Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO TRINDADE | ||
Descritores: | CONDUÇÃO SE M HABILITAÇÃO LEGAL CRIME CONTINUADO CONCURSO | ||
Data do Acordão: | 11/04/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE MONTEMOR –O-VELHO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS13º, 1ª PARTE, 14º, Nº1, 26º, 1ª PROPOSIÇÃO, E 30º TODOS DO CÓDIGO PENAL, E 3º, NºS1 E 2, DO DECRETO-LEI Nº2/98, DE 3/1, 121º, 122º E 123º DO CÓDIGO DA ESTRADA | ||
Sumário: | Existindo uma resolução inicial do arguido mantida ao longo de toda a actuação conduzir veículo, existe um só crime desde o primeiro momento em que o arguido conduz o veículo sem para tal estar habilitado até à altura em que é interceptado pelas autoridades. | ||
Decisão Texto Integral: | O Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido
P..., casado, carpinteiro, residente na Rua J…, Figueira da Foz. sendo-lhe imputada a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo de vinte e sete crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs1 e 2, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro, em conjugação com o artigo 121º, este do Código da Estrada (CE).
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Efectuado o julgamento foi proferida a sentença de fls.150 e segs na qual se condenou o arguido pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 30º todos do Código Penal, e artigo 3º, nºs1 e 2, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro, por referência aos artigos 121º, 122º e 123º, estes do Código da Estrada, nas penas parcelares de 140 e 220 dias de multa e em cumulo jurídico na pena única de 320 dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco euros) no montante global de 1.600,00 .
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Inconformado, recorreu o MºPº, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
O arguido respondeu pugnando pela improcedência do recurso para tal concluindo: 1-Ora, com o devido respeito, e salvo melhor entendimento, a factualidade provada, mostra claramente, que não obstante o arguido tenha sido interceptado pela GNR, após a prática de 8 dos 27 crimes de que vinha acusado, a repetição criminosa não afasta a forma de crime continuado, uma vez que ela resultou de uma renovação de oportunidades, que proporcionaram ao arguido, a repetição da sua conduta anterior. 2-O arguido, não criou, procurou ou planeou de forma organizada, novas situações que lhe permitissem praticar novas infracções,. As situações favoráveis à reiteração criminosa, não foram, criadas pelo arguido; a realidade exterior é que solicitou o arguido, é que lhe facilitou o caminho. Foram as circunstâncias externas que sendo sempre as mesmas, e anteriormente experimentadas com sucesso pelo arguido, facilitaram a repetição da condução do veículo entre a Figueira da Foz e a cidade de Burgos. Da factualidade provada, nada se pode extrair que leve à conclusão de que a conduta do arguido, se deve a "motivos estritamente endógenos", a uma tendência da sua personalidade, independentemente de qualquer solicitação externa. 3-Não se podendo concluir que o arguido tenha adoptado a conduta que adoptou, pressionado pela sua entidade patronal, por nada se ter apurado nesse sentido, igualmente nada. se apurou quanto a essa pressão não tenha existido. Todavia, há aqui que considerar que para o exercício da sua profissão, no âmbito do respectivo contrato de trabalho, a entidade patronal entregou ao arguido o veículo supra referido, para que ele o conduzisse, o qual era utilizado para efectuar as viagens entre a Figueira da Foz e Burgos e vice-versa, transportando consigo os seus colegas de trabalho. 5-Não estando o arguido habilitado para conduzir o veículo que lhe foi entregue pela entidade patronal, decidiu, iniciar as viagens de ida e volta, entre a Figueira da Foz e Burgos, por 8 vezes consecutivas, por forma homogénea, no quadro da mesma solicitação exterior. Após a intercepção pela GNR, no dia 13 de Julho de 2007, tomou uma nova decisão criminosa, conduzindo mais 19 vezes, no quadro da mesma situação exterior que tinha proporcionado a sua primeira conduta, o que vem novamente favorecer a tentação da sua repetição, nada lhe tendo entretanto acontecido, o que voltou a fazer com. que cada vez seja menos exigível ao arguido, comportar-se diferentemente. O que fundamenta e justifica o instituto do crime continuado, são questões atinentes à culpa do agente, O pressuposto de diminuição considerável da culpa do agente, constante do n° 2 do artigo 30° do C. Penal, está directamente relacionado com factores externos, factores que facilitem a repetição de atitude já anteriormente assumida. O arguido, apenas acedeu a esses chamamentos exteriores, a essas novas oportunidades surgidas, para continuar a conduzir sem a respectiva licença. É neste contexto que diminui consideravelmente a sua culpa, e não o contrário, peio que também diminuirá consideravelmente a censura ao seu comportamento. Não se estará de modo algum a beneficiar o arguido que, após a intercepção pela GNR, conduziu em mais 19-ocasiões, tomando uma nova resolução criminosa, voltando a conduzir em iguais circunstâncias, não sendo, com o devido respeito, deste modo, demonstrado que o arguido, com a sua conduta, tenha manifestado uma personalidade contrária ao direito. 6-Termos em que, deve o recurso interposto pelo Ministério Público não obter provimento, por não provado, e em consequência, ser mantida a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, com a condenação do arguido na pena. única de 320 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no montante global de € I 600,00, pela prática de 2 crimes de condução sem habilitação legal, na forma continuada, p. e p, pelas disposições conjugadas dos artigos 3o n°s. 1 e 2 do DL n° 2/98 de 03.01, 121° a 123° do C. Estrada e 13°, 14°, 26° e 30° do C. Penal
Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer: 1. Acompanhamos, integralmente, a posição assumida pelo Ministério Público na 1a instância na sua motivação de recurso, pelo que entendemos que o recurso merece provimento.; 2. De todo o modo sempre se aditará, o seguinte: 3. Embora as Relações conheçam de facto e de direito (art.º 428º do CPP), não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nem, consequentemente, sido dado cumprimento aos ónus especificados no art° 412° n°s 3 e 4 do mesmo diploma( - Nem se compreenderia que tivesse sido, uma vez que nas conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, apenas vem questionada a qualificação jurídica dos factos. ) , os poderes de cognição deste Tribunal da Relação mostram-se restringidos ao conhecimento da matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios elencados no art.º 412º 2 do CPP e da inobservância dos requisitos cominados sob pena de nulidade que não devam, considerar-se sanados (n° 3 do mesmo preceito); 4, Razão por que deve a factualidade dada como provada [fls 152 a 153, itens a) ) ser tida por definitivamente assente; 5, Sendo, pois, com base nessa matéria de facto fixada que a questão da subsunção jurídica dos factos a uma pluralidade de crimes, objecto do recurso, terá de ser apreciada e resolvida; 6, Ora, para que se esteja perante um crime continuado é necessário que cumulativamente se verifique (art.º 30º do Código Penal), a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos legais de crimes que protejam bens jurídicos fundamentalmente idênticos), a homogeneidade da forma de execução (de que uma proximidade de espaço e de tempo pode ser um indicio forte - Fig. Dias, Direito Penal.....Questões fundamentais da doutrina geral do crime, 2a edição, p. 1030 ), a lesão do mesmo ou fundamentalmente o mesmo bem jurídico, a persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminuiu consideravelmente a culpa do agente -Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 163 e ss. e um dolo continuado (que existe quando a nova resolução renova a anterior de modo que elas se conservam dentro de «uma linha psicológica continuada») Fig. Dias. Direito Penal (lições policopiadas) ■-• ano lectivo de 11975-1976, p. 127: 7-Ponte decisivo para unificação de uma, pluralidade de crimes na forma de um só crime continuado será, verdadeiramente, a existência de uma situação exterior consideravelmente facilite a repetição da actividade criminosa. tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente ,isto é , de acordo com a norma -Eduardo Correia, Direito Penal II,p. 209 8-Ora da matéria de tacto dada como provada - e é unicamente dessa que aqui temos de curar - não resulta, como bem observa o Ministério Público na 1ª instância conclusão da sua motivação de recurso, que o arguido ao concluir o veículo ocasiões distintas sem estar legalmente habilitado para tal, tenha agido no quadro de uma mesma situação externa que lhe tenha retirado a possibilidade de se comportar de outra maneira (fls 195, conclusão 5); 9-Num particular quadro de diminuição sensível da culpa do agente, compatível com a ideia de uma menor exigibilidade: 10-E que, ao invés, da mesma matéria de facto provada resulta que a conduta do arguido revela um propósito sempre renovado de conduzir veículo motorizado sem para tal estar habilitado (conclusão 6 — Ia parte); 11- Razão por que se entende que o recurso merece provimento. Acresce que sendo a alteração da qualificação jurídica dos factos conhecida do arguido - uma vez que essa alteração consta das conclusões da motivação de recurso interposto pelo Ministério Público e o arguido teve oportunidade já de a elas responder - entendemos que não há lugar à notificação a que se reporta o art° 424° n° 3 do CPP - Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário ao Código de processo penal, 1ª edição p. 1164 e 1165, anotações 7 e 8 ao art.º 424.;
Parecer que notificado não mereceu resposta.
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Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir : O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação,bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Como não foi requerida a documentação dos actos da audiência e inexiste vício ou nulidade de que deva conhecer-se(artº 410º, nº 2 e 3 do CPP) é de aceitar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância (artºs 364º, nº 1 e 428º, nº 2 do CPP) ficando o recurso limitado à matéria de direito.
As questões a resolver são as seguintes:
Factos dados como provados: * II.3. Motivação de facto. A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento, designadamente: 1. Auto de notícia de fls. 2; 2. Informação de fls. 15 passada pela entidade patronal do arguido na qual declara o veículo atribuído ao funcionário P... e que o mesmo utilizava essa viatura nas suas deslocações profissionais; 3. Informação do IMM.T de fls. 18 onde atesta que o arguido não é titular de carta de condução ou outro documento que o habilite a conduzir; 4. Informação de fls. 20 passada pelo Governo Civil do Distrito de Coimbra, atestando que nada consta no que respeita a apreensão de carta ou qualquer sanção de inibição no dia 13.07.2007; 5. Fax de fls. 24 enviado pela entidade patronal do arguido para a GNR a informar que o arguido iniciou funções em 26 de Fevereiro de 2007 e terminou-as em 20 de Setembro de 2007, período durante o qual utilizou o veiculo identificado para as deslocações entre a Figueira da Foz e Burgos, onde trabalhada e vice versa, fazendo-se acompanhar de outras colegas que identifica; 6. Certificado de registo criminal de fls.132; 7. Confissão do arguido. Na verdade o teor dos documentos elencados foi conjugado com a confissão da prática dos factos feita pelo arguido em audiência de julgamento, de forma livre, sem reservas e consciente. No que concerne à condição pessoal, familiar, profissional, económica e social do arguido, a convicção do tribunal resultou das declarações prestadas em audiência face à não comparência do arguido em audiência de julgamento não foi possível ao tribunal apurar tais factos. A prova dos antecedentes criminais alicerçou-se no Certificado do Registo Criminal do arguido junto de fls.132.
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A- Crime de condução sem habilitação legal – Crime continuado Trata-se de saber se este, ao conduzir o veículo nas diversas datas mencionadas, cometeu um só facto ilícito típico ou, ao invés, se constituiu na autoria material de um crime continuado ou 27 crimes. Na sentença ora em recurso optou-se pela qualificação dos factos como um crime continuado. Tal enquadramento não é partilhado pelo Mº Pº recorrente. Vejamos: São requisitos do crime continuado: a) realização plúrima do mesmo tipo de crime; Neste ponto estamos de acordo com o Digno Recorrente. Na verdade da matéria de facto dada como provada não resulta que o arguido ao conduzir o veículo em ocasiões distintas sem estar legalmente habilitado para tal, tenha agido no quadro de uma mesma situação externa que lhe tenha retirado a possibilidade de se comportar de outra maneira. A verificação de crime continuado não se caracteriza, na sua essência, pela homogeneidade das condutas, que apenas traduz reiteração criminosa, mas sim pela diminuição considerável da culpa. Na verdade, no caso, não existe “realização plúrima do mesmo tipo de crime”. Existindo uma resolução inicial do arguido mantida ao longo de toda a actuação conduzir veículo, existe um só crime desde o primeiro momento em que o arguido conduz o veículo sem para tal estar habilitado até à altura em que é interceptado pelas autoridades. Não se verifica um ilícito por cada km percorrido ou por cada vez que o agente sai do carro interrompe a condução e volta a conduzir, ou que conduza outro ou outros veículos . O arguido, e nunca é de mais salientar, actuou com o referido propósito inicialmente formulado e nunca abandonado de conduzir face ao contrato que tinha com a firma para a qual trabalhava. “Embora a actuação delituosa não se esgote num acto único e instantâneo e se trata de uma actuação de carácter duradouro, prolongada no tempo, sem prejuízo da unidade do crime, desde que haja uma única resolução a presidir a toda essa actuação, não existe crime continuado, mas um só crime.”( - Ac. do STJ de 8-3-84 BMJ 335-185) Nem toda separação temporal na actividade do agente importa em pluralidade de resoluções. Há diversos actos separados no tempo, que, no entanto, representam uma só resolução, embora a prática de cada um dos actos obrigue a uma certa manifestação de vontade. Ora esses actos não são mais do que descargas automáticas da resolução inicial. Exige-se uma unidade de resolução e de propósito, ou seja que o autor do facto tenha consciência de que com aquela concreta acção lesa e viola um comando jurídico que a proíbe e puna.
Deste modo do exame de toda a factualidade resulta que a actuação do arguido, tem de ser subsumida a dois crimes. Com efeito, no plano naturalístico ,ele desenvolveu uma primeira conduta que se prolonga no tempo e que só foi “cortada”, só “terminou” aquando da intercepção pelos agentes da autoridade, após o que se renovou esse desígnio. É que o crime ora em apreço é de consunção instantânea , mas só termina quando o agente é interceptado ou cesse voluntariamente essa actuação e dela têm conhecimento as autoridades que têm competência para proceder criminalmente. Trata-se, para usar a expressão de Eduardo Correia ( - Unidade e Pluralidade de Infracções , pag. 23), de um “estado antijurídico”, que ,no caso, se reparte por dois episódios .
Deste modo, embora concluindo pela existência de dois crimes, que não na forma continuada conforme decisão da 1ª instância, entendemos mostrarem-se adequadas as penas aplicadas.
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Nestes termos se decide: Julgar por não provido o recurso da sentença, considerando-se que o arguido cometeu dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs1 e 2, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro, em conjugação com o artigo 121º, este do Código da Estrada (CE), matendo-se as penas aplicadas. # Sem tributação. # (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.) # # Coimbra, 2009-10-04 ______________________________________
______________________________________ (João Trindade)
_______________________________________ (Cacilda Sena)
_______________________________________ (Barreto do Carmo)
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