Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/09.0PAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PROVA
VIDEOVIGILÂNCIA
Data do Acordão: 11/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO
Legislação Nacional: ARTIGOS 126º, 127 E 167 CPP E 4º Nº 4, 7º Nº 2 E 28º DA LEI 67/98 DE 26/10
Sumário: 1.- A videovigilância visa finalidades sociais de “protecção de pessoas e bens”. É uma medida preventiva e de dissuasão em relação à prática de infracções penais.
2.- As imagens dos arguidos obtidas através de sistema de videovigilân­cia instalado na ourivesaria onde foi praticado o furto julgado nos autos, e com vista a prevenir a segurança desse estabelecimento, não se traduziram em qualquer acto de intromissão na vida privada alheia, podendo ser validamente utilizadas como meio de prova.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foram os arguidos A..., B... e C... condenados, cada um, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão pela prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, dos art. 204.º, n.º 1, als. a) e e), e 26.º, do Código Penal.

Foram, ainda, condenados a pagar ao demandante D... a quantia de 18.731,39 euros, correspondente à totalidade do pedido de indemnização civil deduzido a título de danos patrimoniais resultantes da actuação dos arguidos.

2.

Inconformados, os arguidos recorreram, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1. Foram os arguidos: B..., C..., A..., condenados numa pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, pela prática em co-autoria material de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 204.º n.º 1 alíneas a) e e) e 26.º do Código Penal.

2. Invocam em sede de recurso os arguidos:

a)         a nulidade da sentença – nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea c) do CPP;

b)         a violação do principio in dubio pro reo;

c)         e sobre a medida da pena que foi aplicada aos arguidos. Sendo que esta não é proporcional ao grau de culpa, nem tão pouco será a adequada, no que em concreto diz respeito à finalidade das penas.

3. A prova trazida aos autos nunca poderia ter determinado que se dessem como provados todos os factos descritos na acusação. Aliás vingando a primeira alegação dos recorrentes (prova ilegal) impõe-se sim a absolvição dos arguidos.

4. Da nulidade da sentença: Dispõe o artigo “Artigo 379.º n.º1, alínea c)- É nula a sentença (…) que conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

5. Quer em sede de inquérito, quer em sede de apreciação de prova (da formação da convicção) reverenciam os presentes autos a fotogramas recolhidos de imagens de gravação do estabelecimento comercial em causa.

Tal prova foi recolhida sem o consentimento dos arguidos e em clara intromissão na vida privada destes.

6. Os fotogramas constantes dos autos constituem prova ilegal que não podia ter sido valorada pelo tribunal, nem tão pouco as testemunhas deviam ter sido confrontadas com a mesma.

7. Os estabelecimentos comerciais não são locais públicos, mas sim locais abertos ao público, pelo que, o que dentro dos mesmos se passa pertence ao foro íntimo e à vida privada de cada um.

8. A recolha de tal prova pode ser considerada como uma conduta típica criminosa, porquanto, dispõe o artigo 199.º n.º 2 do Código Penal, é punido quem contra a vontade do titular do direito fotografar ou filmar pessoa, utilizar ou permitir que se utilizem tais fotografias e filmes ainda que licitamente obtidos, pelo que a incriminação penal - ainda que se considere que tais provas foram licitamente obtidas, mantém-se.

9. A recolha de tal prova só seria permitida se se encontrassem preenchidas as formalidades prescritas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.

10. Mais, apesar de a Lei 5/02 de 11 de Janeiro se referir a gravações de som e imagem para alguns tipo de crime, tal não se aplica ao crime de furto. Sendo que, só no caso de existir investigação quanto a esses crimes é admitido tal meio de prova recolhido sem o consentimento do visado.

11. O fim visado pela videovigilância instalada em estabelecimentos comerciais só pode ser exclusivamente o de prevenir a segurança do próprio estabelecimento, mas devendo conter o aviso aos que lá se encontram ou se deslocam de que estão a ser filmados e só, nesta medida, a videovigilância é legítima. – Este facto não foi sequer ponderado quer em sede de discussão e julgamento quer em sede de inquérito.

12. Na verdade, as imagens/fotogramas oferecidas como meio de prova e destinado a fazer prova de factos imputados aos arguidos, não obedeceram aos requisitos impostos por lei, ou seja, o cidadão não estava autorizado para o fazer e o sistema de videovigilância não se encontrava devidamente assinalado, sendo que, nestas circunstâncias as imagens constituem, uma abusiva intromissão na vida privada e a violação do direito à imagem dos arguidos.

13. O regime de proibições de prova no âmbito do processo penal, encontra-se regulado nos art. 125.º/126.º, do Código Processo Penal, os quais devem ser conjugados com as garantias constitucionais de defesa, consagradas no art. 32.º, CRP; bem como, com as disposições específicas que disciplinam a obtenção do meio de prova de que pretende se fazer uso.

14. O citado artigo 32.º, n.º 8 da CRP, é claro ao preceituar que "São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações."

No mesmo sentido, refere o artigo 126.º n.º 3, que são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (…).

15. Mais, tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo. É uma nulidade insanável.

É nosso entendimento que o modo de obtenção das imagens constantes dos fotogramas, constituem prova nula e em consequência, não podem ser consideradas ou valoradas, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos nos artigos 118º, 125º, 126º, do CPP.

16. Sobre a violação do principio in dubio pro reo:

17. As testemunhas referem-se aos lesados, sendo que o proprietário do estabelecimento comercial chega a testemunhar enquanto parte civil, não estando por isso sequer obrigado ao dever de responder com verdade;

18. São as testemunhas confrontadas apenas com meios de prova ilegais;

19. A acrescer ainda que em sede de depoimento dos agentes de autoridade, nada se esclarece quanto ao decorrer do inquérito, ou sequer sobre a forma como são devidamente identificados os arguidos nos presentes autos.

20. Os elementos trazidos aos autos não permitem sem réstia de dúvida formar a convicção que a final foi formada pelo douto tribunal. Excelentíssimos Senhores Desembargadores, não estamos perante uma fase de inquérito e de acusação – onde bastaria a verificação de indícios suficientes e a eventual probabilidade de aos arguidos vir a ser aplicada uma pena, para decidir pela prática do crime. Na fase decisória, a convicção do tribunal não pode ser formada em meras convicções, ou prova ilegal quando inclusive não existem elementos que são essenciais ao conhecimento da verdade material.

21. Diz-se também, que se alega em sede de medida da pena aplicada, o que se faz por mera cautela de patrocínio.

22. Atento o disposto no artigo 71.º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena far-se-à em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade) e atendendo a todas as circunstâncias que, não integrando o tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente.

23 E na verdade o que acontece, é que o douto tribunal não faz sequer qualquer juízo de medida da culpa dos arguidos, “levando pela mesma tabela” arguidos com antecedentes criminais e arguidos sem antecedentes criminais….. arguidos que supostamente praticaram factos directamente e arguidos que não praticaram qualquer facto danoso…….

24. Sendo certo que, em sede de exigências de prevenção especial de socialização, o tribunal a quo não considerou, salvo o devido respeito, todos os elementos trazidos aos autos e a prova aí realizada.

25. Nomeadamente o arguido A... é uma pessoa de idade avançada, sem quaisquer antecedentes criminais e com um estado de saúde débil, como facilmente se poderá também comprovar pela junção dos documentos ora anexos.

Já os arguidos B..., C... têm um historial de toxicodependência, e também de saúde débil, juntando-se para os devidos efeitos os relatórios médicos referentes a B....

26. Note-se ainda que não foram sequer solicitados relatórios sociais sobre os arguidos, para que na determinação da medida da pena aplicar se considerassem todas as circunstâncias sobre o seu estado pessoal, de saúde, familiar, social e até de integração.

27. A pena na qual os recorrentes são condenados, será em primeira linha excessiva.

Não é adequada nem proporcional.

E é essencialmente e objectivamente injusta em função da culpa dos agentes e restantes circunstâncias - cfr. Artigos 40.º, 50.º, 71º, 72.º e 73.º do Código Penal.

28. Verificados os seus pressupostos – formal e material – exigidos no artigo 50.º do C.P, devia a respectiva pena ser suspensa na sua execução.

Não só porque o seu limite será inferior a 5 anos mas também porque ela se revela adequada e suficiente à realização das finalidades da punição».

Terminam pedindo que a sentença seja declarada nula e que sejam absolvidos ou, pelo menos, a redução das penas aplicadas, cuja execução sempre deve ser suspensa.

3.

Os recursos foram admitidos.

4.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Relativamente à nulidade da sentença decorrente do recurso a prova nula, entende que a obtenção dos fotogramas através do sistema de videovigilância existente em estabelecimento comercial não corresponde a qualquer método proibitivo de prova. Quantos às penas aplicadas, entende que devem ser mantidas por se revelarem adequadas ao crime cometido.

Nesta Relação o Exmº P.G.A. emitiu parecer pugnando pela procedência parcial do recurso, com a diminuição das penas aplicadas.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*


FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«A. Da acusação

1.         No dia 28 de Agosto de 2009, pelas 12h06, os arguidos B..., C... e A…, na sequência de um plano conjunto que previamente haviam delineado, dirigiram-se ao estabelecimento comercial denominado “WWW…” pertencente a D... e a E..., sito na Rua …, em Ourém, com intenção de ali entrarem e fazerem seus os objectos em ouro que lhes interessassem.

2.         Ali chegados, e uma vez que o referido estabelecimento comercial se encontrava aberto ao público, os arguidos entraram todos no estabelecimento comercial.

3.         Então, o arguido A... dirigiu-se a E... que ali se encontrava a atender os clientes que entrassem no referido estabelecimento e com intenção de a desviar dos restantes arguidos manifestou-lhe o desejo de adquirir um dos relógios que estava numa montra, junto à porta de entrada.

4.         Por esse motivo, E...dirigiu-se com o arguido A...para junto da referida montra dos relógios e começou a mostrar-lhe os mesmos.

5.         Entretanto e aproveitando o facto de E...se encontrar distraída a atender o arguido A…, os arguidos B... e C... dirigiram-se para o outro lado da loja, onde se encontrava a montra dos artigos em ouro, tendo o arguido C... rodado a chave da fechadura da referida montra, logrando abri-la e dali retirou e fez seus, um tabuleiro que continha 15 (quinze) fios em ouro, no valor total de 16.731,39 e colocou-os dentro de um saco que a arguida B... tinha na mão.

6.         Seguidamente, os arguidos B... e C... dirigiram-se para a porta de saída, tendo então também o arguido A...declinado a compra de qualquer relógio e também se dirigindo para a porta de saída, abandonando o estabelecimento comercial juntamente com os outros arguidos.

7.         De seguida os arguidos dividiram entre si os objectos em ouro de que se apropriaram.

8.         Os arguidos agiram todos de forma livre deliberada e consciente, querendo e conseguindo fazer seus os referidos fios em ouro, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade do seu dono.

9.         Para concretizarem os seus intentos quiseram e conseguiram, em comunhão de esforços e intentos, à luz de plano previamente gizado, fazer seus objectos de valor elevado, logrando abrir a porta da montra onde os mesmos se encontravam guardados.

10.       Sabiam todos os arguidos que a sua conduta era proibida e punida por lei.

11.       O arguido A...não tem antecedentes criminais registados.

12.       A arguida B... apresenta os antecedentes criminais registados constantes do CRC de fls. 168 a 174 – que aqui dou por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

13.       O arguido C... apresenta os antecedentes criminais registados constantes do CRC de fls. 175 a 184 – que aqui dou por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 

B Do pedido de indemnização civil

Para além da factualidade que supra se deixou consignada, relativamente à matéria criminal em apreço nos autos, com relevância para o pedido de indemnização civil formulado resultou provado que:

1.         Em virtude da conduta dos arguidos o demandante viu-se forçado a deslocações à PSP e ao tribunal por diversas vezes.

2.         Em consequência da conduta dos arguidos o demandante sentiu tristeza, incómodos e insegurança passando muitas noites sem dormir».

7.

Não houve factos relevantes julgados não provados

8.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«O tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida e examinada em audiência de julgamento, designadamente:
a) a posição dos arguidos
Os arguidos declinaram o direito a prestar declarações em tribunal pelo que nesta parte nada há a consignar.
b) prova testemunhal
Louvou-se o tribunal do depoimento prestado pela testemunha D..., que à posteriori visionou as imagens obtidas com recurso ao sistema de videovigilância instalado no estabelecimento a cujos destino preside e que foi peremptório na identificação dos arguidos. Prestou depoimento espontâneo, claro e isento, pese embora a sua própria posição pessoal relativamente ao sucedido. Mais, confirmou quais os objectos furtados, fios em ouro, suas características e montante envolvido nos factos. Mereceu integral credibilidade por parte do tribunal.
A testemunha E... possui conhecimento pessoal e directo dos factos em apreço nos autos, posto que era ela que se encontrava no estabelecimento quando os arguidos ali entraram e foi na sua presença que todo o iter criminal provado se desenrolou. Confirmou que a sua atenção foi distraída pelo arguido A…, que solicitou a sua presença num local afastado do balcão da loja, sendo que enquanto ali a mantinha com perguntas acerca dos relógios expostos, manifestando interesse num e noutro, os outros arguidos levaram a cabo os propósitos que os animavam. Não se apercebeu da subtracção dos fios em ouro, só sendo confrontada com a mesma em momento posterior a instâncias do seu marido que a questionou acerca dos fios subtraídos. Todavia, não teve qualquer dúvida na identificação dos arguidos em sede de julgamento, referindo que eram efectivamente estes as pessoas envolvidas nos factos. Mereceu também ela integral credibilidade por parte do tribunal
A testemunha F..., agente da PSP tomou conta da ocorrência quando esta foi participada e foi com base nas imagens obtidas que desenvolveu a investigação que veio a culminar na acusação deduzida.
De igual forma, a testemunha G... desenvolveu actividade de investigação subsequente à denúncia dos factos e confirmou, dentro dos limites do seu conhecimento a autoria dos factos.
c) prova documental
Louvou-se o tribunal do teor das fotografias juntas aos autos de fls. 34 a 37 e 42 a 44 e auto de reconhecimento de fls. 46, examinadas em sede de julgamento e aí corroborada a identificação dos arguidos por todas as testemunhas, CRC´s de fls. 125, 168 a 174 e 175 a 184.».

            9.
            Consigna-se, ainda, que o arguido A... faleceu em  … tendo, quanto a este, sido declarado extinto o procedimento criminal.


*

*


DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Nulidade da sentença

II – Violação do princípio in dubio pro reo

III – Impugnação das penas aplicadas


*


I – Nulidade da sentença

            Os arguidos começam por imputar à sentença recorrida a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. c), do C.P.P., que dispõe que é nula a sentença «quando o tribunal … conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

            A questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento, na tese dos arguidos, consiste no acesso aos fotogramas retirados das gravações feitas pelo sistema de videovigilância existente no estabelecimento assaltado, que contêm imagens suas.

            Dizem eles a este propósito que os estabelecimentos comerciais não são locais públicos, mas sim locais abertos ao público. O que se passa dentro deles pertence ao foro íntimo e à vida privada de cada um, pelo que a recolha de imagens em tais circunstâncias integra o crime do art. 199º, nº 2, do Código Penal, uma vez que a Lei 5/02, de 11/1, não se aplica ao crime de furto. O fim exclusivo da videovigilância é zelar pela segurança do próprio estabelecimento e quando ela exista deve, sempre, estar anunciada. Só nestes exatos termos ela é legítima.

Em processo penal a regra é que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» - art. 125º do C.P.P.

«Apesar da formulação desta norma legal parecer tautológica, dela podemos retirar que, por um lado, são permitidos outros meios de prova que não apenas os configurados na lei, por outro, que aqueles que aí estão previstos só se tornarão proibidos se forem obtidos por meios expressamente excluídos, designadamente (mas não só), por tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas …» [1].

No art. 126 do C.P.P. a lei consagra um regime de proibições de prova e também, e por via disso, de proibições de valoração de prova obtida através de métodos proibidos. Trata-se de vias ilegais para a descoberta da verdade.

Nos termos do nº 1 são nulas, desde logo, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, mediante ofensa à integridade física ou moral das pessoas e proíbe a sua utilização.

De seguida o nº 2 enumera as situações de obtenção de prova com ofensa da integridade física ou moral. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas mediante:

«a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;               

b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;

d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;

e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível».

Esta norma plasmou o princípio constitucional das proibições de prova do nº 8 do art. 32º, que diz que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».

A propósito Jorge Miranda refere que o que esta norma tem de novo não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova, mas sim a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas, nulidade que deve ser considerada em sentido forte, com proibição absoluta da sua utilização no processo: «seria intolerável que para realizar a Justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei» [2].

Estas provas são nulas sejam quais forem as circunstâncias que presidiram à sua obtenção. E sendo nulas não podem ser utilizadas.

Conforme se vê, este sistema de nulidades de prova e proibição da sua valoração constitui um limite ao princípio da livre apreciação do art. 127º do C.P.P.

Outros casos há em que as provas, embora sendo nulas, podem ser salvas e, depois, validamente utilizadas se o titular consentir na sua utilização.

É esta a situação contemplada no nº 3 do art. 126º, que diz que «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular».

Aqui – ressalvados os casos previstos na lei -, a proibição de prova pode ser afastada mediante o consentimento do titular do direito. Embora sendo um domínio relevante à área dos direitos fundamentais, a lei entendeu colocar na disponibilidade dos respectivos titulares a sua defesa, dando-lhes a possibilidade de consentirem na utilização da prova obtida mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Aqui todo o relevo é conferido à vontade do titular, segundo o princípio volenti non fit injuria (não se comete injúria, ou não se prejudica a quem consente).

Como dissemos, os arguidos defendem que os estabelecimentos comerciais não são locais públicos, apenas locais abertos ao público, e o que «dentro dos mesmos se passa pertence ao foro íntimo e à vida privada de cada um». Por isso a recolha de prova no seu interior, nos termos em que foi feita, integra o crime do art. 199º, nº 2, do Código Penal.

O art. 26º, nº 1, da Constituição garante que a todos é reconhecido o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

Em conformidade o nº 8 do art. 32º sanciona com a nulidade as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada. Também a lei ordinária reflecte esta preocupação constitucional e sanciona nos mesmos termos as provas assim obtidas.

Relacionado directamente com a matéria temos a norma constante do art. 167º do C.P.P., que diz, no seu nº 1, que «as reproduções fotográficas, cinematográficas … só valem como meio de prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal».

É aqui, precisamente, que se integra a prova obtida com recurso a sistemas de videovigilância.

Sobre a compatibilização das normas dos art. 126º e 167º, citados, diz Costa Andrade que [3] que quando a utilização ou valoração das fotografias não origine ilícito penal, à luz do art. 192º do Código Penal, isto é, quando as reproduções não contendam com a intimidade, a sua valoração será admissível, por via do nº 1 do art. 167º referido. Ao invés, configurado que esteja um ilícito penal substantivo já não será possível a utilização ou valoração de qualquer registo fotográfico.

Dispõe o art. 35º da Constituição que todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização e têm o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.

No nº 2 proibe-se o acesso de terceiros a ficheiros com dados pessoais e o nº 3 determina que a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.

«Daí que se possa sustentar que, com a tipificação do crime do art. 193 do Código Penal, pretende-se tutelar a interdição do registo informático de dados que revelem as convicções políticas, religiosas ou filosóficas, a filiação partidária ou sindical, bem como a vida privada ou a origem étnica de uma certa pessoa, permitindo a esta o controlo de tais dados» [4].

Mas ainda não chegamos ao conceito de imagem e privacidade. Como é que devemos entendê-los numa perspectiva jurídico-penal?

A autoridade nacional cuja atribuição é controlar e fiscalizar o cumprimento das normas em matéria de proteção de dados pessoais é a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD).

No entanto, e a menos que a questão respeite ao tratamento de dados sensíveis, a lei não exige controlo prévio por parte desta entidade para a instalação de sistemas de videovigilância, tal como resulta dos art. 4º, nº 4, 7º, nº 2, e 28º da Lei 67/98, de 26/10.

Dados sensíveis são, di-lo o nº 2 do art. 7º, os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos».

«O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, direito de resguardo, como é designado pela doutrina italiana, ou direito a uma esfera de segredo, para a teoria germânica, corresponde ao reconhecimento de uma merecida tutela quanto à natural aspiração da pessoa a uma esfera íntima de vida, ao direito de estar só (right to be let alone) … consistindo no direito de qualquer pessoa a que os acontecimentos íntimos da sua vida privada, que só a ela se referem, não sejam divulgados sem o seu consentimento, independentemente do carácter ofensivo da reputação … a intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, só pode desenvolver-se, no âmago da casa ou do lar … compreendendo aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, tais como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares praticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade …» [5].

Sendo o direito penal um direito de última ratio, que só deve intervir em casos absolutamente limite, é claro que aqui não se pode entender um qualquer conceito com a mesma amplitude com que os entendem outros ramos do direito, por exemplo o direito civil.

Deste modo entendemos que o conceito de dados pessoais, nas vertentes de direito à imagem e privacidade e que despoletam a intervenção do direito penal, seja qual for o tipo legal que se suscite, abrange apenas “o núcleo duro da vida privada”, o núcleo irredutível e mais sensível: a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita [6].

No nosso caso o sistema de videovigilância foi instalado num estabelecimento comercial, mais concretamente numa ourivesaria.

Num tal caso, e como é entendimento unânime, a videovigilância visa finalidades sociais de “protecção de pessoas e bens”. É uma medida preventiva e de dissuasão em relação à prática de infracções penais.

Por isso é criminalmente atípica a obtenção de fotografias ou filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, como sucede quando a captação seja feita em lugares públicos, quando visem a realização de interesses públicos ou de factos que tenham ocorrido publicamente [7].

Considerando todo o exposto é seguro que a prática de um acto ilícito – como é o caso -, não integra o conceito de privacidade contemplado na lei penal, donde é despropositado reivindicar a ilegalidade da recolha de dados, que respeitam à prática de um ilícito criminal, por violação desse direito. Se a prática de um crime integrasse o direito fundamental à imagem e vida privada, sendo estes direitos invioláveis, resultava que em última instância qualquer prova sobre ela poderia ser tida como ilegal.

Portanto, a recolha de imagens dos arguidos, feita dentro da ourivesaria, quando estes praticavam o furto aqui julgado, é legítima, legal, e como tal os fotogramas podiam, como foram, ser usados e considerados na decisão sobre a matéria de facto [8].

Da sua utilização, em conjugação com outras provas produzidas, resultou a certeza da prática, pelos arguidos, do crime de que foram condenados, pelo que não cabe falar em violação do princípio in dubio pro reo, que apenas é suscitado quando ocorram dúvidas insuperáveis de prova da factos negativos.

Não ocorre, portanto, a nulidade da sentença decorrente da utilização de provas nulas.

No entanto a sentença padece de um outro vício, derivado de uma omissão aflorada ao de leve no recurso.

Apurados que estejam os factos e constituindo eles um ilícito penal, há que os tipificar para, depois, se proceder às operações de escolha e fixação da pena.

No processo de fixação concreta da pena o tribunal tem que atender, di-lo a lei na al. d) do nº 2 do art. 71º do Código Penal, às condições pessoais do agente e a sua situação económica.

A sentença é completamente omissa nesta matéria: do elenco da matéria assente não constam factos que permitam aquilatar da justeza das penas aplicadas.

O tribunal não diligenciou no sentido de recolher elementos sobre os arguidos, nomeadamente sobre aspectos pessoais e profissionais, com vista à fixação das penas. Ou seja, o tribunal não esclareceu um ponto crucial da matéria de facto, abrangido no thema probandum, e ficou aquém do que devia, precisamente porque não esgotou este tema, que lhe estava acometido [9].

Esta omissão gera o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois que desta não constam todos os elementos que, podendo e devendo ser indagados, são essenciais à sua prolação [10].

Nos termos do art. 426º, nº 1, do C.P.P. quando ocorra um vício do nº 2 do art. 410º e se não for possível decidir a causa, por o processo não dispor dos elementos em falta, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento.

No caso, o vício verificado inviabiliza a decisão da causa por parte deste tribunal, por absoluta falta de elementos relativos às condições pessoais dos arguidos, razão pela qual se determina o reenvio do processo à primeira instância, para apuramento das condições necessários à escolha e fixação das penas correspondentes ao crime cometido pelos arguidos.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos art. 426º, nº 1, e 426º-A, nº 1, ambos do C.P.P., restrito à averiguação dos elementos necessários à escolha e fixação das penas para, de seguida, ser proferida nova decisão que considere os factos provados mais os elementos apurados entretanto.

Sem custas.

Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Acórdão do S.T.J. de 20-4-2006, processo 06P363.
[2] Constituição Portuguesa anotada, , tomo I, 2005, pág. 361.
[3] Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 2006, pág. 262 e segs.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 31-5-2006, processo 0111584.
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 3-5-2005, processo 920/05.
[6] Acórdão da Relação do Porto, já citado.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra de 17-4-2002, tomo III, pág. 40 e da Relação de Lisboa de 28-11-2001, tomo V, pág. 138.
[8] Vide acórdãos da Relação do Porto de 3-2-2010, processo 371/06.5GBVNF.P1 e da Relação de Coimbra de 26-1-2011, processo 68/10.1PBLRA.C1.
[9] Acórdãos do S.T.J. de 6-11-2003, processo 03P3370, e de 2-7-2008, processo 07P3861.
[10] Vide, entre muitos outros, os acórdãos do S.T.J. de 11-1-2006, processo 3461/05, de 30-11-2006, processo 3675/06, e de 5-9-2007, processo 06P4798.