Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
199/98.8 TAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
COMINAÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 348.º, N.º 1, AL. B) DO CÓDIGO PENAL
Sumário: A desobediência atípica ou inominada – art.º 348.º, n.º 1, al. b) do actual Código Penal – exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Em processo abreviado, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusou F..., já melhor identificado, imputando-lhe a prática indiciária de factualidade alegadamente consubstanciadora da autoria material, sob a forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal [CP].
Na normal tramitação processual, realizado o contraditório, o arguido acabou condenado pela dita autoria na pena de 4 meses de prisão que, porém e ao abrigo do estatuído pelo artigo 44.º, n.º 1, do mesmo diploma, foi substituída pela pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, ou seja, pela multa global de € 1.200,00.
1.2. Por se não rever no veredicto emitido, recorre o arguido, ofertando motivação e as conclusões seguintes:
1.2.1. Atendendo ao teor da decisão recorrida, bem como à prova produzida em sede de audiência de julgamento, nunca se poderia ter decidido do modo como se decidiu.
1.2.2. Analisando a sentença recorrida, dela não se depreendem os verdadeiros motivos da efectiva condenação do arguido.
1.2.3. A acusação não logrou provar os factos suficientes para se poder condenar o arguido, nomeadamente aqueles que constam da acusação e que depois foram dados como provados na sentença recorrida.
1.2.4. Não se fez aí uma correcta interpretação da prova produzida, fazendo-se ainda uma deficiente interpretação e aplicação das normas aplicáveis ao caso em concreto.
1.2.5. Analisando a decisão recorrida, ficamos sem saber porque razão se deu como provado o que se deixou referido, porque ela é completamente omissa quanto aos elementos que permitiram chegar a tal conclusão.
1.2.6. Não é verdade que o arguido quisesse faltar à obediência devida à ordem emanada de autoridade judicial competente, que lhe fora regularmente comunicada, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal, conforme consta da sentença recorrida.
1.2.7. Sucede que o arguido, não se conformando com a sentença proferida no processo 128/2007.6 GAMMV, que correu termos no Tribunal a quo, dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
1.2.8. Que, através de Acórdão datado de 12/03/2008, entretanto transitado em julgado, a confirmou na íntegra.
1.2.9. O arguido não teve conhecimento dessa decisão, a não ser quando foi notificado do auto de apreensão efectuado pela Policia de Segurança Pública do Comando distrital de Coimbra, Secção Policial da Figueira da Foz – Esquadra de Trânsito da Figueira da Foz, conforme consta dos autos.
1.2.10. O arguido ao ser notificado do respectivo auto procedeu de imediato à entrega da respectiva carta de condução, conforme tinha sido ordenada pela dita sentença.
1.2.11. Vale por dizer, assim, que o arguido não cometeu o apontado crime de desobediência.
1.2.12. O arguido apenas teve conhecimento da decisão por acórdão aquando da notificação do auto de apreensão, e, não antes, porque não foi dele notificado.
1.2.13. Desta forma não se pode concluir e dizer que não entregou a sua carta de condução no prazo assinalado na sentença.
1.2.14. E mesmo não tinha o arguido que entregar, uma vez que interpôs recurso da respectiva sentença.
1.2.15. Não se mostram, pois, reunidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo para que o arguido fosse condenado como o foi.
1.2.16. A decisão recorrida padece de nulidade, por violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2; 375.º; 377.º e 379.º, n.º 1, al. a) todos do Código de Processo Penal [CPP].
1.2.17. Nulidade que cumpre suprir.
1.2.18. A sentença recorrida não indica um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da condenação do arguido.
1.2.19. Mesmo que se conclua haver o arguido praticado os factos por cuja autoria foi submetido a julgamento, a pena aplicada é exagerada, para quem conduz há mais de 20 anos.
1.2.20. Na operação da sua determinação igualmente foi desconsiderada a sua situação de desemprego, bem como as respectivas despesas mensais.
1.2.21. A pena de multa a considerar deve situar-se num limiar de adequação às suas possibilidades, e nunca desconsiderar as dificuldades económicas que o afligem; os seus 53 anos e o facto de a sua esposa ser doméstica.
1.2.22. Decidindo pela forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 13.º; 27.º; 29.º; 32.º; 202.º, n.º 2; 204.º e 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa [CRP]; e 61.º, n.º 1, al. c); 97.º, n.º 4; 374.º; 356.º, n.º 8; 357.º, n.º 2; 375.º e 379.º, estes todos do CPP.
Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida.
1.3. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público na 1.ª instância, sustentando o convite prévio ao recorrente para reformulação das conclusões apresentadas, e, em todo o caso, o improvimento da impugnação.
Admitida, foram os autos remetidos a esta instância.
1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à sua rejeição na parte em que se questiona a matéria de facto (o convite à reformulação das conclusões está precludido pela ausência de motivação que as suporte, entende), bem como igual não provimento no remanescente.
Cumpriu-se com o estatuído no artigo 417.º, n.º 2, do CPP.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Por isso que se determinou a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e subsequente submissão dos autos à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. Da discussão da causa, resultou como provada a seguinte factualidade:
1. Por sentença datada do dia 03.10.2007, notificada e transitada em julgado, proferida nos autos de processo abreviado n.º 128/2007.6 GAMMV, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho, foi o arguido condenado pela prática como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, com referência ao artigo 153.º, n.º 3 do Código da Estrada, na pena de cento e quinze dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), correspondente ao global de € 1.150,00 (mil cento e cinquenta euros), e ainda na sanção acessória da inibição da faculdade de conduzir pelo período de sete meses.
2. Na aludida sentença consta a advertência de que o arguido, após o trânsito em julgado de tal decisão, deveria proceder à entrega da sua carta de condução no prazo de dez dias, na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de cometer um crime de desobediência.
3. O arguido esteve presente no acto de leitura da referida sentença.
4. O arguido interpôs recurso de tal sentença.
5. Por acórdão datado de 12.03.2008, transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do identificado processo abreviado, foi aquela sentença proferida em 1.ª instância integralmente confirmada.
6. O arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução no prazo assinalado na sentença supra aludida.
7. O arguido tinha conhecimento dos factos descritos, e quis faltar à obediência devida à ordem emanada de autoridade judicial competente, que lhe fora regularmente comunicada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
8. O arguido é empresário da construção civil, auferindo rendimentos não concretamente apurados.
9. Tem três empregados a trabalhar por conta da sociedade que detém, os quais auferem vencimentos mensais entre os € 450,00/550,00.
10. Reside em casa própria, com a mulher, doméstica.
11. A sociedade que detém tem despesas mensais em leasings e empréstimos contraídos.
12. O arguido já foi condenado pela prática dos seguintes crimes:
- Crime de fraude fiscal cometido em 31.05.1993, na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução, por sentença transitada em julgado em 25.10.2001;
- Crime de condução de veículo em estado de embriaguez e crime de homicídio por negligência, cometidos em 09.11.1999, na pena única de doze meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de um ano, por sentença transitada em julgado em 14.01.2002;
- Crime de desobediência, cometido em 24.07.2005, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses, por sentença transitada em julgado em 27.03.2007;
- Crime de desobediência, cometido em 28.10.2005, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses, por sentença transitada em julgado em 18.10.2007;
- Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cometido em 24.02.2007, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de sete meses, por sentença transitada em julgado em 07.04.2008.
2.2. No que concerne a factos não provados, escreveu-se na sentença recorrida que:
“Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa para além dos supra enunciados.”
2.3. Na motivação probatória inserta na dita decisão, menciona-se:
“O tribunal fundou a sua convicção:
- No teor das certidões de fls. 1 a 23, 110 a 126, 128 a 132;
- Declarações do arguido que confirmou ter estado presente no julgamento em questão; que interpôs recurso da sentença proferida, tendo ainda confirmado que recebeu a notificação que consta a fls. 121 a fls. 123, esclarecendo que quando a recebeu se dirigiu a este tribunal para proceder ao respectivo pagamento “porque pensou que tinha perdido a causa.”
Quanto à situação pessoal do arguido interessaram as suas declarações, sendo certo que não explicitou de forma cabal e consistente, quais os rendimentos que aufere; interessou ainda o CRC junto aos autos.
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Referiu o arguido nas suas declarações que quando foi contactado pela autoridade policial para proceder à entrega da sua carta de condução no âmbito do aludido processo abreviado, desconhecia que a sentença proferida na 1.ª instância já havia transitado em julgado, uma vez que da mesma havia interposto recurso e nunca foi notificado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, sendo que após a interposição do recurso não mais voltou a falar com o seu defensor sobre tal processo.
Não logrou, porém, convencer da versão que apresentou.
Com efeito, se é certo que não está documentado nos autos a notificação ao arguido do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o certo é que o mesmo admitiu que recebeu a notificação documentada a fls. 121 a fls. 123, esclarecendo que quando recebeu tal notificação (para pagamento da multa), logo se dirigiu a este tribunal para proceder ao respectivo pagamento “porque pensou que tinha perdido a causa.”
Das declarações do arguido resulta inquestionável que o mesmo tinha conhecimento do desfecho do recurso que interpôs, sendo que, não obstante, não procedeu à entrega da sua carta de condução em conformidade com a notificação que lhe havia sido feita.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. É consabido que o âmbito do recurso se define através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso Ex vi do entendimento decorrente do Ac. do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória., dos vícios elencados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, bem como das nulidades tidas como insanáveis pelo n.º 3 do mesmo artigo.
In casu, não se nos afigurando emergir quaisquer uns destes vícios ou nulidades, vendo-se as conclusões do recorrente, questões decidendas serão as de verificarmos se:
- Padece a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação.
- Deve alterar-se o acervo fáctico, no sentido em que se não provou o elemento subjectivo da infracção assacada ao recorrente.
- Sendo caso de manutenção da condenação, sempre a pena de multa se mostra cominada em medida excessiva, impondo-se, assim, a respectiva redução.
3.2. A CRP consagra no seu artigo 205.º, n.º 1: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
Em conformidade, determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, que a sentença deve conter a “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Para a falta de indicação de alguma destas menções comina-se no subsequente artigo 379.º, n.º 1, alínea a) o vício de “nulidade” dessa peça processual.
Decorre a redacção daquele artigo 374.º, n.º 2 da Revisão do CPP operada em 1998, através da qual se veio assegurar um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto atribuída às Relações.
Desiderato prosseguido (para além da antecedente exigência da indicação das provas) com a novel imposição, não tanto o de se exigir um detalhado exame crítico da prova produzida (que a ter lugar é suportado pela documentação da prova e pela sua posterior reapreciação por parte do Tribunal Superior, e não pela intermediação subjectivada pelo tribunal, relatada tão só por um dos seus membros, sobre a forma de «apreciação crítica das provas» e a partir de meras indicações não obrigatórias dada por cada membro do tribunal recorrido), mas antes no exame crítico dos próprios meios de prova, designadamente da sua razão de ciência e credibilidade, de forma a (como refere o Tribunal Constitucional no Ac. n.º 680/98) «explicitar (d) o processo de formação da convicção do tribunal».
É que só assim se garante que não se tratou de uma ponderação arbitrária das provas ao atribuir ao seu conteúdo uma especial força na formação da convicção do Tribunal.
Com efeito, como refere Marques Ferreira (Jornadas de Processo Penal, págs. 229/30), a propósito da motivação da decisão, «Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência».
Ou, noutros termos, a ratio do mencionado imperativo legal – mormente no segmento que ora releva de tal “exame crítico” das provas que suportaram a convicção do Tribunal – radica, em suma, no facto de permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, e das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal, bem como assegurando a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.
Ao contrário daquilo que clama o recorrente, não existem dúvidas de que analisando a motivação probatória da decisão de facto, se verifica que a mesma indicou os meios de prova (thema probandum) – sentença condenatória anterior e admoestação nela cominada; sua notificação e guia de fls. 121; e declarações do próprio arguido, a propósito do alcance do pagamento que esta traduz –, e, acto contínuo, explicitou ainda a razão da credibilidade que lhes atribuiu, tudo a facultar, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, a determinação sobre qual o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido seguido, dela se extraindo de uma forma lógica e objectiva, qual o raciocínio que levou o Tribunal recorrido a dar como provados os factos que deu como assentes, segundo o princípio da livre apreciação da prova, e as regras da experiência comum.
O que é coisa distinta e não obstaculiza, obviamente, da discordância com o juízo conclusivo acolhido.
E fundamento, pois, para que se não descortine a alegada nulidade.
3.3. A impugnação da matéria de facto pode lograr-se por uma dupla via: ou por apelo à revista alargada considerada no mencionado artigo 410.º, n.º 2; ou, através do mecanismo estipulado no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma.
Na motivação, o recorrente não alude àquela primeira forma. Como já dito também, entendemos que a decisão recorrida não padece de um qualquer desses vícios.
No que concerne à segunda, a lei adjectiva penal impõe que o recorrente, quando se pretende socorrer de tal faculdade, visando a modificabilidade dos seus termos pela Relação, ao abrigo do artigo 431.º, do CPP, há-de cumprir o ónus de impugnação, sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua omissão, previsto no citado artigo 412.º n.ºs 3 e 4, em particular indicando especificadamente os pontos de facto que reputa incorrectamente julgados. E, impugnar especificadamente é enumerá-los um a um, primeiro porque o novo julgamento que deles se pede à Relação, para assegurar um efectivo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto, é um julgamento segmentado, respeitando a aspectos parcelares, um remédio para questões pontuais e nunca uma reapreciação global daquela matéria; depois, porque o tribunal de recurso não dispõe de poderes adivinhatórios, exigindo, numa óptica de colaboração, de lealdade mas sobretudo de celeridade processual, dispensando a controvérsia e a evitável demora processual, a satisfação daquela enumeração, das concretas provas que autorizam uma diferente solução, por referência aos suportes magnéticos onde constam as provas.
O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
Como assim, não satisfaz ao desígnio legal uma impugnação genérica dos factos que se quede por uma insatisfação difusa ante o quadro factual fixado, explanada sem ser por referência, ainda que com um mínimo de tradução no texto da motivação, a factos concretos. O que sucede, v.g., quando pela leitura das conclusões, se denota que à discordância pontual se sobrepõe o seu desacordo, envolvendo comentários, a seu modo, aos factos provados, aos meios de convicção do tribunal, invocando razões que em seu ver afastam a conclusão a que chegou o tribunal. O recorrente, em tal hipótese, à convicção própria do Tribunal a quo, limita-se a sobrepor a sua, na óptica dos seus interesses.
O caso patente dos autos, já que o arguido se absteve de enumerar os factos, havidos por erroneamente provados, e também pela leitura das conclusões se não colhe referência a concretas provas e os concretos locais onde constam no registo magnetofónico respectivo.
O Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça têm decidido pela inconstitucionalidade do entendimento que rejeita o recurso quanto à matéria de facto sem previamente convidar o recorrente a suprir as deficiências e obscuridades das conclusões do mesmo – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 529/2003, de 31.10, publicado no DR, II.ª Série, de 17.12.2003, e Acórdão do STJ, de 30.10.2002, in processo n.º 2535/02-3.ª, SASTJ, n.º 64, pág. 90.
Compreende-se: são casos em que o recorrente expôs de forma válida e consistente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinalou devidamente nas conclusões. Isto em nome de uma proibição de excesso, do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), de compressão ao mínimo dos direitos, essencialmente do arguido, na filosofia marcada ao direito processual, que, enquanto instrumental, serve o direito material, substantivo.
Esse convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do direito ao recurso.
A correcção há-de mover-se dentro dos termos da própria motivação, e esta conclusão mostra-se, hoje, inteiramente suportada pela lei, muito particularmente do artigo 417.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/07, de 29/8, onde se consente, na concretização legislativa, da jurisprudência constitucional e sem o ser, o convite ao aperfeiçoamento das conclusões em ordem à harmonização com a motivação, mas sempre dentro dos limites da motivação do recurso. Neste sentido se pronunciou o Ac. do TC, de 10.3.2004, processo n.º 565/2003, reafirmando a inconstitucionalidade da interpretação dos n.ºs 3 a), b) e c) e 4, do artigo 412.º, do CPP, quando sustenta o não conhecimento da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, mas desde que da motivação constem aquelas indicações faltosas.
O convite não vai ao ponto de substituição ainda que parcial “da motivação”; a jurisprudência do TC não vai ao extremo de permitir, por ex., ao arguido “apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos “ – Ac. do TC n.º 259/02, de 18/6, DR, II.ª Série, de 13/12/2002.
A jurisprudência constitucional nunca consagrou um genérico direito de aperfeiçoamento nas novas conclusões.
O regime geral dos recursos mostra-se global, unitária e autonomamente regulamentado no CPP, sendo sempre motivado, como forma de desencorajar pretensões, à partida sem qualquer viabilidade, considerando que uma percentagem significativa de recursos no domínio do CPP de 29, se mostrava infundamentada, disciplina essa sem necessidade de recurso ao CPC enquanto lei subsidiária, por força do artigo 4.º, do CPP.
A falta de impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto explicitamente, distinguindo a lei entre recurso respeitando à matéria de facto e de direito, cindindo os respectivos planos em termos de poder cognitivo – artigo 403.º, do CPP – não pode deixar de levar à improcedência parcial, prejudicando o conhecimento da matéria de facto.
Tais considerações são pertinentes ao caso presente, pois que o recorrente, em ponto algum da motivação, dá acatamento aos ónus que sobre si recaiam. Facto que preclude qualquer possibilidade de convite, mesmo que como sugerida pelo Ministério Público na 1.ª instância.
E tudo impõe a manutenção do acervo fáctico então acolhido.
Em todo o caso, sempre caberá dizer-se o seguinte:
Ao arguido vinha imputada a prática de um crime de desobediência, cuja previsão é, nos termos do apontado artigo 348.º, n.º 1, al. b), em causa:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
(…)
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
(…).”
A correspondente redacção – do CP de 82 –, eu artigo 388.º, era a seguinte:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandato legítimo que tenha sido regularmente comunicado e emanado de autoridade ou funcionário competente será punido com prisão até 1 ano e multa até 30 dias.
2. A mesma pena será aplicada se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência simples.
3. A pena será de a de prisão até dois anos e multa até 100 dias se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência qualificada.”
A redacção daquela alínea b), suscitou já comentários de perplexidade, uma vez que, num código de direito penal, se plasmou assim um tipo legal de crime que, nesse concreto item, é um autêntico não tipo legal, tanta a atipicidade que comporta, em flagrante desrespeito e afronta ao princípio da legalidade criminal. Exemplificativamente, relembramos: Figueiredo Dias [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] quando expressou as suas dúvidas quanto a este artigo; Sousa e Brito [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 409], que defendeu a restrição do âmbito de aplicação do artigo pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem; por último, Maia Gonçalves, consignando que se trata de um artigo controverso [Código Penal Anotado, comentário ao art.º 348.º].
Mais do que um tipo aberto, norma penal em branco, cuja densificação cabe em último caso ao julgador, o art.º 348.º n.º 1 al. b) do Código Penal contém como elemento típico uma possível decisão discricionária, a ser tomada em cada caso concreto por um agente da administração.
Ora, isto é um ataque ao que de mais sagrado existe no direito penal, o princípio da legalidade – na formulação latina que lhe foi dada por Feuerbach: nullum crimen, nulla poena sine lege – e a um dos seus conhecidos corolários: nullum crimen, nulla poena sine lege scripta.
Só a lei formal ou a lei em sentido jurídico-constitucional estrito pode fundamentar a incriminação e a punição. Consequentemente são inadmissíveis outras fontes de incriminação e punição [Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, Digesta, Vol. I pág.355].
Não podendo o intérprete fugir à letra da lei, já é tarefa dos tribunais, uma sua interpretação conforme a constituição o que necessariamente impõe, no caso, uma sua interpretação exigentemente restritiva, não incriminando tudo o que possa ser considerado não obediência. Desde logo fazendo valer o princípio bagatelar ou da insignificância ancorado no carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, negando dignidade criminal a algumas condutas taxadas de desobediência que nem sequer foram consideradas merecedoras de tutela por parte de uma ordem sancionatória não penal [Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354].
Por outro lado – conforme resulta hoje claramente do confronto da pré-vigente e da actual redacção do crime de desobediência, art.ºs 388.º do Código Penal de 1982 e 348.º do Código Penal de 1995 – a desobediência atípica ou inominada – art.º 348.º, n.º 1, al. b) do actual Código Penal – exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação. Ora a correspondente cominação funcional, no mínimo, atendendo ao que deixamos dito, só pode ser: faz isto ou não faças aquilo, sob pena de incorreres em crime de desobediência.
O legislador na reforma [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] teve o cuidado de acrescentar a necessidade de ser feita a correspondente cominação, que só pode ser, no mínimo, a de crime de desobediência.
Estes pressupostos encontram-se provados na matéria de facto acolhida na 1.ª instância, pois que o arguido, condenado no âmbito do processo n.º 128/07.6 GAMMV, além do mais, na sanção acessória de 7 meses de inibição da faculdade de conduzir, estando presente à leitura da sentença, foi então advertido de que, após o trânsito em julgado de tal decisão, deveria proceder à entrega da sua carta de condução no prazo de dez dias, na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de cometer um crime de desobediência.
Obtempera agora que interpôs recurso dessa sentença; que não teve conhecimento do acórdão confirmatório da primitiva condenação, e, apenas ulteriormente, aquando da apreensão da licença pela PSP, teve conhecimento do vínculo a que estava adstrito.
Sendo certo que a interposição de recurso pelo efeito suspensivo atribuído, sobrestou a obediência devida à ordem, e que o aresto da Relação não tinha que lhe ser pessoalmente notificado, não menos verdade é que, ao menos no momento em que se dirigiu ao Tribunal a quo para solver a pena pecuniária principal que também lhe foi aplicada, ficou ele ciente da necessidade de obediência ao determinado. Como anota a M.ma Juiz recorrida na motivação, ele próprio explicitou ter pensado na altura “que tinha perdido a causa.” Ora, isto mais não é do que a tomada plena de consciência de obediência ao sentenciado e, a sua revelia, a desobediência pura ao devido.
Perfeccionados desta forma, e como mais se demonstra na sentença recorrida, os pressupostos para a decretada responsabilização criminal do recorrente.
3.5. Por fim, o arguido insurge-se contra a pena de multa.
Embora sem destrinçar, fundamentadamente, “parece” questionar o seu quantum e montante arbitrado.
A decisão impugnada optou pela imposição de uma pena principal de prisão (atentas as razões de prevenção especial que se faziam sentir), e depois considerou o recurso à pena de substituição, considerando a inserção social do arguido.
Nada de convincente invoca o recorrente no sentido de reverter tais considerações e, nessa perspectiva, sem alcance aquele primeiro ponto.
Já no que tange ao segundo, também naufraga a pretensão.
A sentença recorrida considerou adequadamente os elementos fácticos recolhidos sobre a sua situação patrimonial. De nada vale o seu apelo, porque inconsistente, a uma pretensa situação económica que lhe não permitiria suportar o montante fixado.
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IV – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto, se nega provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 11 de Março de 2009