Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1526/09.6TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRAZO
APRESENTAÇÃO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 18º, NºS 1 E 2; 20º, Nº1, AL. B); E 238º DO CIRE
Sumário: I – O incumprimento do dever de apresentação à insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência não retira ao devedor legitimidade para se apresentar em data posterior, não sendo de caducidade aquele prazo.
II – Por maioria de razão, o devedor pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que incorra em situação de insolvência, sobre quem não recai aquele dever de apresentação, mantém legitimidade para requerer a declaração da sua insolvência a todo o tempo, sem sujeição a qualquer prazo.

III – A apresentação à insolvência configura-se, pois, não propriamente como um direito cujo não exercício em determinado prazo – nomeadamente no de 60 dias previsto no nº 1 do artº 18º ou no de seis meses previsto na al d) do nº 1 do artº 238º, ambos do CIRE – determine a sua caducidade, mas antes, para todos os possíveis sujeitos passivos da declaração de insolvência (artº 2º do CIRE), com excepção das pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um dever, cujo não cumprimento atempado acarreta sanções e, para os devedores pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um ónus cuja inobservância no prazo previsto no artº 238º, nº 1, al. d), do CIRE, reunidos os demais requisitos ali exigidos, importa a perda do eventual benefício da exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

        A... , solteira, residente na ...., requereu, em 16/03/2009, a declaração da sua insolvência, alegando factualidade que, a seu ver, demonstra encontrar-se impossibilitada de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, integrando a previsão da al. b) do nº 1 do artº 20º do CIRE.[1]

         Em 01/04/2009, foi proferido o despacho de fls. 53 a 57 indeferindo liminarmente o pedido de declaração de insolvência “por manifesta improcedência, atenta a decorrência da caducidade do direito da requerente”.

         Inconformada, a requerente interpôs recurso, logo apresentando a sua alegação que encerrou com as conclusões seguintes:

(……………………………………………………………………)

         Não foi apresentada resposta.

         O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.

         Nada obstando ao conhecimento do seu objecto (artºs 17º do CIRE e 234º-A, nº 2 do Cód. Proc. Civil), cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se a faculdade de apresentação à insolvência, nomeadamente por parte de pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência, está sujeita a qualquer prazo de caducidade.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Os factos e incidências processuais relevantes para o conhecimento do recurso são os que resultam do antecedente relatório e ainda os seguintes:

         a) Na petição inicial em que pediu a declaração da sua insolvência a requerente A... alegou, em síntese, que:

         1- Teve no passado problemas de saúde que a levaram a entrar de licença sem vencimento durante dois anos e, dada a falta da remuneração mensal, a recorrer a diversas instituições financeiras obtendo crédito fácil e rápido, mas com elevadas taxas de juro;

2- Para colmatar os incumprimentos verificados socorreu-se de outros créditos, caindo numa espiral de contratação de créditos e perdendo o controlo da sua situação financeira;

3- Por esse motivo, presentemente não está a conseguir cumprir atempadamente as obrigações assumidas junto dos seus credores, devendo ao Banco B... a quantia de € 15.014,72, à C.... a quantia de € 21.248,27, à D... a quantia de € 30.183,19 e a outras diversas entidades, por uso de cartão de crédito, a quantia de € 17.534,64;

4- As suas dívidas aos credores referidos e a outros, perfazem, na totalidade, a quantia de € 109.980,63.

5- Exerce a profissão de professora do 1º Ciclo, por conta do Ministério da Educação, sendo de apenas € 1.370,17 o seu rendimento líquido mensal;

6- Encontrando-se a leccionar em Évora de Alcobaça, tem arrendado um imóvel, onde habita durante a semana e pelo qual paga a renda mensal de € 250,00.

b) No despacho sob recurso escreveu-se, além do mais:

“No caso em apreço, é a própria requerente que vem informar o Tribunal que ficou 2 anos em casa de licença sem vencimento (sem concretizar em que altura precisa ocorreu) e que iniciou o recurso ao crédito ao consumo, com juros elevados que deixou de conseguir pagar atempadamente, sem precisar quando é que isso ocorreu.

No entanto, decorre dos autos que a ora devedora está ciente da sua situação financeira há pelo menos mais de seis meses.

Nos termos do diploma legal em análise, o devedor tem um período de tempo para instaurar a Acção de Apresentação à Insolvência – 60 dias.

Da leitura da documentação junta aos autos verifica-se que a requerente tem cartões de crédito suspensos pelo menos desde Dezembro de 2008 – E... e F.... , tendo deixado de pagar com regularidade mensal desde pelo menos o Verão de 2008.

Ora, salvo o devido respeito, o período de tempo legalmente estabelecido para que o devedor se apresente à insolvência está há muito esgotado, atenta a data em que os presentes autos foram instaurados – 16/03/2009.

(…)

Face a todo o exposto supra e nos legais termos, apenas os credores da ora requerente poderão, querendo, requerer a sua insolvência e não já a própria, por ter sido excedido o prazo legal em que o poderia ter feito.

III- Decisão

Nestes termos e de harmonia com as disposições legais citadas e ainda do que dispõe a a) do nº 1 do art. 27º do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de caducidade do direito da requerente”.


***

         2.2. De direito

         O art. 18º do CIRE estipula:

         1. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la.

         2. Exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.

         3. (…).

         Deduz-se da disposição legal transcrita que qualquer devedor enquadrável no artº 2º do CIRE tem legitimidade para requerer a declaração da sua insolvência, tendo também, com excepção do devedor pessoa singular não titular de empresa na data em que incorra na situação de insolvência, o dever de fazê-lo no prazo de 60 dias a contar do conhecimento da situação de insolvência.

         O incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência dentro do prazo fixado na lei não exonera o devedor e, consequentemente, não lhe retira legitimidade para instaurar a pertinente acção, continuando a poder fazê-lo até que a acção seja instaurada pelos credores ou por outros legitimados[2].

         Simplesmente, se o prazo estiver ultrapassado à data da apresentação, não pode deixar de considerar-se incumprido o dever e de se sujeitar o incumpridor às correspondentes consequências[3] e [4].

         Por maioria de razão, o devedor sobre quem não recai a obrigação de apresentação – pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que incorra em situação de insolvência – mantém legitimidade a todo o tempo para, verificando-se os respectivos pressupostos, instaurar a acção judicial adequada. O limite é, como para o devedor com obrigação de apresentação, a instauração da acção por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor ou pelo Ministério Público.

         Este entendimento é inculcado pelo artº 238º, nº 1, al. d) do CIRE, segundo o qual o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se o devedor não obrigado a apresentar-se à insolvência se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

         Com efeito, da norma legal referida decorre implicitamente que o devedor não obrigado a apresentar-se à insolvência tem legitimidade para fazê-lo a todo o tempo – com o limite já acima assinalado – apenas sucedendo que, apresentando-se para além dos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, perde o direito à exoneração do passivo restante.

         A apresentação à insolvência configura-se, pois, não propriamente como um direito cujo não exercício em determinado prazo – nomeadamente, no de 60 dias previsto no nº 1 do artº 18º ou no de seis meses previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º, ambos do CIRE – determine a sua caducidade[5], mas antes, para todos os possíveis sujeitos passivos da declaração de insolvência (artº 2º do CIRE), com excepção das pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um dever, cujo não cumprimento atempado acarreta sanções e, para os devedores pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um ónus cuja inobservância no prazo previsto no artº 238º, nº 1, al. d) do CIRE, reunidos os demais requisitos ali exigidos, importa a perda do eventual benefício da exoneração do passivo restante.

        

         Aplicando os princípios acabados de delinear ao caso concreto que nos ocupa, constata-se que nada nos autos sugere que a requerente A... seja ou tenha sido titular de empresa, razão pela qual sobre ela não impendia o dever de apresentação à insolvência em qualquer prazo.

         Por isso, independentemente da data em que tenha incorrido em situação de insolvência, mantinha, em 16/03/2009, quando instaurou a presente acção, legitimidade para usar da faculdade de apresentação, a qual não foi, nem podia ser, objecto de caducidade.

         A eventual não apresentação no prazo previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE apenas poderá relevar, verificados os demais requisitos exigidos por aquela disposição legal, para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

         Logram êxito, pois, as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à procedência da apelação e à revogação da decisão recorrida.

         Cumprindo o estipulado no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

         I – O incumprimento do dever de apresentação à insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência não retira ao devedor legitimidade para se apresentar em data posterior, não sendo de caducidade aquele prazo.

         II – Por maioria de razão, o devedor pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que incorra em situação de insolvência, sobre quem não recai aquele dever de apresentação, mantém legitimidade para requerer a declaração da sua insolvência a todo o tempo, sem sujeição a qualquer prazo.

         III – A apresentação à insolvência configura-se, pois, não propriamente como um direito cujo não exercício em determinado prazo – nomeadamente, no de 60 dias previsto no nº 1 do artº 18º ou no de seis meses previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º, ambos do CIRE – determine a sua caducidade, mas antes, para todos os possíveis sujeitos passivos da declaração de insolvência (artº 2º do CIRE), com excepção das pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um dever, cujo não cumprimento atempado acarreta sanções e, para os devedores pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um ónus cuja inobservância no prazo previsto no artº 238º, nº 1, al. d) do CIRE, reunidos os demais requisitos ali exigidos, importa a perda do eventual benefício da exoneração do passivo restante.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, em revogar a decisão sob recurso.

         Sem custas [artºs 2º, nº 1, al. g) do CCJ e 4º, nº 1, al. a) do DL nº 303/2007, de 24/08).


[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03, alterado pelos Decretos-Lei nºs 200/2004, de 18/08 e 282/2007, de 07/08.
[2] Cfr. artºs 8º, nºs 2 e 4 e 20º, nº 1 do CIRE.
[3] Como sejam, por exemplo, a sujeição à presunção de culpa grave para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, com as consequentes sanções [artºs 186º, nº 3, al. a) e 189º, nº 2 do CIRE] e as consequências de carácter criminal contempladas nos artigos 227º a 229º do Cód. Penal – cfr. Acórdão da Rel. Guimarães de 07/06/2006, citado pela recorrente na sua alegação e Ac. STJ de 14/11/2006 (Proc. 06A3271, relatado pelo Cons. Borges Soeiro), in www.dgsi.pt.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, vol. I, 2005, pág. 123.
[5] Neste sentido, cfr. os Acórdãos do STJ de 14/11/2006 e da Relação de Guimarães de 07/06/2006, já referidos em anterior nota de rodapé.