Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2616/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA NA PRODUÇÃO DO ACIDENTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À VIDA
Data do Acordão: 12/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 496º,Nº 2 DO CC
Sumário: I - É de atribuir 40% da responsabilidade na produção do acidente ao condutor que circulando a mais de 50 km/hora(superior à permitida), desatento, já que podendo ver a vítima a pelo menos 22 metros, não buzinou, nem reduziu a velocidade, atropela um menor de 9 anos, que circulando de bicicleta por um caminho de terra batida não parou ao entrar na estrada por onde circulava o condutor.

II - É adequada a indemnização de 50.000 € de um menor de 9 anos que vivia com os pais e seus irmãs, unidos por fortes laços de afecto entre si, constituindo uma família harmoniosa, unida e feliz .

III- O valor alcançado pela Resolução do Conselho de Ministros de 4-3-00 sobre o acidente de Entre Os Rios que fixou a indemnização de 10.000.000$00 (49.879,79) é um marco importante que surge à luz da evolução dos valores indemnizatórios tratando-se de um valor abstracto e geral e como tal, terá de ser temperado , de acordo com os coeficientes específicos que referenciamos, tendo sempre como pano de fundo uma actualização progressiva e permanente que ultrapasse os índices de inflação de acordo com a necessária aproximação à Europa.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal desta Relação:


O Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido
A..., imputando-lhe a prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º nº 1 do Código Penal e de uma contra-ordenação, p. e p. pelos arts. 25º nº 1 al. a) e nº 2; 139º nºs 1 e 2 e 146º al. d), todos do Código da Estrada.

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O arguido apresentou contestação escrita, oferecendo o merecimento dos autos.

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B... e mulher, C..., por si e na qualidade de legais representantes de suas filhas menores, D... e E... formularam pedido de indemnização cível contra Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, S.A., pedindo a condenação da responsável civil a pagar-lhes a importância de 250.000 euros, sendo 100.000 euros, pela perda do direito à vida; 50.000 para cada um dos progenitores e 25.000, para cada uma das irmãs, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação para contestar o pedido cível, até integral pagamento.
Para o efeito, alegaram, em síntese, que, na sequência da morte do seu filho e irmão, F..., em resultado do acidente de viação em que foi interveniente, tal como o arguido, sentiram um profundo desgosto, desespero e angústia, uma vez que eram muito fortes os laços de afecto que uniam o F... a seus pais e irmãs e estes ao F..., constituindo todos uma família unida e feliz; o F... deixou como únicos herdeiros seus pais e irmãs; o arguido é Presidente da G... que era a locatária, à data do acidente, do veículo por ele conduzido, de matrícula 13-56-NC, o que fazia, por conta e no interesse da autarquia, estando-lhe tal viatura atribuída para o exercício das suas funções, como Presidente da Câmara.

A responsável civil Fidelidade - Mundial, S.A. apresentou contestação ao pedido cível, alegando em síntese, que o acidente objecto deste processo ficou a dever-se a culpa exclusiva da própria vítima que, provindo de um caminho de terra batida, tripulando um velocípede, resolveu entrar na E.M. nº 533.1 sem previamente tomar quaisquer precauções, nomeadamente, não parou à saída desse caminho e entrou inopinadamente, na estrada, por onde, então, circulava, o arguido que, dada a forma súbita e imprevista, como o velocípede surgiu, não teve hipótese de travar e evitar a colisão; acresce que, ao contrário do que pretendem os lesados, as irmãs do F... não têm direito a qualquer compensação, atento o disposto no nº 2 do art. 498º do CC em todo o caso, são manifestamente exageradas as quantias peticionadas.
Conclui pela sua absolvição do pedido.

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Efectuado o julgamento, foi proferida a sentença de fls. na qual

- se julgou a acusação provada e procedente e, em consequência, foi condenado o arguido A... como autor material de

* um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º nº 1 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 20 euros, o que perfaz um total de 4000 euros.

* uma contra-ordenação p. e p. pelos 25º nº 1 al. a) e nº 2; 139º nºs 1 e 2 e 146º al. d), todos do Código da Estrada, na coima de 150 euros e na inibição de conduzir pelo período de três meses.

- se julgou o pedido cível parcialmente provado e procedente e, em consequência, foi condenada a responsável civil, Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, S.A. a pagar aos lesados B... e C... a compensação pela morte do F..., no montante de 45.000 euros e a cada um dos mesmos lesados, a titulo de compensação por danos não patrimoniais a importância de 27.000 euros, num total de 99.000 euros, todas estas quantias acrescidas de juros de mora, à taxa de 7%, desde a data da notificação para contestar o pedido cível, até 30 de Abril de 2003 e, a partir de 1 de Maio de 2003, à taxa de 4%, até integral pagamento ( Portarias 263/99 de 12.4 e 291/03 de 8.4 ), absolvendo a responsável civil do remanescente do pedido.

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Inconformada, recorreu a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial,SA, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
1. A convicção da Mª Juiz a quo de que o arguido conduzia a uma velocidade superior a 50 km /h, resultou, por um lado , dos depoimentos das testemunhas que referiram ao barulho do embate aludindo ás palavras “estrondo”, estrondo enorme” “ parecida um bidon a rebolar pelo chão” e “trunga”, e por outro lado, das distâncias do local de embate ao local onde ficou o corpo do F... e onde se imobilizou o veículo.
2. Não pode a Mª Juiz a quo tomar como indício sério e alicerçado aquelas expressões para concluir que o arguido conduzia a velocidade superior a 50 km/h.
3. O arguido não accionou os travões do veículo , não tendo deixado marcado, no pavimento, qualquer rasto de travagem que permitisse aferir a sua velocidade com o recurso ao quadro de distancias de travagem que consta da anotação ao artº 24º do CE de Júlio serra.
4. Não se pode concluir pela velocidade superior a 50 k/h com o recurso ás medições efectuadas , tendo por base o local provável de embate, local onde ficou o corpo e local onde se imobilizou o veículo.
5. O F... embateu, primeiro, no pára-brisas , que partiu.
6. Não sendo verosímil que, após tivesse sido projectado pelo ar.
7. Após o embate, tendo o veículo prosseguido a sua marcha, a tendência seria que o corpo, antes de ser projectado, percorresse alguns metros em cima do capot.
8. Não se mostraram factos instrumentais de onde se retire que a velocidade imprimida ao veiculo era superior a 50 KM/h.
9. O arguido circulava numa estrada com prioridade;
10. O F... sabia que tinha de parar abres de entrar na EM, pois sabia quais as regras de prioridade.
11. Fosse qual fosse a velocidade a que seguisse , o arguido não contribuiu causalmente para a ocorrência do embate, que se teria dado de qualquer forma.
12. O embate ficou a dever-se exclusivamente à conduta do F....
13. O arguido não violou, nem omitiu qualquer dever objectivo de cuidado ,e, nem sequer a sua conduta é passível de qualquer censura.
14. Ainda que se consagre a tese da repartição de culpas, uma percentagem superior pela responsabilidade da verificação do evento.
15. A quantia de 75.000 € arbitrada aos demandantes, relativamente ao dano morte, é exagerada.
16. Tal dano é quantificado pela jurisprudência em quantia muito inferior à que foi arbitrada.
17. A Mª Juiz a quo para justificar o valor de 75.000€ socorreu-se das indemnizações fixadas pela resolução do Conselho de Ministros de 4 de Março de 2001, sobre o acidente de Entre-Os –Rios que fixou a indemnização de 10.000.000$00, considerando que, tendo aquele acidente ocorrido há já alguns anos aquela valor já perdeu actualidade.
18. O período de tempo decorrido, do acidente de Entre –Os Rios, não justifica a actualização efectuada de 50%.
19. Os 75.000 € arbitrados, pelo direito à vida, não estão de acordo com os mais recentes critérios jurisprudenciais.
20. A quantia arbitrada por danos morais, de 45.000 € para cada um dos demandantes, é manifestamente superior à que tem vindo a ser quantificada pela jurisprudência.
21. Não foram respeitados os critérios de equidade que devem presidir à fixação da indemnização a título de danos morais.
22. A douta sentença violou o disposto nos artºs 31º, nº 1 a) do CE, 128º e 496º, nº 3 do CC.

Os assistentes B... e Mulher interpuseram recurso subordinado pugnando pela alteração do decidido para tal concluindo:
1. Nenhuma das testemunhas viu o F... entrar na estrada.
2. Pelo que não se poderia ter dado como provado que este não parou ao sair da estrada de terra batida, e antes de entrar na estrada.
3. Ao contrário, deveria ter-se considerado como único culpado o arguido.
4. E, em consequência, condenar-se a R. a pagar a totalidade das quantias indemnizatórias.
5. Mas mesmo que se considerasse como se considerou na douta sentença, que o F... não havia parado.
6. Tal facto apenas impunha, pelo circunstancialismo dos factos provados, que a graduação da culpa se fixasse em 90% para o arguido e 10% para a infeliz criança.
7. Ao não proceder desta forma violou a sentença o disposto no artº 570º, nº 1 do C. Civil

Respondendo os assistentes pugnam pelo não provimento do recurso da seguradora.

Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto apôs o seu visto.

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Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência há que decidir :

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As questões a resolver são as seguintes:
A. Possibilidade de apreciação da matéria de facto. Ónus imposto pelos nºs 3 e 4 do CPP.
B. Culpa na produção do acidente. Nexo de causalidade.
C. Quantum Indemnizatório

Factos dados como provados:
1. No dia 24 de Junho de 2002, pelas 17h20m, na Estrada Municipal nº 533.1, na localidade de Marianaia, em Tomar, verificou-se um embate;
2. No qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 13-56-NC e o velocípede simples de matrícula 1-TMR-45-25;
3. O veículo ligeiro de matrícula 13-56-NC era, então, conduzido pelo arguido A...;
4. No sentido Sul - Norte;
5. E pela hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento o mesmo sentido;
6. A uma velocidade superior a 50 km/hora;
7. O velocípede simples de matrícula 1-TMR-45-25 era conduzido por F...;
8. Que circulava, momentos antes do embate com o 13-56-NC, por um caminho de terra batida;
9. O qual serve de acesso a um estabelecimento de café designado « Café Marianaia » e a outras edificações vizinhas;
10. Esse caminho entronca com a valeta que ladeia a Estrada Municipal nº 533.1 do lado direito, atento o sentido Sul - Norte;
11. O F... pretendia virar à sua esquerda, para se dirigir a sua casa;
12. Para o que tinha de atravessar a hemi-faixa de rodagem do lado direito da Estrada Municipal nº 533.1, considerando o sentido Sul-Norte;
13. O F... não parou à saída do caminho de terra batida, no ponto em que este entronca com a valeta da estrada municipal nº 533.1, antes de entrar para esta estrada;
14. Nesse ponto, a valeta encontra-se coberta com uma meia manilha revestida com cimento;
15. Sendo a largura da entrada do caminho de 4,33 metros;
16. Quando o F... estava a entrar, para a estrada municipal nº 533.1, chegou, ao mesmo local, o veículo ligeiro 13-56-NC;
17. Tendo-se dado o embate, entre a roda da frente do velocípede simples e a parte da frente e o lado direito, junto ao guarda lamas da roda da frente do 13-56-NC;
18. Embate este que se verificou, na hemi-faixa de rodagem do lado direito da E.M. nº 533.1;
19. Paralelamente à meia manilha que cobre a valeta e confina com a entrada do caminho, descrito em 8. a 10. e 14. e 15., no ponto em que se situa, aproximadamente, a metade da extensão de 4,33 metros da largura do mesmo caminho;
20. Na sequência do embate referido em 17., o F...é embateu, primeiro, no pára-brisas do lado direito do veículo ligeiro 13-56-NC;
21. Após o que foi projectado pelo ar;
22. Vindo a cair, na hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo da E.M. nº 533.1., atento o sentido Sul-Norte;
23. Junto à respectiva berma;
24. A uma distância do local do embate de cerca de 17 metros;
25. Tendo o velocípede simples que conduzia ficado tombado no chão, na hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido Sul - Norte, a distância do local do embate não apurada;
26. O veículo NC parou, na sequência deste embate, a cerca de 22 metros do local em que o mesmo se verificou;
27. O F... ficou prostrado no solo;
28. O arguido não viu o F...;
29. Só se apercebeu de um «vulto» a embater contra o pára-brisas do lado direito do veículo 13-56-NC;
30. Após ter imobilizado este veículo, sem que até esse momento, tenha accionado os travões do NC, saiu da viatura;
31. E caminhou até ao local, onde se encontrava o F... caído;
32. Foi, então, que deu conta de que o «vulto», era uma criança;
33. De imediato, dirigiu-se a Tomar, em busca de auxílio, tendo-se dirigido, primeiro aos Bombeiros e, de seguida, ao Hospital Distrital de Tomar;
34. No local do acidente, a Estrada Municipal nº 533.1. configura-se em linha recta;
35. Com a largura de 5,40 metros;
36. A qual é antecedida de uma curva à direita, atento o sentido Sul - Norte;
37. Curva esta, com uma distância de cerca de 20 metros;
38. Após a qual, até ao caminho a que aludem os pontos 8. a 10. e 14. e 15., existe uma recta com cerca de 58,90 metros de extensão;
39. Continuando, em linha recta, após o caminho de terra batida descrito em 8. a 10.;
40. Antes da curva, mencionada em 36. e 37., para quem circule no sentido Sul - Norte, existe, a uma distância de 100 metros da mesma curva, um viaduto, por onde passa a IC 3;
41. Após o mesmo viaduto, sempre considerando o sentido Sul - Norte, a uma distância de cerca de 50 metros antes da curva à direita que antecede a recta onde se deu o embate, na berma do lado direito, existem dois sinais de trânsito, um de perigo travessia de peões, por baixo do qual se encontra outro de proibição de ultrapassagem;
42. Após a mesma curva à direita, a uma distância dela de cerca de 36,30 metros existe outro sinal de trânsito, assinalando o fim de proibição de ultrapassagem, colocado na berma do lado direito, atento o sentido Sul-Norte;
43. Do lado contrário da via, na berma do lado esquerdo, e paralelamente ao sinal de fim de proibição de ultrapassagem referido no ponto anterior, existem outros dois sinais, um de perigo travessia de peões, colocado por cima de outro que indica a proibição de ultrapassagem para os condutores que circulem, no sentido Norte - Sul;
44. Na mesma Estrada Municipal nº 533.1., antes e depois do local do embate, existem sinais de trânsito, indicando o limite máximo de velocidade a 50 Km/hora;
45. Do lado direito da via, considerando o sentido Sul - Norte, sensivelmente a meio da curva para o lado direito que antecede a recta onde se verificou o embate, existem muros de delimitação de terrenos particulares, numa extensão de cerca de 38,65 metros.
46. De ambos os lados, a estrada municipal nº 533.1.
tem valetas, com cerca de 26 cms de profundidade, revestidas a cimento;
47. Logo que acabam os muros referidos em 45., existe um ribanceiro;
48. O qual, desde o remate de cimento da valeta, onde começa a terra, tem a altura de cerca de um metro;
49. Isto numa extensão de cerca de 12,60 metros;
50. Após o que, tal ribanceiro, até ao limite Sul da entrada do caminho de terra batida de onde provinha o F..., passa a ter uma altura média de cerca de 60 cms;
51. Aquando do acidente, existia feno, por cima do ribanceiro mencionado em 47. a 50.;
52. Com o aspecto que se vê nas fotografias juntas aos autos, a fls. 198 a 204;
53. Considerando o sentido Sul - Norte, a entrada do caminho descrito em 8. a 10. e o interior do mesmo, numa extensão de alguns metros, em direcção ao Café Mariana, era avistável para quem circulasse, de veículo automóvel, pela hemi-faixa da direita;
54. A uma distância de, pelo menos, 22 metros antes de se atingir o ponto em que tal caminho entronca com a valeta que ladeia a Estrada Municipal nº 533.1., atento o mesmo sentido Sul - Norte;
55. O Café Marianaia está situado numa edificação, implantada no terreno, onde existe o caminho descrito em 8. a 10.;
56. A mais de 33 metros de distância do ponto em que este caminho entronca com a valeta que ladeia a Estrada Municipal nº 533.1.;
57. No terreno situado nas imediações deste café, entre o alçado posterior do edifício do café e o ribanceiro que confina com a Estrada Municipal nº 533.1. do lado direito desta estrada, considerando o sentido Sul-Norte, para além do caminho e do lado esquerdo deste, para quem esteja de costas para a entrada do café e de frente para a referida estrada, existe uma espécie de terreiro, por baixo de uns salgueiros;
58. Nesse espaço, estão colocadas ao alto, umas tábuas de madeira destinadas a um jogo denominado «chinquilho»;
59. Esse espaço é delimitado por bancos corridos de barrotes e tábuas de madeira;
60. A que se segue uma outra faixa de terreno, até ao ribanceiro que confina com a Estrada Municipal nº 533.1.;
61. Que é utilizada pelos clientes do café para estacionarem os seus veículos automóveis;
62. E pelos donos do terreno para estacionarem tractores e alfaias agrícolas;
63. Em resultado do embate, com o seu corpo, no pára-brisas do lado direito do 13-56-NC, posterior projecção pelo ar e queda no solo, referidos em 20. a 23., o F... sofreu, entre outras lesões:
- na cabeça, infiltrado hemático da calote, com fracturas multidireccionais da porção fronto-temporo-parietal esquerda com solução de continuidade da calote e meninges subjacente, com ruptura e extravaso do encéfalo;
- na caixa craneana, hematoma epi e subdural, com rupturas múltiplas da meninge da calote;
- no encéfalo, infiltrado hemorrágicos extensos, interessando os dois hemisférios encefálicos;
- nas meninges da base, traços de fracturas múltiplos, interessando a abóbada da órbita esquerda e a lâmina crivosa esquerda do etmóide;
64. Em resultado das quais, lhe sobreveio a morte;
65. Tendo dado entrada no Hospital Distrital de Tomar, no mesmo dia 24 de Junho de 2002, pelas 17h31m, já cadáver;
66. Ao circular pela Estrada Municipal nº 533.1., a uma velocidade superior a 50 km/hora, que sabia ser superior ao limite legalmente permitido, naquele local, o arguido actuou sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz;
67. Do mesmo modo, ao circular naquela estrada sem ter visto o F..., nem a entrada e o interior do caminho do qual este provinha, com antecedência, como podia e devia, agiu com desatenção;
68. Não tendo previsto, como podia e devia, que com a sua conduta punha em risco os restantes utentes da via;
69. O arguido não tem antecedentes criminais, nem contra-ordenacionais;
70. Actualmente, ocupa o cargo de Presidente da G...;
71. No exercício do qual aufere uma retribuição de 2500 euros mensais;
72. Vive com a sua esposa e dois filhos de ambos, com 17 e 12 anos de idade, que são estudantes;
73. A sua esposa aufere um vencimento de cerca de 1500 euros, por mês;
74. Vive em casa própria;
75. Paga uma prestação mensal, para amortização de crédito à habitação da casa onde reside, de cerca de 250 euros;
76. Paga uma outra prestação mensal, para amortização de crédito bancário relativo a uma outra casa que tem, de cerca de 690 euros;
77. É licenciado em engenharia civil;
78. E tem o mestrado em Administração Pública;
79. Tem carta de condução, desde os 18 anos de idade;
80. O arguido é considerado condutor prudente e cumpridor dos deveres estradais;
81. Pessoa que se dedica com grande empenho às suas funções;
82. Com especial sensibilidade e preocupação para com os mais carecidos de assistência a todos os níveis;
83. Com bom relacionamento com as pessoas, em geral;
84. E com os membros do seu núcleo familiar;
85. O arguido sofreu abalo psicológico e desgosto com o acidente de viação em que foi interveniente, no dia 24 de Junho de 2002, especialmente, com a morte do F...;
86. Naquele dia 24 de Junho de 2002, o arguido vinha de uma reunião da Associação de Municípios, da qual também é presidente;
87. A qual havia tido lugar na vila de Constância;
88. Dirigia-se para Tomar;
89. O que fez, tomando a direcção da localidade da Quinta do Falcão, nesta comarca de Tomar, após contornar a Rotunda da IC 3;
90. Virou à sua esquerda;
91. Em direcção à localidade de Marianaia;
92. Passando, então, a transitar pela Estrada Municipal nº 533.1.;
93. Porque queria certificar-se do estado em que aquela estrada se encontrava;
94. Uma vez que a mesma estava a ser objecto de obras de alargamento, repavimentação e melhoramento;
95. Por iniciativa da G...;
96. À data dos factos, aquela estrada já tinha sido repavimentada;
97. E já estava em funcionamento e em fase de conclusão das respectivas obras;
98. Faltando ultimar pequenas obras de melhoramento;
99. Não tendo ainda sido recebida pela Câmara Municipal;
100. Antes do dia 24 de Junho de 2002, o arguido, enquanto as obras estavam em curso, por algumas vezes, passou pela E.M. nº 533.1., para ver o andamento e evolução das obras;
101. As valetas existentes do lado esquerdo e do lado direito da E.M. nº 533.1., a que se refere o ponto 46., foram revestidas a cimento, como ali se refere, aquando da execução das obras descritas em 94. e 95.;
102. O próprio caderno de encargos da obra relativa, entre outras estradas, à E.M. nº 533.1. já contemplava a possibilidade de, nos locais de entrada e saída de terrenos pertencentes a particulares e confinantes com esta estrada, serem colocadas meias manilhas cobertas com uma camada de cimento, por cima das valetas;
103. Na extensão dessas valetas que fosse necessária à circulação de pessoas e veículos motorizados de e para a E.M. nº 533.1 e de e para esses prédios confinantes;
104. E a fim de, ao mesmo tempo, possibilitar que as valetas, mantivessem, nesses locais, a sua capacidade normal de escoamento das águas pluviais;
105. O veículo automóvel de matrícula 13-56-NC é da marca BMW, modelo DM11 5201.;
106. O qual se encontrava e encontra ao serviço da G...;
107. E para utilização pelo respectivo Presidente, no exercício das suas funções;
108. De acordo com um contrato de locação financeira, celebrado, em 5 de Abril de 1999, entre a Locapor - Companhia Portuguesa de Locação Financeira Mobiliária, S.A. e a G..., à data, já representada pelo arguido;
109. A responsabilidade emergente dos estragos causados com a circulação do veículo 13-56-NC, em 24 de Junho de 2002, encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., actualmente, Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, S.A., através da apólice nº 60/6.541.680;
110. O F... nasceu, no dia 13 de Setembro de 1992, na freguesia de S. Pedro de Tomar, em Tomar;
111. Foi registado, na Conservatória do Registo Civil de Tomar, como filho de B... e de C...;
112. No dia 14 de Outubro de 1989, na freguesia de S. Pedro de Tomar, nasceu D...;
113. No dia 30 de Dezembro de 2000, na freguesia de S. Pedro de Tomar, nasceu E...;
114. D... e E... foram registadas, na Conservatória do Registo Civil de Tomar, como filhas de B... e de C...;
115. O F... vivia com seus pais e suas irmãs;
116. Unidos por fortes laços de afecto, entre si;
117. Constituindo uma família harmoniosa, unida e feliz;
118. No dia 24 de Junho de 2002, pouco antes do acidente, o F... tinha pedido autorização à mãe para ir a casa de um colega de escola;
119. Ao que a mãe acedeu;
120. Desconhecendo que o F... se deslocou de bicicleta a casa do seu colega;
121. Casa esta situada no terreno onde também se encontra o «Café Marianaia»;
122. O F... só tinha autorização dos pais para andar de bicicleta, no interior do terreno contíguo à casa de habitação onde vivia;
123. Quando o embate entre o velocípede simples conduzido pelo F... e o veículo 13-56-NC conduzido pelo arguido se verificou, os assistentes B... e C... encontravam-se na sua residência;
124. Estando o assistente Agostinho de Oliveira Nunes Ferreira a dormir;
125. C... recebeu a notícia do acidente através da testemunha Maria da Conceição de Jesus Ferreira;
126. Na sequência do que acordou o assistente Agostinho de Oliveira Nunes Ferreira, com essa notícia;
127. Tendo-se ambos deslocado para o local do acidente, de imediato;
128. Quando ali chegaram e viram o F... caído no solo, ficaram desesperados e em choque;
129. Não acreditando que o F... estivesse morto;
130. O F... era um menino alegre;
131. E comunicativo;
132. Cheio de vontade de viver;
133. Com a sua morte, os assistentes B... e C...
sentiram e sentem um profundo desgosto;
134. Sentindo-se inconformados e inconsoláveis com tal facto;
135. Bem como com saudades do F...;
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2.2. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados, teve por base os seguintes fundamentos:
- quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que se verificou o embate entre o velocípede simples e o veículo 13-56-NC mencionados na acusação, a que aludem os pontos 1. a 5.; 7.; 8.; 9.; 10.; 18.; 39. e 55., a análise crítica e conjugada das declarações do arguido, com a participação e «croquis» de fls. 5 e 6, e os depoimentos das testemunhas Maria da Conceição de Jesus Ferreira, Faustino Rosa Lourenço e Fernando Jorge Rosa de Freitas e, ainda, Mário António Sousa da Silva Godinho.
Maria da Conceição de Jesus Ferreira, aquando dos factos, estava no interior da sua propriedade, junto a um muro que se situa do lado esquerdo da estrada municipal nº 533.1., com atenção à estrada, concretamente, para o lado do qual provinha o arguido, porque estava à espera da sua mãe.
Essa sua propriedade fica situada, sensivelmente, em frente da propriedade onde estão situados o caminho de terra batida por onde circulava o F... e o café Marianaia. Reside nesta localidade há muitos anos e conhece bem o local onde se deu o embate.
Ouviu o barulho desse embate, viu o F... ser projectado pelo ar, bem como os locais onde o F... ficou caído, na estrada e onde o veículo NC parou, depois do acidente.
Faustino Rosa Lourenço, tinha, momentos antes do acidente, atravessado a estrada municipal nº 533.1., da esquerda para a direita, atento o sentido Sul-Norte, tendo, como ele próprio referiu, olhado primeiro para a sua direita, depois, para a sua esquerda, a seguir, novamente, para sua direita e, por não ter visto qualquer veículo a aproximar-se, nem num sentido, nem noutro, iniciou a travessia, para se dirigir ao café Marianaia; cruzou-se com o F..., já dentro do caminho de terra batida, a cerca de 8,70 metros do ponto em que esse caminho entronca com a meia manilha que cobre a valeta que ladeia a E.M. nº 533.1. pela direita, atento o sentido Sul - Norte; deu dois a três passos e ouviu um estrondo, tendo-se virado de frente para a estrada, de imediato e visto o F... a «ir pelo ar», na sequência do que foi a correr para o local onde aquele menino ficou caído, tendo visto o ponto da estrada em que tal sucedeu, bem como o local em que o NC parou, após o embate.
Fernando Jorge Rosa de Freitas, estava junto ao edifício do café Marianaia, momentos antes do acidente. O F... passou por ele de bicicleta e, estando esta testemunha de costas para a estrada, logo que ouviu o estrondo, virou-se de frente para a via, tendo também visto o F... ser projectado pelo ar, pelo que foi logo a correr para o local, tendo visto o ponto em que o F... ficou caído, bem como aquele em que o NC se imobilizou.
Esta testemunha é, ainda, um dos comproprietários do terreno onde se situam os referidos café Marianaia e o caminho de terra batida.
Mário António Sousa da Silva Godinho é o agente da PSP que, foi chamado ao local do acidente, logo que dele houve notícia, onde se dirigiu e fez a participação e o «croquis» de fls. 5 e 6. Mais tarde, voltou ao local do acidente para verificar da existência de sinais de trânsito.
- em relação ao facto descrito em 6., por presunção judicial resultante, por um lado, dos depoimentos das testemunhas Maria da Conceição de Jesus Ferreira; Faustino Rosa Lourenço e Fernando Jorge Rosa de Freitas, na parte dos seus depoimentos, em que, para se referirem ao barulho do embate, todos aludiram à palavra «estrondo», sendo que a testemunha Maria da Conceição de Jesus Fernandes Ferreira, acrescentou as expressões «estrondo enorme» e «parecia um bidon a rebolar pelo chão», a propósito do barulho do embate entre a bicicleta que o F... conduzia e o veículo 13-56-NC; por seu turno, a testemunha Faustino Rosa Lourenço, ainda acerca do barulho do embate, usou a onomatopeia «trunga», por outro lado, da conjugação, ponderação e análise crítica destes depoimentos, com a circunstância de o F... ter sido projectado pelo ar, na sequência do embate, a cerca de 17 metros de distância, o local em que o seu corpo ficou caído e o local em que o veículo 13-56-NC deteve a sua marcha, após o acidente e respectiva distância do local do embate, mais de 20 metros depois desse local;
- quanto aos descritos em 13. e 16., por presunção judicial resultante da análise crítica das declarações prestadas pelo arguido, acerca da forma como o embate se deu, conjugadas com o depoimento da testemunha Faustino Rosa Lourenço e com a medição efectuada no local, constante do auto de inspecção judicial ao local de fls. 243 a 249, medição esta feita, a partir da indicação pela mesma testemunha acerca do local exacto em que se cruzou, no interior do caminho, com o F... a circular na bicicleta e a parte do seu depoimento em que referiu que, depois de se ter cruzado com o menino, deu dois ou três passos e ouviu o tal «estrondo» do embate entre a bicicleta e o corpo de F... e o veículo 13-56-NC;
- em relação aos factos descritos em 14; 15; 34.; 36; 37; 38; 40; 41.; 42.; 43.; 45.; 46.; 47.; 48.; 49. e 50., as medições efectuadas no local do acidente e exaradas no auto de inspecção judicial ao mesmo local, constante de fls. 243 a 249;
- em relação ao facto a que alude o ponto 17., as declarações do arguido, conjugadas com as fotografias de fls. 10 a 13;
- em relação ao facto descrito em 19., por presunção judicial resultante das partes embatidas dos veículos, que revelam que, pelo menos, a parte da frente do BMW conduzido pelo arguido já estava depois do limite Sul da entrada do caminho de terra batida, quando o embate se deu, bem como da circunstância de o F... pretender virar para a sua esquerda, tendo, por isso, de atravessar e hemi-faixa de rodagem, por onde circulava o arguido e, ainda, com base no depoimento da testemunha Faustino Rosa Lourenço, na parte em que esclareceu que, momentos antes do acidente, atravessou a estrada municipal nº 533.1., estando, na meia manilha colocada por cima da valeta que está do lado esquerdo daquela estrada, atento o sentido Sul - Norte, mesmo em frente àquela com que entronca o caminho de que o F... provinha e, ainda, com o que consta do «croquis» de fls. 6;
- no que concerne ao facto descrito em 20., as declarações do arguido, conjugadas com as fotografias de fls. 10 e 11;
- relativamente aos factos descritos em 21.; 22.; 23. e 25., os depoimentos das testemunhas Maria da Conceição de Jesus Fernandes Ferreira; Faustino Rosa Lourenço e Fernando Jorge Rosa de Freitas;
- em relação aos factos enunciados em 24. e 26., os depoimentos das testemunhas Maria da Conceição de Jesus Fernandes Ferreira; Faustino Rosa Lourenço e Fernando Jorge Rosa de Freitas, na parte em que, no local do acidente, quando o Tribunal ali se deslocou, indicaram os locais em que, depois do embate, viram o corpo do menino caído e o veículo 13-56-NC imobilizado e, ainda, o depoimento da testemunha Mário António Sousa da Silva Godinho, na parte do seu depoimento em que, no mesmo local do acidente, assinalou o ponto da hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o sentido Sul-Norte, em que, quando se deslocou àquele local, no dia do acidente para elaborar a participação e «croquis» de fls. 5 e 6, viu uma mancha de sangue. Estes depoimentos foram conjugados com as medições que, com base nas referidas indicações destas testemunhas, foram tomadas e que se encontram consignadas no auto de inspecção judicial de fls. 243 a 249;
- no tocante ao descrito em 27., as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas Maria da Conceição de Jesus Fernandes Ferreira; Faustino Rosa Lourenço e Fernando Jorge Rosa de Freitas;
- no que concerne ao descrito em 35., a participação e «croquis» de fls. 5 e 6.;
- em relação ao descrito em 44., o depoimento da testemunha Mário António Sousa da Silva Godinho, agente da PSP que elaborou a participação e o «croquis» de fls. 5 e 6 e, que dias depois do acidente, voltou a deslocar-se ao local, para verificar se ali existia alguma sinalização de trânsito limitadora da velocidade;
- no que concerne aos factos descritos em 51. e 52., as fotografias de fls. 198 a 204 e os depoimentos das testemunhas Fernando Jorge Rosa de Freitas, Faustino Rosa Lourenço; Afonso Neves Augusto; Alfredo Amaro Ferreira Coelho e Carlos Manuel Azinheira Lopes, estes três últimos, respectivamente, chefe e agentes da PSP há vários anos em exercício de funções em Tomar, que se deslocaram ao local do acidente, no mesmo dia em que o acidente se verificou;
- quanto às circunstâncias mencionadas em 53. e 54., a observação directa levada a cabo por este Tribunal, quando se deslocou ao local da questão, no decurso da audiência de discussão e julgamento, conjugada com as fotografias de fls. 202 a 204 e com as declarações do assistente Agostinho de Oliveira Nunes Ferreira que tem carta de condução de veículos ligeiros e de veículos pesados há vários anos, reside em Marianaia há 14 ou 15 anos e todos os dias faz aquele percurso, onde ocorreu o acidente que vitimou o seu filho F..., quer conduzindo o seu veículo ligeiro, quer conduzindo o pesado, bem como com o depoimento da testemunha Fernando Jorge Rosa de Freitas, que reside em Marianaia há muitos anos, também faz aquele mesmo percurso diariamente, conhecendo bem as características do local, até por ser um dos comproprietários do terreno onde existe o caminho de terra batida que o F... percorreu de bicicleta, antes do embate com o 13-56-NC;
No que concerne à visibilidade deste caminho, a propósito dela, foram também inquiridas as testemunhas Afonso Neves Augusto, Alfredo Amaro Ferreira Coelho e Carlos Manuel Azinheira Lopes.
Estas testemunhas, ao terem tomado conhecimento deste acidente, no próprio dia e algum tempo depois, deslocaram-se de veículo automóvel ao local, porque lhes pareceu estranho que tal acidente tivesse ocorrido em frente do Restaurante Alpendre, como, por lapso, vem assinalado, no «croquis», junto a fls. 6 destes autos.
Este restaurante, como se pôde verificar, aquando da deslocação deste Tribunal ao local dos factos e estas testemunhas também referiram, encontra-se situado junto à hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o sentido Sul - Norte, em que o arguido circulava, mais ou menos, na direcção da curva à direita, considerando o mesmo sentido de marcha, que antecede a recta em que se deu a colisão. Daí a estranheza e a curiosidade que, alegadamente, motivaram estas testemunhas a fazer tal deslocação, conforme versão por todos eles apresentada em audiência.
Quando inquiridos, começaram por afirmar, peremptoriamente, que as ervas ou feno existentes no tal ribanceiro que ladeia a estrada municipal nº 533.1. eram de tal modo altos, que só à entrada do caminho de terra batida, o arguido poderia ter visto, quer esse caminho, quer o F.... Designadamente, a testemunha Afonso Neves Augusto, pela primeira vez que foi inquirido, começou por dizer que se dirigiu ao local, na perspectiva de um condutor que, como o arguido, circulasse pela hemi-faixa de rodagem da direita, no sentido Sul-Norte.
Mas não era ele quem conduzia o veículo automóvel, no qual se fez transportar até ao local e já nem sequer se lembra se ia sentado no lugar ao lado do do condutor, ou se vinha no banco traseiro, de acordo com a depoimento que prestou, na última sessão da audiência.
Por isso, não se percebe como é que pode ter tido a perspectiva que o arguido teve, aquando do acidente, no que concerne à visibilidade da estrada e, mais especialmente, do caminho em questão.
Depois, tanto a testemunha Alfredo Amaro Ferreira Coelho, como a testemunha Carlos Manuel Azinheira Lopes, quando ouvidos pela primeira vez, se arrogaram a qualidade de condutores do veículo em que se transportaram ao local do acidente. Depois de desvendada a dúvida, no sentido de que, quem conduzia era o Sr. Alfredo Amaro Coelho, também afirmaram a total falta de visibilidade do caminho, durante todo o percurso da recta com que o mesmo entronca.
Porém, todas estas testemunhas desconheciam, em absoluto, quando saíram de Tomar, em direcção à localidade de Marianaia, qual o local exacto em que o acidente se tinha verificado.
Entraram na E.M. nº 533.1, pela hemi-faixa da direita, atento o sentido Norte-Sul ( contrário àquele em que o arguido seguia). Chegados às imediações do Restaurante Alpendre, como não viram ninguém, uns metros à frente, fizeram inversão de marcha e passaram a circular pela hemi-faixa da direita, no sentido Sul-Norte. Pararam perto de um grupo de pessoas, que se encontrava nas imediações do Café Marianaia e que estas testemunhas já tinham visto, momentos antes, quando tinham passado em direcção ao Restaurante Alpendre.
Ali chegados e sem que tenham, sequer, saído do interior do veículo em que se faziam transportar, perguntaram a essas pessoas se sabiam onde é que o acidente tinha ocorrido. E foi, então, que souberam qual tinha sido o local do embate entre o NC e a bicicleta conduzida pelo F....
Seguidamente, regressaram para Tomar.
Confrontados, porém, com outras características da estrada e do local em geral, nada souberam esclarecer, nem ao menos se ali havia sinais verticais de trânsito, pelo que não se percebe por que razão se lembram tão bem do feno e das ervas, mas não desses sinais que, aliás não são tão poucos como isso, como resulta da matéria de facto provada sob os nºs 41. a 44.
Em todo o caso, não deixaram de confirmar que o aspecto do local, quanto às ervas e ao feno é aquele que se vê nas fotografias juntas pelo arguido aos autos, das quais, refira-se, as que estão juntas a fls. 122 a 125, nem sequer respeitam ao local em que o caminho de terra batida, de onde o F... vinha, entronca com a recta, nem a esta última, na parte que se segue à curva à direita, por onde o arguido circulava, antes de o embate se ter dado.
Por todas estas razões, estes depoimentos não oferecem qualquer credibilidade, nesta parte, sobretudo, quando confrontados com o prestado, pela testemunha Fernando Jorge Rosa de Freitas, atento o conhecimento que este tem do local, pelas razões acima apontadas, quer com as declarações do assistente, prestadas com grande segurança, clareza e isenção.
- quanto ao descrito em 56. a análise conjugada do depoimento da testemunha Fernando Jorge Rosa de Freitas e a medição efectuada no local, a que se reporta o auto de inspecção judicial de fls. 243 a 249, uma vez que esta testemunha estava nas imediações do edifício do café Marianaia, quando se cruzou com o F... de bicicleta, momentos antes do embate e, ainda, as fotografias de fls. 127 a 131;
- em relação aos descritos em 57. a 62., o depoimento da testemunha Fernando Jorge Rosa de Freitas que além de comproprietário do terreno ali referido, mora numa das casas ali implantadas há vários anos, as fotografias de fls. 127 a 131 e de fls. 144; 148; 149 e 198 a 201;
- em relação aos descritos em 63., o auto de exame de cadáver e autópsia de fls. 20 e 21 e o relatório de autópsia de fls. 56 e 57;
- quanto ao descrito em 64., o relatório de autópsia de fls. 56 e 57 e o certificado de óbito de fls. 16;
- quanto ao descrito em 65., o boletim clínico de admissão no H.D.T. de fls. 15 e o certificado de óbito de fls. 16;
- em relação aos que vêm descritos em 66. a 68., resultam das circunstâncias atinentes à dinâmica do acidente, especialmente as descritas em 6.; 16.; 28. a 33.; 44.; 53.; 54.; 92. a 104., conjugadas com as regras de experiência comum, relativas ao grau mínimo de cuidado que é de exigir a um condutor e, no caso vertente, considerando o conhecimento especial do local de implantação da estrada que o arguido tinha, como resulta, designadamente, do facto descrito em 100.;
- quanto ao descrito em 69., o certificado de registo criminal de fls. 76 e o registo individual de condutor de fls. 196;
- quanto aos descritos em 28. a 33.; 70. a 79.; 86. a 104. e 107., as declarações do arguido;
- em relação ao descrito em 80., o depoimento da testemunha Fernando Rui Linhares Corvêlo de Sousa, vice-presidente da G... e amigo do arguido entre há dez e quinze anos que, por diversas vezes, se fez transportar em veículo automóvel conduzido pelo arguido;
- quanto aos descritos em 81. a 84., os depoimentos das testemunhas Fernando Rui Linhares Corvêlo de Sousa e João Maria Fernandes Borga, este último, sacerdote católico e pároco de Tomar há 12 anos, que conhece e convive com o arguido, desde há 10 ou 11 anos;
- em relação ao descrito em 85., os depoimentos das testemunhas Fernando Rui Linhares Corvêlo de Sousa e João Maria Fernandes Borga, bem como a postura do arguido perante os factos e o seu comportamento durante toda a audiência de discussão e julgamento;
- quanto aos descritos em 105; 106. e 108., o livrete do veículo 13-56-NC, cuja cópia se encontra a fls. 220 e o contrato de locação financeira, junto por cópia a fls. 221 a 224;
- relativamente ao descrito em 109., o documento de fls. 190;
- em relação aos descritos em 110. e 111., a certidão de assento de nascimento de fls. 92;
- em relação ao descrito em 112., a certidão do assento de nascimento de fls. 94;
- em relação ao descrito em 113., a certidão do assento de nascimento de fls. 95;
- no tocante aos descritos em 114., as certidões de assento de nascimento de fls. 94 e 95;
- quanto aos descritos em 115. a 117. e 128. a 135., os depoimentos das testemunhas Teresa Maria Ferreira, tia materna do F... que vive perto dos assistentes e com eles convive diariamente, tendo chegado ao local do acidente, momentos após o mesmo ter ocorrido e tendo presenciado a reacção e o estado de espírito com que os assistentes B... e C... ficaram, quando se depararam com o seu filho caído na estrada, depois do embate com o veículo NC; Luís de Oliveira Nunes e Alberto de Oliveira Nunes, ambos irmãos do assistente Agostinho de Oliveira Nunes Ferreira e que com ele e com a assistente convivem diariamente;
- em relação aos factos a que aludem os pontos 11.; 12. e 118. a 127., as declarações do assistente Agostinho de Oliveira Nunes Ferreira, pai do F... que as prestou de forma isenta, serena, contida e com grande dignidade.
2.3. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram quaisquer outros factos que se não compaginem com a factualidade acima dada como provada, designadamente, as circunstâncias descritas na acusação, de que o corpo do F... foi projectado, após o embate a uma distância de 15,80 metros, face ao que consta da matéria de facto provada sob o ponto 24.; que o 1-TMR-45-25 tenha ficado caído a uma distância de 8,80m do local do embate, face ao que consta do ponto 25.
Ainda, por falta de produção de prova esclarecedora, nesse sentido, já que nenhuma das testemunhas se referiu a tais aspectos, nem sobre eles foram efectuadas outras diligências probatórias, não logrou demonstrar-se que o embate se tenha dado a 2,40 m do aqueduto e a 6,80 m do prédio com o nº 8 e, por último que a distância do local do acidente a que fica um dos sinais de limitação da velocidade a 50Km/hora, seja a de 160 m.
Relativamente aos factos alegados nos arts. 16º a 21º do pedido cível de fls. 88 e seguintes, os mesmos nem sequer foram considerados, por serem irrelevantes, como, a propósito do enquadramento jurídico - civil, se exporá.
Em relação ao conteúdo dos arts. 26º a 34º do mesmo pedido cível, trata-se de matéria conclusiva e de conceitos de Direito.
No que concerne à contestação ao mesmo pedido cível, os arts. 2º; 3º; 4º; 5º; 11º a 20º, contêm matéria conclusiva, de Direito ou de simples impugnação.
Quanto à primeira parte da alegação contida no art. 7º e aos factos invocados nos arts. 8º e 9º da mesma contestação, eles não resultam provados, por total falta de produção de prova, nesse sentido e porque o contrário resulta da matéria de facto provada, no que tange à dinâmica do acidente.

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A- Possibilidade de apreciação da matéria de facto – Ónus imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP

O recurso interposto, como resulta das conclusões formuladas pela recorrente na motivação apresentada, as quais delimitam o âmbito da impugnação( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de processo penal (1994), III, 320.),incide também sobre a decisão proferida sobre a matéria de facto.

De acordo com os n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do CPP sobre o recorrente impende a obrigação de especificar as provas que impõe decisão diversa da recorrida, bem como as provas que devem ser renovadas, por referência aos suportes técnicos. O texto dos ns. 3 e 4, do art.412º, surge no seguimento das profun-das alterações introduzidas em matéria de recursos pela Lei n.0 59/98, de 25 de Agos-to, designadamente a atinente à instituição de um recurso efectivo em matéria de facto, o qual pressupõe a documentação da prova tendo em vista a sua reapreciação pelo tri-bunal superior, reapreciação que poderá implicar a modificação da decisão proferida em 1ª instância, sendo que o legislador foi aqui marcadamente influenciado pelos tex-tos legais que regulam tal matéria em processo civil.

Com efeito, o legislador processual penal servindo-se das soluções instituídas no Código de Processo Civil, quer em matéria de documentação e registo da prova, quer em matéria de impugnação (requisitos formais e materiais), quer mesmo em matéria de modificabilidade das decisões recorridas, adoptou-as de forma clara, transpondo o regime ali consagrado, porém, teve o cuidado de proceder às necessárias adaptações/alterações, tendo em vista a diversidade da estrutura dos respectivos pro-cessos e princípios gerais que a eles presidem.

Assim, verificamos que o art.412, n.0s 3, al.a) e b) e 4, foi inspirado no artº 690º- A, nºs 1, als. a) e b) e 2 do Código de Processo Civil. Aliás, a similitude de redacções é patente.

No entanto, o legislador processual penal não se limitou a transpor para o art.412º, n.0s 3, als.a) e b) e 4, o texto dos n.0s 1, als.a) e b) e 2, do art. 690º- A Código de Processo Civil.

De facto, enquanto no corpo do n.01, do art. 690º- A, do Código de Processo Civil, se prevê expressamente a rejeição do recurso caso não seja cumprido o ónus ali estabelecido e concretizado, nos n.0s 3 e 4, do art.412º, não se estabelece aquela sanção para a falta de igual ónus também ali previsto e concretizado nas alíneas a) e b), do n.0 3, o que significa que em processo penal, caso aquele ónus não seja ob-servado, a correspondente falta não acarreta a rejeição.

No entanto, dúvidas não há de que a não observância daquele ónus tem por consequência a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto ex vi art.43 10, al.b) - o que é diferente, já que o tri-bunal poderá ainda conhecer da matéria de facto nos apertados limites do art.410º, n.0 2 (corpo do art.431º),o que não poderia fazer caso rejeitasse o recurso.

E dúvidas não temos de que o não cumprimento da obrigação im-posta pelo n.0 3, do art.412º, acarreta a imodificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, porquanto o art.43 1º, estabelece que: «Sem prejuízo do disposto no art.410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modifi-cada:

a)...

b) Se havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 4120, n.0 3; ou

c) Se tiver havido renovação da prova>.

O que equivale por dizer que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só é susceptível de modificação, no caso de gravação da prova, se esta tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º, nº 3 e 4, pelo que no caso impugnação sem observância do disposto naqueles dispositivos, ao tribunal de recurso vedado está o conhecimento da matéria de facto.

Ora, no caso vertente verifica-se que o recorrente não deu cumpri-mento às imposições constantes do art.412º, n.0s 3 e 4.

Com efeito, a recorrente em parte alguma da motivação apresentada especifica, nos termos legais, isto é, por referência aos suportes técnicos, as provas que considera imporem decisão diversa da recorrida.

Destarte, não tendo o recorrente cumprido o ónus imposto pelos n.0 3 e 4, do art.412º, impossibilitado está o tribunal de recurso de modificar a decisão do tribunal a quo sobre matéria de facto, ou seja, de conhecer a matéria de facto, o que conduz à improcedência do recurso nesta parte.( - Ac. deste Tribunal da Relação proferido em 20-09-00 no recurso nº 1692/00)

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A- Culpa na produção do acidente – Nexo de causalidade

O juízo de culpa a formular em casos como o vertente (tendo por certo que a culpa lato sensu se manifesta quando ocorre um facto ilícito resultante de um acto voluntário, e entre este e o respectivo agente se detecta um nexo de imputação), encontra-se frequentemente relacionado não só com a omissão/violação de deveres de cuidado genéricos, mas também com a omissão/postergação de deveres de cuidados específicos, cuidados esses traduzidos na imposição de regras próprias, as quais têm em vista regular actividades potencialmente perigosas, in casu a condução de veículos, a qual se processa no âmbito da circulação rodoviária.

Efectivamente, como é sabido, a circulação rodoviária constitui uma actividade perigosa que, por isso , obedece a especiais regras e prescrições, cujo cumprimento e acatamento é indispensável, sob pena de se poderem originar e provocar eventos, algumas vezes altamente danosos.

Do não cumprimento de tais regras e do não acatamento de tais prescrições, isto é, da omissão a que se está obrigado ou da violação do comportamento legalmente imposto, pode pois depender o juízo de culpa, concretamente quando ocorre um nexo causal entre o acto do agente e o facto ilícito daí resultante, e a violação daqueles por parte do agente.

Com efeito, quando se omitem ou não se acatam algumas das referidas regras ou cautelas e imposições, as quais visam impedir a verificação do perigo inerente à circulação rodoviária ou ao tráfego, pode e deve imputar-se ao agente protagonista do respectivo acto e o efeito/resultado ilícito, a responsabilidade pela sua produção, na medida em omitiu o dever de diligência ligado à realização da sua conduta perigosa e, com ele, postergou o dever de representação, ou de justa representação, daquele efeito/resultado, desde que os factos produzidos se apresentem como consequência adequada da sua conduta ou actividade e sejam previsíveis, no sentido de que entre a omissão do dever de cuidado e o resultado haja uma relação íntima de causa e efeito, ou seja, quando o dever de cuidado visa obstar à produção do efeito/resultado, isto é, seja adequado a evitá-lo, e mesmo que este ocorra, sem ou contra a sua convicção.

Assim, se existe um regulamento ou regra que manda seguir a uma certa velocidade para evitar grandes ruídos, se um automobilista despreza esse preceito e atropela uma pessoa, não se podem, só pelo facto da violação daquele preceito, imputar ao agente, a título de culpa, as ofensas resultantes do atropelamento. E isto porque aquele preceito visa prevenir outro resultado – que não o produzido.

Ao invés, se existe um regulamento ou regra que manda seguir a uma certa velocidade para evitar atropelamentos, designadamente para evitar que as crianças que frequentam uma escola sejam atropeladas ao entrarem e saírem da mesma , se o condutor de um veículo infringe esse preceito e atropela uma criança que acabou de sair da escola, parece claro que se pode e deve imputar-lhe a responsabilidade pela produção do evento, a título de culpa, nomeadamente se entre a velocidade imprimida ao veículo e o atropelamento existe uma relação íntima de causa e efeito . É que aquele preceito limitador da velocidade visa prevenir o resultado que veio a ser produzido.

Previsibilidade e dever de prever, são pois elementos que objectivamente delimitam a culpa, no entanto, o concreto conteúdo e âmbito de tais elementos deve ser aferido não em termos absolutos, mas sim de acordo com as regras gerais de experiência dos homens, ou de certo tipo de homem ( pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – art.º 487º, n.º 2 do CC) pelo que existe dever de prever sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento.

Como diz Eduardo Correia ( - Cfr. Direito Criminal(1971), I, 424 e segs.): “ é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência , ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo”.

Tais cuidados e cautelas tanto podem resultar, pois, de regras ou preceitos jurídicos (caso das regras de trânsito) como da adequação da conduta pata produzir um resultado, desde que as regras comuns de experiência não sejam tomadas na devida conta. Assim, se segundo as regras gerais e experiência, uma conduta revela aptidão para produzir um resultado ilícito, ocorre violação do dever de diligência e, portanto, existe culpa, independentemente daquilo que pessoalmente o agente poderia prever como normal ou necessário.”( - Ac. deste Tribunal da Relação proferido no Recurso n.º 922/97)

Reportando-nos ao caso dos autos, cumpre destacar que um dos elementos objectivos do tipo homicídio involuntário cujo preenchimento é altamente problemático é o da necessária imputação do desvalor do resultado ( a supressão da vida), num critério teleológico – normativo à conduta objectivamente violadora do cuidado que seria devido, segundo a acusação.

E isto por que no âmbito dos crimes de resultado não basta a verificação do resultado típico para que se possa considerar aquele que causou a sua verificação como autor do crime correspondente.( - JescheK, Tratdo de Derecho Penal, pags. 249/250, Olayo Eduardo González Soler, Homicídio y lesiones imprudentes de trabajo, La Imprudencia, Consejo general Del Poder judicial, 1993, pags. 109/110, 224.)

Para lá disso, necessário é que a pessoa causante desse resultado possa considerar-se responsável por esse resultado, do ponto de vista jurídico - penal.

Com efeito , nos termos do artº 10º, nº 1 do CP “ Quando um tipo legal de crime compreenda um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo, como a omissão da acção adequada a evitá-lo...”

Ou seja, para que estejam preenchidos os elementos do tipo objectivo de um crime de resultado é necessário, além do mais, que exista uma adequada relação causal entre a conduta e o resultado.

Face ao normativo legal acabado de citar é hoje indiscutível a consagração legislativa em Portugal, em sede de Direito Criminal e no âmbito da imputação objectiva, da denominada teoria da causalidade, ou melhor, da chamada teoria da adequação.( - No sentido de que a teoria da adequação é já uma teoria de imputação objectiva e não uma teoria de causalidade oposta à teoria da “ conditio sine qua non”, Jesheck Tratado de Derecho Penal, parte General. Comares, 4ª, pags. 256/257, Jakobs, Derecho Penal, parte General, Marcial Pons, 1995, pags. 238 segs.. No mesmos sentido, mas agora no âmbito do Direito Civil, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, pag. 860, nota 1)

“ ....para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta; é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado; que o resultado seja uma consequência normal típica da acção. O processo lógico deve ser o de uma prognose póstuma, ou seja de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção de realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, o de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação. Assim a idoneidade da acção para a produção do resultado de facto que o agente devia conhecer, mas segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral, conhecidas, não se devendo porém abstrair para a sua determinação em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia “ ( - Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4ª, pag. 86)

Postas estas considerações e debruçando-nos sobre a posição da recorrente seguradora afigura-se-nos que ela assenta em dois pressupostos que não se verificam. Por um lado de que não houve excesso de velocidade e por outro que a causa de um acidente de viação é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-la.

Quanto ao primeiro aspecto é sabido que não é a velocidade absoluta que se torna perigosa, mas sim velocidade relativa, pois que um automóvel pode ser absolutamente inofensivo a 120 km/h e constituir em certos casos um perigo a 20 km/h .

No que respeita ao segundo, num acidente de viação não nos podemos limitar a analisar se a acção ou omissão é normalmente idónea a produzi-la, temos que ligar o facto, a actuação ao resultado( no caso a morte de uma pessoa).

Por si só e em abstracto o excesso de velocidade não desencadeia necessariamente efeitos mortais, nem pode sem mais ser entendido como uma conduta negligente. A conduta que viola uma norma de trânsito e causa, com isso, a morte de outrem, não pode , de imediato, ser entendia como ilícita.

Como refere Faria Costa( -O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, pag. 500 )“ é inconsciente imputar, sem mais o resultado ao condutor que, em excesso de velocidade, atropelar mortalmente uma pessoa(...) então mais valeria ao condutor do veículo ter violado, ainda mais intensamente o dever de cumprir o limite de velocidade, porque se assim tivesse actuado teria passado antes do momento em que se encontrou o peão”.

Debruçando-nos sobre a factualidade dada como provada parece-nos poder concluir que, quer em termos de improbabilidade quer de imprevisibilidade ,o arguido se comportou culposamente, pois que podemos considerar que entre a velocidade imprimida ao veículo(mais de 50 km/h) e o atropelamento da vítima existe uma relação íntima de causa efeito. Melhor dizendo a desatenção com que circulava, já que podendo ver a vítima a pelo menos a 22 metros não buzinou nem reduziu a velocidade, está forçosamente correlacionada com o evento letal. A dinâmica do acidente permite-nos concluir que quando o arguido circulava a 22 metros(momento em que era avistável o caminho onde se encontrava o menor)do local onde se deu o embate o menor já se preparava para atravessar a via.

A culpa pode resultar não só da indevida violação de uma norma estradal, como ainda se simples, mas censurável, falta de atenção , de prudência e de cuidado.

No caso factores de diversa ordem (omissões da própria vítima e do condutor do veículo) contribuíram para o desenlace fatal.

Deste modo impõe-se agora apreciar a contribuição de cada um para a produção do acidente. Entendeu o tribunal a quo que o arguido contribuiu na proporção de 60%.

Parece-nos no entanto que não terá sido a solução mais correcta, já que assenta boa parte da sua tese no facto de ser menos exigível a uma criança ter outra conduta(de uma criança de nove anos , que era a idade que o F... tinha, quando morreu, não pode esperar-se que conheça e cumpra certas regras estradais, como as que regem a prioridade e cedência de passagem, incidivelmente ligadas ao exercício da condução de veículos de circulação terrestre.)

Por outro lado transporta para a culpa do arguido o facto de a vítima ser uma criança, quando é certo que o condutor /arguido não se apercebeu, como devia, de quem quer que fosse, daí a negligência. “O arguido não viu o F... “(28) “ Só se apercebeu de um “vulto” a embater contra o pára-brisas do lado direito do …(29)” .

É evidente que, se existisse a demonstração de que o arguido tivesse a prévia percepção do menor, duma criança dúvidas não temos que deveria ter previsto a possibilidade de um atravessamento inopinado e, consequentemente, deveria ter usado os cuidados necessários e impostos por aquele dever objectivo com a finalidade de evitar um eventual atropelamento.

Saliente-se que, tal perspectiva integra desde há muito tempo a orientação perfilhada pelo STJ. Relembre-se a propósito o teor do Acórdão do STJ de 4.4.78 no sentido de que nem o condutor é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos outros – tem antes de partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito, pois que se eles os cumprem, e a todos é exigível cumpri-los ,as possibilidades de acidente estão afastadas. É o chamado princípio da confiança.

Dando de barato a tese do recurso subordinado de que a criança terá parado antes de entrar na estrada, tal não é suficiente para considerar que não contribuiu ou contribui apenas com 10% para a produção do acidente. É que o respeito pela regra da prioridade o acto de parar é talvez o menos importante na tríplice atitude que se deve ter para cumprir esta regra: parar, olhar e deixar passar. É indesmentível que a vítima não deixou passar o veículo.

Assim concluímos que o arguido contribuiu com 40% para a produção do acidente.

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C- Parte penal - Medida da pena

Nos termos do artº 403º, nº 2 do CPP importa agora debruçar-mo-nos sobre os reflexos que a diferente proporção de responsabilidade na produção do acidente terá sobre a parte penal, mais concretamente apenas sobre a medida da pena, alterando-se na medida estritamente necessária para que não haja contradição com a decisão do tribunal superior respeitando sempre as limitações decorrentes da proibição da reformatio in pejus .

Assim ponderando os factores considerados na 1ª instância temperados com a contribuição do arguido na produção do acidente afigura-se-nos adequado fixar a pena de multa em 150 dias.

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D –Parte civil - Quantum indemnizatório

Considera a recorrente seguradora que a quantia de 75.000 € arbitrada aos demandantes, relativamente ao dano morte, é exagerada, sendo que a quantia arbitrada por danos morais de 45.000€ para cada um dos demandantes é manifestamente superior à que tem vindo a ser quantificada pela jurisprudência.

Decidindo:

Direito à vida

Os demandantes a este título pediram 100.000 € .

A sentença recorrida fixou-os em 75.000 € .

São consabidas as dificuldades em fixar o montante desta indemnização.

Dario de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, pag. 187, propõe que a lesão do direito á vida seja encarado sob três aspectos:
1- Enquanto vida que se perde, na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral.
2- Enquanto vida que se perde, no papel excepcional que desempenha na sociedade( um cientista, um escritor, um artista).
3- Enquanto vida que se perde, sem qualquer função específica na sociedade ( uma criança, um doente, um inválido) mas assinalada por uma valor de afeição mais ou menos forte.

Os danos não patrimoniais que geram a obrigação de indemnizar, ou melhor que constituem a medida desta, merecem a tutela do direito de que fala o n.º 1 do art.º 496º do CC, já que a morte é o mais grave dos danos que pode causar-se à personalidade, pois outra coisa não é senão a sua destruição.

Quanto à sua medida, o n.º 3 o mesmo dispositivo diz que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal. Trata-se afinal de encontrar um mero expediente compensatório já que a vida não tem sucedâneo, nem jamais será possível fixar-lhe um preço.

O julgador terá, pois, de olhar ao específico condicionalismo da vítima, de forma a modelar a eventual duração da sua vida, tendo em atenção a sua idade e os condicionamentos da sua saúde. Mas como acentua Dario de Almeida ( Ob. Citada pag. 186) “ uma vida não tem apenas valor de natureza: tem sobretudo, um valor social, porque o homem é um valor em situação. E é em função desse valor que os tribunais têm de apreciar, em concreto, o montante da indemnização, pela lesão do direito à vida”.

No cálculo da indemnização pelo dano moral da perda do direito à vida deve ter-se em conta um “valor de natureza” ou valor em abstracto, que é igual para toda a gente , e um “valor social”, pelo qual se encara a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral.( - Ac. da Rel. do Porto de 8-2-01 proferido no processo 0130112)

Na fixação do valor do direito à vida deve-se assim ter em conta os coeficientes específicos de cada caso, nomeadamente grau de culpa do lesante, a saúde, idade, o apego à vida, a força de vida, a ligação à família, o gosto de viver e a felicidade o valor intelectual e humano, aproveitamento escolar, formação académica, qualidades de trabalho, idoneidade moral

Assim ponderando estas factores a Relação do Porto em 18-9-02 (processo nº 0111024) considerou ajustado fixar uma indemnização de 5.000.000$00 pela perda do direito à vida de uma criança saudável alegre que frequentava ensino básico, em 12-2-03(processo nº 0241504) 8.000.000$00 para compensar a perda do direito à vida de um jovem de 21 anos de idade que frequentava o ensino secundário que faleceu por culpa exclusiva do lesante, em 12-6-03(processo nº 0332672) 10.000.000$00 pela vida de um jovem de 16 anos, em 27-11-03(processo 0335354) 10.000 contos pela perda do direito à vida, em 7-1-04(processo nº 0210728) 40.000.00 € para um jovem de 18 anos, 3-3-04 (processo 0410036) 42.500 € para um jovem de 25 anos de idade, 6-10-04(processo nº 0346332) 50.000€ para duas pessoas saudáveis com 67 e 69 anos de idade, a Relação de Lisboa em 15-12-94, Col. V- 135 fixou uma quantia compensatória de 4.000 contos para uma vítima de 80 anos de idade, em 10-3-04 perante a morte de um jovem de 24 anos, saudável, alegre e com futuro promissor fixou uma indemnização de 50.000€ ,a Relação de Coimbra de 14-6-00, Col.III-55 fixou como compensação para a perda do direito à vida de uma vítima de um acidente de viação de 19 anos de idade, saudável , trolha, trabalhador jovial, respeitável, com um feitio sociável, expansivo e alegre, gozando da estima de quem com ele convivia e vivendo com os pais, o montante de 8.00.000$00, em 10-7-01(processo 1726/01) para uma jovem de 28 anos 7.000 contos, 11-7-01(processo 1837/01) para vítima de 21 anos, saudável, frequentava um curso de formação e tinha hábitos de vida sem vícios e modesto, gozando de estima e consideração, sendo feliz e com projectos de via, 8.000 contos, em 4-12-02(processo 3144/02) tendo a vítima 24 anos de idade,8.000 contos,9-7-02(processo 1521/02) tendo a vítima 30 anos de idade 9.000 contos, e o Supremo Tribunal de Justiça em 30-10-01(processo 01A 2900) considerou equitativo 7.000.000$00 a compensação pelo dano da morte tendo a vítima , casada, a idade de 26 anos, com um filho, vivendo em ambiente de grande carinho e afeição, em 25-1-02(processo 01A 3952- CJ(STJ) I-61) 10.000.000$00 para um jovem de 24 anos de idade com um futuro promissor, que frequentava o curso de engenharia agro-alimentar, 10-10-02 (processo 02B 2597) 8.000 contos para um jovem de 24 anos ,trabalhador que não teve culpa o acidente que o vitimou , 4-12-03 (processo 03B 3825) considerou que a indemnização de 40.000€ pela perda do direito à vida se inscreve perfeitamente, nos padrões de cálculo mais recentes do Supremo, em 25-3-04 (processo 03B 4193) 8.000 contos para um jovem de 22 anos, saudável já inserido no campo profissional, que tinha pela frente um previsivelmente longo e risonho futuro.

Tem assim a nossa jurisprudência gradualmente pugnada no sentido de abandono de critérios indemnizatórios miserabilistas, sustentando que o montante indemnizatório deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.

O Tribunal a quo sustentou a sua posição na Resolução do Conselho de Ministros de 4 de Março de 001, sobre o acidente de Entre-os Rios, que fixou a indemnização de 10.000.000$00 – 49.879,79 €. Sem dúvida que é um marco importante , que surge à luz da evolução referida, fruto do abandono dos conceitos miserabilistas a que não é de estranhar a necessidade da nossa aproximação, também neste campo, à Europa , e como tal terá de ser considerado.

Trata-se de um valor abstracto e geral e que, como tal, terá de ser temperado, de acordo com os coeficientes específicos que referenciamos, tendo sempre como pano de fundo uma actualização progressiva e permanente que ultrapasse os índices de inflação de acordo com a necessária aproximação à Europa

Por tudo o exposto e considerando a idade da vítima 9 anos, vivendo com os pais e suas irmãs, unidos por fortes laços de afecto entre si, constituindo uma família harmoniosa, unida e feliz, sendo alegre comunicativo, cheio de vontade de viver e ponderando, também, a sua contribuição para o infeliz desenlace, entendemos justa a equitativa a indemnização pela perda do direito à vida em 50.000 €, ou seja atenta a proporção no desencadear do acidente em 20.000 €.

Indemnização por danos não patrimoniais próprios dos requerentes

Os demandantes a este título pediram 100.000 € sendo 50.000 € para cada um.

A sentença recorrida fixou-os em 54.000 € (27.000 €, para cada um dos pais).

Vejamos:

O art.º 496º,nº 2 do CC confere a certas pessoas um direito próprio a indemnização pela dor moral que elas normalmente podem sofrer em razão dos laços espaciais de afectividade que as ligam à vítima.

“A indemnização pelos prejuízos não patrimoniais decorrentes da morte da vítima compreende, não apenas o valor da perda do direito à vida, como ainda entre outros o “preço” da angústia, da tristeza e da falta de apoio, protecção, carinho, orientação, assistência, companhia, sofridas pelo familiar a quem a mesma vítima faltou.”( - Ac. Rel. de Lisboa de 17-3-92, Col. 1991, 2, 167)

Provou-se que os pais do André deslocaram-se ao local do acidente de imediato e quando ali chegaram viram-no caído no solo, ficando desesperados e em choque, não acreditando que ele estivesse morto. Sentiram e sentem um profundo desgosto, inconformados e inconsoláveis e com saudades do filho

Para compensar o quantum doloris que nos é transmitido por esta factualidade afigura –se - nos equilibrado o montante fixado na 1ª instância.

Fazendo o reajustamento consequente à percentagem de culpa na produção do acidente fixa-se a este título a indemnização de 36.000 € (18.000 € para cada um)

Nestes termos se decide:
- Julgar por

+ não provido o recurso subordinado e

+ parcialmente provido o recurso da demandada/seguradora

fixando-se

- a pena de multa em 150 (cento e cinquenta) dias, à taxa de 20(vinte)

€, ou seja na multa total de 3.000 € (três mil euros)

- a indemnização pelo direito à vida 20.000€(vinte mil )

- a indemnização por danos não patrimoniais próprios dos

requerentes em 36.000 € (18.000 € para cada um)

em tudo o resto se mantendo a decisão recorrida

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Custas pelos recorrentes na proporção de vencido

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Coimbra, 2004-12-09