamento, a sua causa é autónoma do crime, mas o prejuízo resultante do não pagamento foi causado pela perpetração do crime. Por isso que os agentes do crime devem responder pelos prejuízos causados com o seu acto».
Concluindo - após se haver detido nos artigos 3.º e 9.º do RGIT e 8º e 129º do Código Penal e nas normas pertinentes do ETAF, da CRP e do CPPT - «Como resulta do exposto, pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime nos termos da lei civil e não nos termos da Lei Geral Tributária.
O que é objecto do processo penal, por via do processo de adesão, é a responsabilidade civil emergente do crime tributário, ou seja, pelos danos causados com a prática do crime

Também assim o acórdão do STJ de 15.09.2010, proferido no processo n.º 322/05.4TAEVR.E1.S1, no qual se mostra consignado «O pedido cível deduzido pelo assistente …, teve por base as condutas praticadas pelo arguido que integravam o crime de abuso de confiança contra a segurança social, assentando na responsabilidade criminal emergente do incumprimento desta específica obrigação legal tributária, que recaía sobre a sociedade … e o seu sócio gerente, co-arguido, ora recorrente – artigos 6º e 7º do RGIT.
Como referiu o acórdão recorrido «As pessoas colectivas e as sociedades são criminalmente responsáveis pelas infracções previstas no RGIT, “quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”, responsabilidade que não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes (art.º 7 n.ºs 1 e 3 do RGIT).
O pedido de indemnização cível formulado nos autos teve lugar em obediência ao princípio da adesão, fundamentado na responsabilidade criminal do arguido.
De acordo com o artigo 129.º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjectiva penal, nomeadamente nos seus artigos 71.º a 84.º …
Como resulta do artigo 3.º, alínea c), do RGIT, quanto à responsabilidade civil, são aplicáveis subsidiariamente, as disposições do Código Civil e legislação complementar.
De acordo com o princípio geral plasmado no artigo 483º, nº 1, do Código Civil «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Nestes casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a mesma tem a sua génese no crime, sendo um crime o seu facto constitutivo, a causa de pedir da pretensão ressarcitória.
Conforme dispõe o artigo 71º do Código de Processo Penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
A dedução em separado, perante o tribunal civil, é possivel nos casos previstos no artigo 72º, não se integrando o pedido em nenhum deles.
A competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal decorre da responsabilidade civil extracontratual do agente que cometa o facto ilícito e culposo.
Neste quadro legal, que é o aplicável, não há lugar a qualquer reversão.»
E prosseguindo – depois de proceder à transcrição das normas legais pertinentes da LGT tendentes à percepção do âmbito da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão - conclui «No caso em apreciação não tem lugar a figura da reversão, própria do processo executivo e que tem por objecto chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cfr. artigos 55.º, nº 1, do CPC e 153º, n.ºs 1 e 2 do CPPT), situação completamente diversa da presente em que o recorrente é demandado ab inicio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal.
Na execução fiscal o devedor susbtituto não figura no título de cobrança do tributo.
Ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do artigo 467º do Código de Processo Penal.
Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual – artigo 6.º do RGIT – sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo – artigo 483.º do Código Civil.
(…)
Sendo certo que o Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de …, podia interpor execução contra a sociedade arguida …, possuindo quanto a ela título executivo, podendo ainda nessa sede requerer a reversão contra os respectivos representantes legais, reunidos que fossem os necessários requisitos, nada impede que faça uso da faculdade conferida em processo penal do princípio da adesão.
Os crimes tributários, e é disso que se trata, são julgados nos tribunais criminais, e não nos tribunais administrativos e fiscais.
(…)
A competência do tribunal criminal para conhecer da acção penal e da conexa acção cível enxertada não se confunde com a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal em processo de execução».

Com relevância neste excurso o muito recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, de 12.09, publicado no DR, 1.ª série, nº 206, de 24.10.2012, quando em sede de fundamentação aduz «A nível de responsabilidade emergente/subsequente a prática de infracção tributária, há que distinguir três vectores.
Uma coisa é a responsabilidade tributária, originada pela dívida do imposto. Pelo imposto evadido é responsável o sujeito passivo do imposto ou o seu substituto: o sujeito passivo da relação tributária do imposto.
Outra é a responsabilidade criminal, emergente do incumprimento dos deveres tributários, tratando-se de responsabilidade do devedor originário do tributo ou do substituto.
E outra ainda, no plano da responsabilidade civil, ou seja, a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do crime, causador de dano à admnistração tributária, geradora de direito a indemnização, aqui apenas possível no quadro de responsabilidade por dívida própria (do devedor originário ou de substituto) e afastada em sede de responsabilidade por dívida de outrem.
Como refere Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, UCE, 2009, p. 114, diversa é a questão de responsabilidade de terceiros (responsabilidade por dívida de outrem), solidária ou subsidiária, pelo pagamento do imposto, a qual nada tem a ver com a responsabilidade pelos danos emergentes do crime tributário.
Assinala que «O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime e por isso que a extinção da responsabilidade penal tributária, seja qual for o fundamento, não implica por si só a extinção da responsabilidade pelo pagamento da prestação tributária».
Segundo o artigo 9.º do RGIT … o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais, o que significa que o crime tributário não implica extinção por novação objectiva ou subjectiva da dívida tributária; a dívida existe e mantém-se independentemente da prática do crime tributário, mas se o crime causar danos os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais.
Da prática do crime resulta responsabilidade penal e responsabilidade civil pelos danos emergentes, sendo responsáveis por estes danos os agentes do facto ilícito típico, nos termos da lei penal e civil …».

Retomando o caso concreto, estando em causa no pedido cível deduzido pelo assistente não directamente o incumprimento da obrigação legal (tributária) de entregar as prestações devidas à segurança social, mas sim a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, pelo qual o arguido/recorrente, tal como a sociedade arguida, foram pronunciados e vieram a ser condenados, no plano substantivo colhem aplicação as normas do Código Civil, para as quais remete quer o artigo 129º do C.P. quer o artigo 3º do RGIT e, consequentemente, por força do princípio da adesão – [artigo 71º e ss. do CPP], deverá o pedido cível - cuja fonte, repete-se, entronca na prática do crime - ser formulado e conhecido, como o foi, no processo penal, carecendo de fundamento a invocada violação dos artigos 71º do CPP e 129º do CP e, bem assim, do artigo 7º do D.L. nº 42/2001, de 09.02 (regime jurídico especial do processo de execução das dívidas à segurança social), sustentado numa diferente fonte de indemnizar a qual, seguramente, não se confunde com a que suportou a dedução do pedido e respectivo conhecimento.

Conclui-se, assim, pelo acerto da decisão recorrida.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente em 4 [quatro] Ucs de taxa de justiça.

Coimbra, , de , de
[Processado informaticamente e revisto pela relatora]


(Maria José Nogueira)


(Isabel Valongo)