Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/18.6PEVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
VENDA
CIRCULAÇÃO OU OCULTAÇÃO DE PRODUTOS OU ARTIGOS
COLOCAÇÃO NO MERCADO
PÔR EM CIRCULAÇÃO
LEI NOVA
LEI ANTIGA
Data do Acordão: 03/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 323.º, AL. C), E 324.º, DO DL 36/2003, DE 05-03, NA REDACÇÃO DA LEI 83/2017, DE 18-08; ARTIGOS 320.º, AL. D) E 321.º, DO DL 10/2018, DE 10-12
Sumário: O significado e alcance do acto de “colocar no mercado” previsto na al. d) do artigo 320.º do actual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL 110/2018, de 10-12, equivale ao acto de “pôr em circulação” referido no artigo 324.º da versão anterior do mesmo Código, ou seja, na do DL 36/2003, de 05-03, com a redacção introduzida pela Lei n.º 83/2017, de 18-08.
Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO
No processo comum supra identificado, após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu, para além do mais:
I. Condenar o arguido AC pela prática, em autoria material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo do D.L. n.º 36/2003 de 5 de Março, na redacção em vigor à data dos imputados factos, introduzida pela Lei 83/2017 de 18 de Agosto, com referência ao artigo 323º, alínea c) do mesmo diploma legal, e actualmente previsto e punido no artigo 321º, com referência ao artigo 320º, alínea d) do novo Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2018, de 10-12, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída por 240 (duzentas e quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar de acordo com o plano de execução a elaborar pelos serviços de reinserção social, nos termos do artigo 496º do CPP.
O arguido discordou da decisão proferida em 1ª instância, e dela interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
1.º O Tribunal recorrido decidiu condenar o arguido, ora recorrente, pela prática, em autoria material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 36/03 de 05 de Março, na redacção em vigor à data dos imputados factos, introduzida pela Lei 83/2017 de 18 de Agosto, com referência ao artigo 323.º, alínea c) do mesmo diploma legal, e actualmente previsto e punido no artigo 321.º, com referência ao artigo 320.º, alínea d) do novo Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2018, de 10-12, por entender que “actualmente a descrita conduta do arguido integra a previsão do artigo 321.º do actual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 110/2018, de 10/12, não tendo tal conduta sido descriminalizada” e que a eliminação da menção a “puser em circulação” do actual artigo 321.º “não veio operar a descriminalização da descrita conduta”, pugnando que a mesma “passou a ser incluída nas acções típicas previstas no artigo 320.º do actual Código da Propriedade Industrial, mais propriamente na sua alínea d) – importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas”, acrescentando que “nesta decorrência, teremos de concluir que actualmente a descrita conduta do arguido integra a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de venda ou ocultação de produtos previsto e punido no artigo 321.º, com referência ao artigo 320.º, alínea d) do novo Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2018, de 10/12”;
2.º Em suma, estava o recorrente acusado de transportar dentro do seu veículo automóvel e por ele conduzido, diversas peças de vestuário e de calçado contrafeito, os quais se destinavam a ser vendidos pelo mesmo;
3.º O recorrente, salvo o devido respeito que lhe merece a decisão recorrida, discorda em absoluto do entendimento do douto Tribunal a quo por entender que a eliminação do segmento da norma “puser em circulação” do artigo 321.º do CPI aprovado pelo D.L. n.º 10/2018, de 10/12 (CPI de 2018), importa, de facto, a descriminalização dos factos imputados ao arguido. Pois que,
4.º No seguimento da jurisprudência disponível nesta matéria a propósito do artigo 324.º do CPI aprovado pelo D.L. n.º 36/03 de 05/03 (CPI de 2003), cuja maioria (se não toda) ia no sentido de enquadrar no conceito de "pôr em circulação" a conduta do agente que transportasse produtos contrafeitos com destino à venda, seguiu o Tribunal a quo o entendimento de que os factos imputados ao arguido preenchiam o elemento objectivo do tipo “puser em circulação” do artigo 324.º do D.L. n.º 36/2003 de 05/03;
5.º No entanto, tal segmento de norma e elemento objectivo do tipo ("puser em circulação" sic) deixou de existir no actual artigo 321.º do CPI de 2018, cujos elementos objectivos são, actualmente, apenas a venda ou ocultação para esse fim de produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º;
6.º Assim, o arguido para praticar o crime previsto no artigo 321.º do CPI de 2018 tem de vender ou ocultar para esse fim, designadamente, produtos com marcas contrafeitas. Porém,
7.º Apesar de o arguido transportar os produtos que lhe foram apreendidos com a finalidade de os vender na feira ou pôr em circulação, facto é que nem o arguido vendeu qualquer um deles, ou os ocultava, ou tão pouco lhe foi imputado que os tivesse vendido ou ocultasse para esse fim;
8.º Já no que concerne à previsão estatuída na alínea d), do artigo 320.º do CPI de 2018, entendemos que o “colocar no mercado” aí referido não equivale ao “pôr em circulação” anteriormente previsto no artigo 324.º do CPI de 2013, pois que, e nas doutas palavras do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/11/2020, processo 104/15.5GBSCD.C3, disponível em www.dgsi.pt, “(…) o “colocar no mercado” encarado no contexto das demais ações prevenidas no tipo, tais como “importar”, “exportar” ou “distribuir”, mais não traduzirá do que a “expressão final” destas, cuja ordem de grandeza ultrapassa inequivocamente a conduta imputada nos autos”, consistente no mero transporte pelo arguido de material contrafeito para posterior venda ao público (cerca de 38 pares de calçado e 76 casacos), sendo que, e “Por outro lado, tal visão das coisas tornaria dificilmente compreensível, retomando a concreta situação, que a “exposição para venda ao público” fosse mais severamente sancionada do que a conduta de quem “vender” ”, ou, no caso sub judice, que o mero transporte efetuado pelo arguido fosse mais severamente punido que a conduta de efectivamente vender os ditos pares de calçado (cerca de 38) e casacos (76);
9.º O transporte de material contrafeito por banda do arguido, ainda que com intenção de vender e pôr em circulação, configuraria, no limite, em nosso modesto entender, e atenta a actual redacção do artigo 321.º do CPI de 2018, uma tentativa não punível atenta a moldura penal aplicável (artigo 23.º do CP);
10.º As normas contidas nos artigos 321.º e alínea d) do artigo 320.º do D.L. n.º 110/2018, de 10/12, quando interpretadas no sentido de nelas se subsumir o transporte pelo arguido de material contrafeito – cerca de 38 pares de calçado e 76 casacos – ainda que com intenção de vender e pôr em circulação, anteriormente punido pelo artigo 324.º do D.L. n.º 32/2003, de 05/03, estão feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa;
11.º O princípio da legalidade impõe, na sua essência, que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, exigindo assim que a infracção imputada ao arguido, e pela qual venha o mesmo a ser eventualmente condenado, esteja claramente definida na lei, por forma a que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respectivas consequências;
12.º Como refere F. Dias, “por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos”, mais importando referir o n.º 3, do artigo 1.º do CP nos termos do qual se estipula que “não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde”;
13.º Por seu lado, dispõe o n.º 2, do artigo 2.º do Código Penal que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções”;
14.º Ora, considerando os argumentos aduzidos supra, parafraseando o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/11/2020, resulta evidenciado que a previsão de “colocar no mercado” actualmente prevista na al. d) do artigo 320.º do CPI de 2018 não equivale, nem pretende equivaler, ao “puser no mercado” anteriormente previsto no artigo 324.º do CPI de 2003, sendo que o artigo 321.º do actual CPI de 2018 deixou cair tal segmento de norma, motivo pelo qual se entende que o D.L. n.º 110/2018, de 10 de Dezembro ao revogar por via do artigo 14.º das disposições finais o Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, e por não prever estritamente a punição de tal conduta, eliminou, de facto, a infracção imputada nos autos ao arguido, que deve, por isso, ser absolvido;
15.º Face ao exposto, a sentença recorrida ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 1.º e 2.º do Código Penal, 29.º da CRP, 14.º (disposições finais), 320.º, alínea d) e 321.º D.L. n.º 110/20218, de 10/12.
Nestes termos e nos melhores de Direito, e por tudo o que for doutamente suprido por V. Ex.ªs, dando-se provimento ao presente recurso e revogando-se a sentença recorrida nos termos supra referidos far-se-á, como sempre, justiça!
*
Respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo defendendo a confirmação da sentença recorrida.
Nesta instância o Exmº Procurador da República emitiu parecer no mesmo sentido.
Notificado o arguido, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 417º do CPP, respondeu dando por integralmente reproduzida a motivação do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.
***

II- FUNDAMENTAÇÃO
Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):
“Factos provados
1. No dia 4 de Dezembro de 2018, pelas 15:30 horas, na (…), e no âmbito de uma acção de fiscalização efectuada pela PSP, foi detetado no interior do veículo automóvel de marca ..., com a matrícula (…), pertencente ao arguido AC e por este conduzido, diversas peças de vestuário e de calçado, que pelas suas características se supôs serem contrafeitos, os quais se destinavam a ser vendidas pelo arguido, razão pela qual foram apreendidas – conf. auto de notícia de fls. 4-6 e auto de apreensão de fls. 7-9 dos autos, tendo sido apreendido ao arguido:
- 50 sapatilhas de marca ...;
- 10 botas de marca ...;
- 44 sapatilhas de marca ...;
- 21 sapatilhas de marca ...;
- 2 sapatilhas de marca ...;
- 8 casacos de marca ...;
- 5 casado de marca ...;
- 31 casacos de marca ...;
- 1 casaco de marca ...;
- 9 casacos de marca ...;
- 22 casacos de marca ....
2. Efectuado exame pericial às sapatilhas, botas e casacos apreendidos ao arguido, verificou-se que nenhum deles é artigo original, não tendo sido produzido ou comercializado pelas marcas que ostentam, sendo que a marca que deles consta e os restantes elementos não correspondem aos detalhes dos produtos produzidos pelas marcas, tratando-se de material contrafeito, como resulta dos Relatórios de Exame juntos aos autos, cujo conteúdo aqui damos por inteiramente reproduzido.
3. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido agiu com intenção de vender e pôr em circulação os artigos mencionados como se genuínos fossem, não obstante saber que os mesmos constituíam imitação das marcas verdadeiras.
4. E, ciente de tal, agiu querendo proceder dessa forma para assim obter melhores proveitos.
5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Quanto aos antecedentes criminais provou-se que:
6. O arguido já foi condenado:
(…).
Quanto às condições pessoais e económicas do arguido provou-se que:
(…).
*
Factos não provados
Da prova produzida em audiência não resultaram factos dados como não provados.
***
Uma vez que na contestação que apresentou, o arguido suscitou a questão da descriminalização da conduta que lhe era imputada (que igualmente constitui o objecto do presente recurso), pugnando pela sua absolvição, atento o disposto no n.º 2, do artigo 2.º do Código Penal e a revogação do D.L. n.º 36/2003, de 05/03, pelo D.L. n.º 110/20218, de 10/12, …………… por concordarmos com a fundamentação de direito da sentença recorrida, a tal propósito, passamos a transcrever parte do que aí ficou exarado:
(…)
Por seu turno, dispunha o artigo 324° do Código da Propriedade industrial (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 05 de Março) que: “É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321° a 323°, com conhecimento dessa situação.”
Entretanto, por via da alteração introduzida com a Lei 83/2017 de 18 de Agosto, que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação (cfr. artigo 191º do referido diploma), e em vigor à data dos imputados factos, o referido crime passou a ser punível com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias.
São elementos objectivos deste crime:
- A venda, colocação em circulação ou ocultação de produtos contrafeitos;
- Por qualquer dos modos e condições referidas nos artigos 321° a 323°;
- O agente tenha conhecimento da situação.
Conforme tem sido defendido pela maioria da jurisprudência preenche o elemento do tipo “puser em circulação” do crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos (do citado artigo 324º C. Propriedade Industrial) a conduta do agente que transporta produtos contrafeitos que destina vender (neste sentido veja-se entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/02/2010, publicado in www.dgsi.t).
Em relação ao tipo subjectivo do crime, preenche-se o mesmo com o dolo, sendo que o bem jurídico protegido por esta norma é a marca registada, assegurando-se o interesse do respectivo titular.
Importa ainda referir que, nos termos do disposto no artigo 329º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 36/03 de 5 de Março, o procedimento criminal pelo ilícito em apreço depende de queixa.
Ora, no caso vertente dúvidas não restam, atenta a matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 5 que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivo da prática pelo arguido, em autoria material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo do D.L. nº 36/03 de 5 de Março, na redacção em vigor à data dos imputados factos, com referência ao artigo 323º, alínea c) do mesmo diploma legal.
Importa ainda referir que só as empresas que representam as marcas ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... é que apresentaram queixa nos autos.
Consequentemente praticou o arguido, em autoria material, um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo do D.L. nº 36/03 de 5 de Março, na redacção em vigor à data dos imputados factos, introduzida pela Lei 83/2017 de 18 de Agosto, com referência ao artigo 323º, alínea c) do mesmo diploma legal.
Salienta-se ainda aqui que foi entretanto aprovado o Decreto-Lei 110/2018, publicado em 10 de Dezembro de 2018, que revoga e altera o Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, e implementa a Diretiva de Marcas [Diretiva (UE) n.º 2015/2436, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2015] e a Diretiva relativa à proteção dos Segredos Comerciais [Diretiva (UE) 2016/943, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2016], sendo que este novo regime é aplicável a partir de 1 de Julho de 2019, com exceção das regras relativas aos segredos comerciais a ser aplicadas a partir de 1 de Janeiro de 2019 e das alterações à Lei 62/2011 a vigorar a partir de 9 de Janeiro de 2019.
Defende o arguido na sua contestação que tendo o citado artigo 324º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 36/03 de 5 de Março sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, deve ser absolvido, atento o disposto no n.º 2, do artigo 2.º do Código Penal.
Ora, tendo havido uma sucessão de leis no tempo importa aqui referir que actualmente a descrita conduta do arguido integra a previsão do artigo 321º do atual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10-12, não tendo tal conduta sido descriminalizada.
Com efeito, ao dito artigo 324.º, do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo do D.L. nº 36/03 de 5 de Março corresponde no atual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10-12, o artigo 321.º, o qual, sob a epígrafe “Venda ou ocultação de produtos” prescreve: “É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º”, onde se incluem os produtos com marcas contrafeitas ou imitadas – [cf. alínea d), do artigo 320.º].
Da simples análise dos dois preceitos legais – artigo 324.º, do antigo Código da Propriedade Industrial e artigo 321.º, do novo Código da Propriedade Industrial -, constata-se que foi eliminada a conduta puser em circulação.
Contudo, a eliminação da menção de tal conduta no atual artigo 321.º não veio operar a descriminalização da descrita conduta arguido.
Tal conduta passou a ser incluída nas ações típicas previstas no artigo 320.º, do atual Código da Propriedade Industrial, mais propriamente na sua alínea d) - Importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas.
Nesta decorrência, teremos de concluir que actualmente a descrita conduta do arguido integra a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de venda ou ocultação de produtos previsto e punido no artigo 321º, com referência ao artigo 320º, alínea d) do novo Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2018, de 10-12.
***
APRECIANDO
Sendo pacífica a jurisprudência de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, no presente recurso a questão suscitada consiste em saber se a conduta que havia sido imputada ao arguido/recorrente (pela qual foi condenado) foi descriminalizada com a entrada em vigor do novo Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.
*
A-
Alega o recorrente:
“discorda em absoluto do entendimento do douto Tribunal a quo por entender que a eliminação do segmento da norma “puser em circulação” importa, de facto, a descriminalização dos factos imputados ao arguido.
Senão vejamos:
O Tribunal a quo, analisando o antigo artigo 324.º do CPI de 2003, entendeu que os factos imputados ao arguido preenchiam o elemento objectivo do tipo “puser em circulação”, sendo que, e observando a jurisprudência disponível nesta matéria, facilmente se conclui que a sua maioria (se não toda) ia no sentido de enquadrar no conceito de "pôr em circulação" a conduta do agente que transportasse produtos contrafeitos com destino à venda.
No entanto, tal segmento de norma e elemento objectivo do tipo ("puser em circulação") deixou de existir no actual artigo 321.º do CPI de 2018, cujos elementos objectivos são, actualmente, apenas a venda ou ocultação para esse fim de produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º.
Assim, o arguido para praticar o crime previsto no artigo 321.º do CPI de 2018 tem de vender ou ocultar para esse fim, designadamente, produtos com marcas contrafeitas. Porém,
Apesar de o arguido transportar os produtos que lhe foram apreendidos com a finalidade de os vender na feira ou pôr em circulação, facto é que nem o arguido vendeu qualquer um deles, ou os ocultava, ou tão pouco lhe foi imputado que os tivesse vendido ou ocultasse para esse fim.
Já no que concerne à previsão estatuída na alínea d), do artigo 320.º do CPI de 2018, entendemos que o “colocar no mercado” aí referido não equivale ao “pôr em circulação” anteriormente previsto no artigo 324.º do CPI de 2003, pois que, e nas doutas palavras do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/11/2020, processo 104/15.5GBSCD.C3, disponível em www.dgsi.pt, “(…) o “colocar no mercadoencarado no contexto das demais ações prevenidas no tipo, tais como “importar”, “exportar” ou “distribuir”, mais não traduzirá do que a “expressão final” destas, cuja ordem de grandeza ultrapassa inequivocamente a conduta imputada nos autos”, consistente no mero transporte pelo arguido de material contrafeito para posterior venda ao público (cerca de 38 pares de calçado e 76 casacos), sendo que, e “Por outro lado, tal visão das coisas tornaria dificilmente compreensível, retomando a concreta situação, que a “exposição para venda ao público” fosse mais severamente sancionada do que a conduta de quem “vender””, ou, no caso sub judice, que o transporte efetuado pelo arguido fosse mais severamente punido que a conduta de efectivamente vender os ditos pares de calçado (cerca de 38) e casacos (76).
O transporte de material contrafeito por banda do arguido, ainda que com intenção de vender e pôr em circulação, configuraria, no limite, em nosso modesto entender, e atenta a actual redacção do artigo 321.º do CPI de 2018, uma tentativa não punível atenta a moldura penal aplicável (artigo 23.º do CP).
As normas contidas nos artigos 321.º e alínea d) do artigo 320.º do D.L. n.º 110/2018, de 10/12, quando interpretadas no sentido de nelas se subsumir o transporte pelo arguido de material contrafeito – cerca de 38 pares de calçado e 76 casacos – ainda que com intenção de vender e pôr em circulação, anteriormente punido pelo artigo 324.º do D.L. n.º 32/2003, de 05/03, estão feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da legalidade impõe, na sua essência, que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, exigindo assim que a infracção imputada ao arguido, e pela qual venha o mesmo a ser eventualmente condenado, esteja claramente definida na lei, por forma a que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respectivas consequências.
Como refere F. Dias ( - Direito Penal – Parte Geral – Tomo I, 2ª ed., pág. 180 e ss.), “por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos”, mais importando referir o n.º 3, do artigo 1.º do CP nos termos do qual se estipula que “não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde”.
Por seu lado, dispõe o n.º 2, do artigo 2.º do Código Penal que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções”.”

Portanto, considera o recorrente que a previsão de “colocar no mercado” actualmente prevista na al. d) do artigo 320.º do CPI de 2018 não equivale, nem pretende equivaler, ao “puser em circulação” anteriormente previsto no artigo 324.º do CPI de 2003, sendo que o artigo 321.º do actual CPI de 2018 deixou cair tal segmento da norma, motivo pelo qual entende que o DL n.º 110/2018, de 10 de Dez., ao revogar (por via do artigo 14.º das disposições finais) o Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, e por não prever estritamente a punição de tal conduta, eliminou, de facto, a infracção imputada nos autos ao arguido, pelo que deve ser absolvido.

Pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 132/XIII ( - Publicada no Diário da Assembleia da República, II Série A, n.º 114, em 16-5-2018.) que esteve na origem do DL n.º 110/2018, de 10 de Dez., diploma que aprovou o novo Código de Propriedade Industrial:
“ (…) a presente proposta de lei de autorização legislativa visa autorizar o Governo a: a) transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) n.º 2015/2436, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas (reformulação); b) transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2016/943, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativa à proteção de know-how e de informações confidenciais (segredos comerciais) contra a sua obtenção, utilização e divulgações ilegais; c) simplificar e clarificar os procedimentos administrativos relativos à atribuição, manutenção e cessação de vigência dos direitos de propriedade industrial previstos no Código da Propriedade Industrial; e, por último, d) introduzir mecanismos que permitam fortalecer o sistema de proteção dos direitos e imprimir maior eficácia à repressão das infrações.
(…) A introdução de melhorias aos regimes previstos no Código da Propriedade Industrial passa também por aperfeiçoar alguns dos mecanismos em matéria de repressão das condutas que violem direitos de propriedade industrial, em linha com a aposta e o investimento que tem vindo a ser feito pelas autoridades públicas no combate à contrafação. (…).”
Portanto,
ao reconhecer-se o investimento das autoridades públicas no combate à contrafacção, não faria sentido que o legislador ao alterar o Código de Propriedade Industrial deixasse cair da tutela penal determinadas condutas com relevância para os direitos da propriedade industrial e para o crescimento económico.

Pela prática dos factos dados como provados, foi o arguido condenado pelo crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo do D.L. n.º 36/2003 de 5 de Março, na redacção em vigor à data dos imputados factos, introduzida pela Lei 83/2017 de 18 de Agosto, com referência ao artigo 323º, alínea c) do mesmo diploma legal.

Estabelecia o citado artigo 324º que «É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação.».
E, nos termos do artigo 323º, sob a epígrafe “Contrafacção, imitação e uso ilegal de marca”: «É punido (…) quem, sem consentimento do titular do direito: c) Usar as marcas contrafeitas ou imitadas; (…).».
Ora, contrariamente ao que entende o recorrente, bem decidiu o tribunal a quo ao considerar que a apurada conduta do arguido, no novo Código de Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dez., encontra-se prevista e punida no artigo 321º, com referência à alínea d) do artigo 320º, os quais dispõem:
Artigo 321º sob a epígrafe “Venda ou ocultação de produtos”
«É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º».
Artigo 320º sob a epígrafe “Contrafação, imitação e uso ilegal de marca”
«É punido (…) quem, sem consentimento do titular do direito: d) Importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas; (…).».

Assim, confrontando as incriminações em causa temos:
- no artigo 324º - Venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos;
e, no actual CPI:
- no artigo 321º - Venda ou ocultação de produtos.
Sendo que, a colocação em circulação, agora com a designação de colocação no mercado, embora seja punida nos mesmos termos que a venda e a ocultação de produtos contrafeitos, passou a ficar incriminada na contrafacção [artigo 320º, al. d)].

Ou seja, o acto de “pôr em circulação” relativo ao crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos contrafeitos previsto e punido no artigo 324º do anterior CPI, e sublinha-se, com a mesma moldura penal (pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias), encontra-se previsto no artigo 320º do novo CPI enquanto acto de “colocar no mercado” produtos contrafeitos, para onde remeteu o artigo 321º.
Entendemos, assim, que o significado e alcance do acto de “colocar no mercado” previsto da al. d) do artigo 320º do actual CPI, equivale ao acto de “pôr em circulação” do artigo 324º do CPI vigente à data dos factos.
Vale isto por dizer que a conduta do arguido/recorrente não foi descriminalizada com a entrada em vigor do novo Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.

Argumenta o recorrente que “Apesar de o arguido transportar os produtos que lhe foram apreendidos com a finalidade de os vender na feira ou pôr em circulação, facto é que nem o arguido vendeu qualquer um deles, ou os ocultava, ou tão pouco lhe foi imputado que os tivesse vendido ou ocultasse para esse fim.”
Sucede que é indiferente à consumação do crime que o agente tenha sido ou não surpreendido a vender os produtos contrafeitos ou a interpelar potenciais clientes.
No caso vertente, como foi dado como provado, o arguido agiu com intenção de vender e pôr em circulação os artigos mencionados como se genuínos fossem, não obstante saber que os mesmos constituíam imitação das marcas verdadeiras, o que sempre resultaria da sua experiência nesta actividade, como se pode comprovar pelas várias condenações que sofreu por crimes da mesma natureza.

Por conseguinte, com a sucessão de leis no tempo, encontrando-se a conduta do arguido prevista no artigo 321º, com referência à al. d) do artigo 320º, ambos do novo CPI aprovado pelo citado DL n.º 110/2018, conduta igualmente prevista e punida por lei anterior ao momento da sua prática (art. 324º, com referência ao artigo 323º, alínea c), ambos do CPI, aprovado pelo do DL n.º 36/2003 de 5 de Março, com a redacção introduzida pela Lei n.º 83/2017 de 18 de Agosto), não violou a sentença recorrida o princípio da legalidade ou qualquer outro.
****
III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Coimbra, 2-3-2022
Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)