Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
193/11.1TBANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CLÁUSULA PENAL
ACORDO
RECUSA DE DEPOIMENTO
PROCESSO PENAL
NULIDADE
Data do Acordão: 11/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 134º, Nº 1 DO CÓDIGO PROCESSO PENAL; 280º DO C. CIV. .
Sumário: 1 - A faculdade de recusa de depoimento, prevista no art.134º, nº1 do CPP, não pode ser objecto de negociação, nomeadamente de recusa antecipada, fora das condições legais do seu exercício.

2 - É nula, por violação do art. 280º do CC, uma cláusula inserida no âmbito de um acordo extra-judicial sobre a divisão de bens que ex-cônjuges celebraram, na qual convencionaram que a ex-mulher e o filho do casal se obrigaram a não prestar declarações no julgamento de um processo-crime pendente, em que o ex-marido é arguido, e cujo incumprimento estaria sujeito a uma determinada cláusula penal.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- O Autor – M…instaurou (21/05/2011) na Comarca de Ansião, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – F… e E..

         Alegou, em resumo:

O Autor e a Ré F… foram casados entre si, mas divorciaram-se, sendo o Réu E… filho de ambos.

         Autor e Réus outorgaram, em 28 de Julho de 2010, um “Acordo/Declaração“ (cf. doc. de fls.22 e segs.), no qual, além do mais, partilham os bens comuns do Autor e da Ré F…, convencionando, para o caso de incumprimento, uma cláusula penal no valor de € 50.000,00.

         Em 9 de Dezembro de 2010 procederam ao aditamento a esse acordo/declaração (cf. doc. de fls. 59 a 63), no qual estipularam uma cláusula (18ª) em que os Réus se obrigaram “a não prestar quaisquer declarações no processo crime – comum/singular nº 10/10.0GAANS do Tribunal de Ansião, cujo julgamento se encontra designado para o próximo dia 13 do corrente mês de Dezembro ou em qualquer outro que intervenham e o 1º declarante seja arguido”.

         Sucede que os Réus prestaram efectivamente declarações no âmbito desse processo, no qual o Autor (arguido) veio a ser condenado, e porque violaram o acordo estabelecido, reclama o funcionamento da cláusula penal.

         Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe, a título de cláusula penal, a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros desde a citação.

         Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:

         O Réu E… (fls. 114 e segs.) excepcionou a incompetência territorial do tribunal, a nulidade formal do acordo, a nulidade da cláusula 18ª do aditamento, bem como o carácter excessivo do montante da cláusula penal.

         A Ré F… (fls. 140 e segs.) excepcionou a nulidade da cláusula 18ª do aditamento, por violação de lei imperativa.

         Replicou o Autor (fls. 131 e segs. e 146 e segs.).

         1.2. - No saneador (fls. 163 e segs.) julgou-se improcedente a excepção da incompetência territorial, afirmando-se a validade e regularidade da instância.

         Conhecendo-se mérito, decidiu-se:

a). - Declarar a nulidade da cláusula 18ª aposta no documento denominado de Aditamento Acordo/Declaração e da cláusula 15ª aposta no documento denominado de Acordo/Declaração, no que com aquela contende, ambos descritos nos artigos 4) e 5) da matéria assente;

b). - Absolver os Réus do pedido.

1.3. - Inconformado, o Autor recorreu de apelação (fls. 180 e segs.), com as seguintes conclusões:

Não houve contra-alegações


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O objecto do recurso

A questão submetida a recurso, delimitada pelas respectivas conclusões, consiste em saber da (in)validade (nulidade) das cláusulas 18ª aposta no documento denominado de Aditamento Acordo/Declaração e 15ª inserida no documento denominado de Acordo/Declaração, no que com aquela contende, por violação do art. 280º do CC., o que pressupõe indagar se a faculdade de recusa de depoimento, prevista no art.134º, nº1 do CPP, pode ou não  ser objecto de negociação, nomeadamente de recusa antecipada.

2.2. – Os factos provados

...

2.3. – O mérito do recurso:

2.3.1. - A questão colocada no recurso contende, no essencial, com a (in)validade das cláusulas 15ª do acordo e 18ª do aditamento, podendo, por simplificação, reconduzir-se, em termos gerais, ao seguinte quesito - A faculdade de recusa de depoimento (prevista no art.134º, nº1 do CPP ) pode ser objecto de negociação entre as partes?

A sentença recorrida, depois de haver qualificado correctamente o estipulado na cláusula 15ª como uma cláusula penal (art. 810º, nº1 do CC), ao discorrer sobre a validade das cláusulas (15ª e 18ª) concluiu pela nulidade (art.280º, nº 2 CC), por violação de interesses de ordem pública, com base nos seguintes tópicos argumentativos:

a). A faculdade de recusa do depoimento, consentida pelo art.134º, nº1 do CPP, “é um direito manifestamente pessoal, intransmissível, indisponível e irrenunciável a priori, sendo que a advertência da existência dessa faculdade é realizada, sob pena de nulidade, na pessoa do depoente, no momento imediatamente que precede o depoimento”;

b). As condições apostas no acordo são atentórias dos princípios da liberdade de depoimento, o da descoberta da verdade material e da realização da justiça, e limitam o princípio constitucional da garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art.20º CRP);

c). A imposição contratual da recusa em depor “contraria e coarcta qualquer sentimento de justiça que só a reposição da verdade, ou da verdade dos depoentes, representa”.

Em contrapartida, objecta o Autor/Apelante com o princípio da liberdade contratual e que a finalidade do acordo era a pacificação com a resolução extrajudicial de todos os processos.

2.3.2. - A teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais (autonomia privada, força obrigatória -pacta sunt servanda - e relatividade dos efeitos ), segundo a concepção tradicional, historicamente situada, por se imporem novos princípios, designados “ princípios sociais contratuais” (princípios da função social do contrato, da boa fé objectiva e da justiça contratual) que visam adequar os contratos aos valores éticos-jurídicos do Estado de Direito Democrático, com a chamada “socialização do direito civil”.

Daqui decorre que o contrato não pode ser mais concebido pelo primado individualista da utilidade para os contraentes, mas no sentido social de utilidade para a comunidade e portanto a necessidade de perspectivar o contrato no seu contexto social vinculante, além do mais, projectado na “ordem pública“.

Por isso, não obstante o princípio da autonomia e liberdade contratual se apresentar como estruturante do direito privado, a verdade é que o próprio direito positivo, no que especificamente respeita à liberdade contratual de celebração e conformação, é suficientemente explícito ao estatuir a sua relevância “dentro dos limites da lei“ (cf. arts. 398º, nº1 e 405º, nº1 do CC).

Os limites legais da conformação do objecto negocial (conteúdo da prestação) estão fixados no art. 280º do CC, em que a prestação tem de ser física e legalmente possível, lícita, determinada ou determinável, não pode contrariar a ordem pública e os bons costumes.

Por ordem pública “deve entender-se o conjunto dos princípios fundamentais imanentes ao ordenamento jurídico e formando as traves-mestras em que se alicerça a ordem económica e social“, assumindo uma função limitadora da vontade contratual, e a qual “não só pode ser induzida de um conjunto de normas ou quadros normativos que organizam as instituições jurídicas e de certos valores fundamentais com assento constitucional (…), como pode ser a expressão da lógica intrínseca de uma instituição, ou ainda da ideia de “ razoabilidade” (…) no sentido de que o direito se recusa a dar cobertura ao exercício de uma discricionariedade manifestamente irrazoável (proibição do excesso)” - Baptista Machado, João Baptista Machado, Obra Dispersa, vol. I, pág.642 a 644.

Para Oliveira Ascensão “a ordem pública deverá representar o círculo de exigências da própria ordem jurídica, que representam limite aos negócios das partes – mesmo quando não há propriamente a ofensa a um concreto preceito da lei ou à contrariedade aos bons costumes“, funcionando, assim, como “cláusula de recurso” ou como “reserva geral da própria ordem jurídica” (Teoria Geral, vol.III, pág.356).

O art.134º do CPP (inserido sistematicamente em sede da prova testemunhal) ao conferir a faculdade de recusa a depor a determinados parentes e afins do arguido e a quem tiver sido cônjuge dele, estabelece uma derrogação do dever geral que impende sobre as testemunhas, o dever de depor com verdade, sob pena de responsabilidade criminal (cf. arts.132º, nº 1, d) CPP e 360º, nº 2 CP).

Com este direito de recusa (“ direito ao silêncio”) pretende-se, em síntese, evitar o “conflito de consciência” e proteger “as relações de confiança, essenciais à instituição familiar” (cf., por ex., Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág.76 e segs.), estando em causa o direito fundamental à tutela da instituição familiar e protecção da dignidade ou de liberdade de conformação da personalidade da testemunha (arts. 26º, nº1 e 67º, nº1 CRP).

Como se afirma no Ac do TC nº 154/09 de 25/3/2009, “o fundamento último da legitimidade da recusa a depor por parte das pessoas indicadas no nº1 do art.134º do CPP, situa-se no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de desenvolvimento dos seus membros (nº1 do art. 67º da CRP), cuja importância supera o interesse da punição dos culpados (…)” tratando-se “de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no nº1 do art. 67º da Constituição e outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no art. 26º, nº1 da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (…)”, para concluir que a recusa pode impor-se mesmo que a testemunha seja indicada pelo arguido, sem que a norma do art.134º, nº1, assim interpretada, viole o direito de defesa do art. 32º, nº1 da CRP.

Muito embora não esteja sujeito à ponderação concreta entre o interesse da recusa e o primado da descoberta da verdade (como por exemplo em caso de segredo profissional - art.135º CPP), e, nesta medida, se possa afirmar que ele é “estabelecido de forma abstracta e potestativa” (cf., por ex., Ac RE de 3/6/2008, proc. nº 1991/07, em www dgsi.pt) trata-se, no entanto, como se justificou na sentença, de “um direito pessoal, intransmissível, indisponível e irrenunciável a priori”.

Na verdade, a lei (art.134º, nº 2 do CPP) postula as condições de exercício do direito, já que a recusa é a depor na qualidade de testemunha, apenas pode ser declarada perante a entidade competente para receber o depoimento e a recusa só é validade após a respectiva advertência.

Daí o entendimento de que o art.134º, nº 2 do CPP consagra uma verdadeira proibição de prova, pois a omissão da advertência legal configura uma autêntica proibição de prova e a consequente proibição de valoração (cf., por ex., Costa Andrade, loc. cit., pág. 203).

A este propósito, refere-se no citado Ac RE de 3/6/2008 – “A omissão da advertência prevista no art. 134º, nº 2 CPP inutiliza a liberdade de depor conferida pelo legislador à testemunha parente ou afim, uma vez que a regra geral é a da obrigação de depor. A importância da advertência da faculdade de recusa a depor para evitar o depoimento abusivo é, pois, tanto maior quanto a testemunha encontra-se num contexto em que a obrigação de responder (e de responder com verdade) resulta claramente da lei (cfr. art. 132º, nº 1, b) e d) CPP).

Assim, a omissão da advertência por parte do tribunal (no que aqui importa) aproxima-se mesmo da perturbação da liberdade de vontade da testemunha pela utilização de meios enganosos, absolutamente proibida pelo art. 126º, nºs 1 e 2 do CPP (...)”.

E o exame da legalidade ou ilegalidade da prova é ainda uma exigência do direito a um processo equitativo (art. 32º CRP e art. 6º CEDU) - cf. Ireneu Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, pág.135.

Ora, se o direito de recusa só pode ser exercido após a advertência legal e perante a entidade competente, ou seja, se a sua validade está dependente dessa advertência formal e processualmente adquirida, com vista a uma liberdade de escolha esclarecida, então é manifesto que não pode ser objecto de negociação prévia, nomeadamente, de renúncia antecipada.

Contra a ordem pública estão as cláusulas ditas “amordaçantes” - aquelas que limitam desmesuradamente (excessiva e irrazoavelmente) a liberdade pessoal ou económica de uma das partes, contendem com a “liberdade de consciência” das pessoas ou sujeitam estas a sacrifícios de todo irrazoáveis (injustificados) ou inexigíveis ou a vinculações de todo incompatíveis com a vontade racional (cf. Baptista Machado, loc.cit., pág. 644 ).

A cláusula 18ª do aditamento/acordo ao convencionar extra-processualmente sobre direito de recusa a depor, e, portanto, com renúncia antecipada às condições de exercício desse direito por parte dos Réus, pode, de certo modo, ser concebida como uma “cláusula amordaçante”, porque limitadora da liberdade pessoal da escolha de depor ou não, ou seja, liberdade de consciência e de auto-determinação, cujo exercício só é juridicamente admissível após advertência e perante entidade competente (autoridade judiciária).

Conclui-se, por conseguinte, pela nulidade das cláusulas, dada a violação do art. 280º, nº 2 do CC, conforme se decidiu muito doutamente na sentença.

2.4. - Síntese Conclusiva:

1.- A faculdade de recusa de depoimento, prevista no art.134º, nº1 do CPP, não pode ser objecto de negociação, nomeadamente de recusa antecipada, fora das condições legais do seu exercício.

2.- É nula, por violação do art. 280º do CC, uma cláusula inserida no âmbito de um acordo extra-judicial sobre a divisão de bens que ex-cônjuges celebraram, na qual convencionaram que a ex-mulher e o filho do casal se obrigaram a não prestar declarações no julgamento de um processo-crime pendente, em que o ex-marido é arguido, e cujo incumprimento estaria sujeito a uma determinada cláusula penal.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:

1)

         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

         Condenar o Apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário (fls. 20 e 21).

        


 Jorge Arcanjo (Relator)

 Teles Pereira

Manuel Capelo