Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
934/07.1TBFND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
UNIÃO DE CONTRATOS
OBRIGAÇÃO DE ENTREGA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.428, 874, 879, 882 CC, DL Nº 359/91 DE 21/9, DL Nº 101/2000 DE 2/6, DL Nº 133/2009 DE 2/6
Sumário: 1. – Os requisitos previstos no art. 12º/2 do Dec.-Lei 359/91, não têm a ver com a oponibilidade das excepções do comprador ao financiador, mas sim com a questão da responsabilidade subsidiária do vendedor perante o comprador (uma atribuição adicional decorrente daquela norma, adicional porque o comprador não a teria se se estivesse perante uma compra e venda a prestações).

2. - A admissibilidade da excepção de não cumprimento, até ao novo regime do crédito ao consumo (do Dec.-Lei 133/2009) resulta da aplicação das regras gerais.

3. - O comprador pode opôr ao financiador o não cumprimento pelo vendedor da obrigação de entrega de documentos, sempre que esta obrigação esteja ligada por um nexo sinalagmático com a obrigação de reembolso do financiamento.

Decisão Texto Integral:

              Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              O B (…), SA, requereu a execução de uma livrança contra A (…) e M (…), signatários da mesma.

              Os executados deduziram oposição, alegando, em síntese, que a livrança dada à execução foi entregue como garantia de um contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouro. Assim, os executados negociaram com a Auto (…), Lda, a aquisição de um veículo automóvel, tendo-lhes sido proposta a celebração de um crédito ao consumo para pagamento do veículo. Foi a vendedora a tratar da negociação e aprovação da operação de crédito junto do exequente/financiador, limitando-se os executados a assinar um formulário já redigido. Para garantia de cumprimento do contrato de financiamento, o financiador exigiu uma caução, a reserva de propriedade do veículo a seu favor e a livrança em branco dada à execução. A vendedora informou os executados que seria o financiador a efectuar o averbamento da propriedade e a remeter os docu-mentos do veículo, assim que estivessem disponíveis. Porém, passados me-ses, os documentos ainda não tinham chegado e, por isso, em Dezembro de 2004, os executados não puderam apresentar o veículo à inspecção perió-dica e tiveram de cessar a utilização do veículo. A 17/10/2005, o veículo foi apreendido, uma vez que tinha reserva de propriedade a favor da S (…), SA, facto desconhecido dos executados. Por tais razões, os executados suspenderam o pagamento das prestações mensais até que lhes fossem entregues os documentos do veículo. Concluíram pedindo a extinção da instância executiva com o reconhecimento da excepção de não cumprimento.

              Recebida a oposição, o financiador contestou alegando ter efectuado o pagamento do veículo à vendedora a pedido dos executados, que já tinham o veículo na sua posse. Cabia aos executados determinar a existência ou não de ónus ou encargos sobre o veículo, desconhecendo o fi-nanciador esse facto. Apenas em 2006, os executados deram conhecimento ao financiador que ainda não possuíam a documentação do veículo e que o mesmo estaria a ser objecto de medida cautelar, sendo certo que o financia-dor lhes comunicou a resolução do contrato por carta de 16/06/2005. Concluiu pela improcedência da oposição.

              (Até aqui utilizou-se, no essencial, o relatório da sentença recorrida)

              Depois do julgamento foi julgada improcedente a oposição.

              Os executados recorrem desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que julgue procedente a oposição com a consequente extinção da execução, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (em síntese):
         a) o quesito 3 devia ter tido uma resposta de ‘provado’ e não de provado com a restrição de se excluir a referência ao parceiro financeiro;
         b) a exigência da exclusividade e de um acordo prévio prevista no art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91, de 21/09 (= RCC) devia ter sido interpretada restritivamente, de modo a não impedir a oponibilidade das excepções do comprador ao financiador da compra;
         c) seja como for, como era ao financiador que incumbia proceder à entrega dos documentos aos compradores, estes podiam opôr-lhe a excepção de não cumprimento dessa obri-gação.

              O financiador contra-alegou no sentido da confirmação da sentença.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se os executados/compradores podiam excepcionar o não cumprimento da obrigação da entrega dos documentos contra o exequente/financiador.

                                                                 *  

              Factos provados (os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob números vêm da resposta aos quesitos):
         A) Os executados negociaram com a Auto (…), a aquisição de um veículo automóvel usado, Suzuki Vitara, com a matrícula 82-57-QT.
         B) Entre os executados e a exequente (= (…)) foi celebrado, em 22/03/2002, o contrato de financiamento nº 149308 junto a fls. 13 e 43 e segs dos autos.
         C) Nos termos acordados no contrato B) foi concedido aos executados um financiamento de 17.956,72€, amortizável em 72 prestações mensais e sucessivas de 366,03€ cada vencendo-se a 1ª prestação em 15/02/2002, e as seguintes no dia 15 de cada mês.
         D) Para garantia e bom cumprimento do referido crédito, os executados subscreveram em branco a livrança, que foi dada à exe-cução nos autos principais, autorizando o exequente a preenchê-la livremente, designadamente, quanto à data da emissão, montante em dívida, data de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente ao valor da dívida vencida e não paga, acrescida dos juros até à data fixada para o respectivo vencimento e respecti-vo imposto de selo.
         E) O exequente entregou directamente à Auto (…) o montante financiado aos executados.
         F) O exequente preencheu a referida livrança pelo valor de 14.754,11€.
         1 e 2. Na ocasião mencionada em A), o vendedor propôs aos executados a celebração de um contrato de crédito ao consumo para pagamento do mencionado veículo, tendo afirmado que tinha uma parceria com o exequente e que conseguiria, com facilidade, que a operação fosse aprovada.
         3. A Auto (…) negociou com o seu parceiro financeiro a concessão do mencionado crédito [na resposta aos quesitos escreve-se “exequente” em vez de “seu parceiro financeiro” – a alteração decorre da procedência do recurso quanto a esta questão, como se verá mais à frente].
         4. Aprovada a operação de crédito, tratou de toda a documen-tação e apresentou o formulário do contrato, devidamente preen-chido, para que os executados o assinassem.
         5. Tal contrato foi assinado na mesma data que o contrato de compra e venda do veículo automóvel.
         6 a 8. Depois de celebrados os contratos, a Auto (…) informou os executados que seria o exequente quem faria o averba-mento da propriedade do veículo e que iria remeter os documentos do veículo assim que estivessem disponíveis, uma vez que havia também que proceder ao averbamento da reserva de propriedade, o que levaria algum tempo.
         9. Para que os executados pudessem circular com o veículo, a Auto (…) foi emitindo guias de circulação.
         10. A partir de determinada data começou a dizer aos execu-tados que o atraso nos documentos se devia a inércia por parte do exequente.
         11 a 13. Quando o veículo tinha de ser submetido à inspecção periódica, os executados não tinham ainda os documentos do mesmo veículo, pelo que não puderam efectuar a inspecção, tendo deixado de utilizar o veículo.
         14. Em 17/10/2005 foi apreendido aos executados o mencio-nado veículo.
         15 e 16. O veículo tinha reserva de propriedade a favor da S (…), o que os executados desconheciam.
         17. O exequente entregou o montante financiado aos executa-dos à vendedora a pedido dos primeiros.
         18 e 19. Em Junho de 2005, das 72 prestações mensais do contrato referido em B) e C), apenas tinham sido pagas 27, e muitas delas não foram pagas na respectiva data.
         20. O valor aposto pelo exequente na livrança, junta aos autos principais, corresponde às mensalidades vencidas e não cobradas, juros contratuais e moratórios respectivos, portes, encargos, impos-tos, seguros, mensalidades vincendas e cláusula penal de 4%.
         21. Em 16/06/2005, o exequente enviou aos executados uma carta registada, com aviso de recepção, a resolver o contrato, a qual se mostra junta a fls. 47 dos autos.
         22. Comunicando-lhes ainda que havia efectuado o preenchi-mento da livrança pelo valor de 14.754,11€ e fixado o vencimento para 30/06/2005.
         23. Só depois da recepção dessa carta, comunicaram os exe-cutados à exequente que ainda não possuíam a documentação do veículo.


I

Recurso quanto aos factos

conclusão a)


              (…)

              A resposta ao quesito deve pois passar a ser de provado, sem restrições.


II

Recurso quanto ao direito

Conclusão b)

Das razões da sentença


              A sentença depois de dizer que entre os executados e a Auto (…) tinha sido celebrado um contrato de compra e venda  (art. 874º do Código Civil) e depois de considerar que, para além das obrigações principais decorrentes desse contrato (art. 879º do CC: a obrigação de entregar a coisa, e a obrigação de pagar o preço) existem outras com carácter acessório, assumindo especial relevo no caso a obrigação de entrega dos documentos relativos à coisa ou direito (art. 882º/2 do CC), que se justifica pela ideia básica de colocar o comprador em condições de fruir plenamente o seu direito” (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 4ª ed, Coimbra Editora, 1997, p. 173), conclui que em relação à falta de cumprimento desta obrigação é possível, dada a sua particular relevância nos contratos de compra e venda de veículos automóveis, opôr a excepção de não cumprimento do contrato (art. 428 do CC).

              Depois diz que no caso dos autos a vendedora não cumpriu tal obrigação, ou seja, os documentos nunca chegaram a ser entregues aos executados, o que determinou a impossibilidade de continuação do uso do veículo, por não ser possível submeter o mesmo à inspecção periódica e por entretanto ter sido apreendido, mas entende que não é possível aos executados oporem a excepção de não cumprimento do contrato, por um lado, porque em relação à vendedora eles já cumpriram a obrigação do pagamento do preço e, por outro lado, porque em relação ao financiador ou ao contrato de crédito ao consumo, não se verificam os dois requisitos exigidos para o efeito pelo art. 12º/2 do à data vigente RCC, com as alterações que lhe haviam sido introduzidas pelo Dec. Lei 101/2000, de 02/06 (acordo prévio de exclusividade e obtenção do crédito no âmbito desse acordo).

              Invoca neste sentido três acórdãos do STJ que serão referidos abaixo.


*

Da obrigação de entrega dos documentos


              Não está em causa, nos autos, a qualificação “dos contratos” nem que a falta de entrega dos documentos, no caso, equivale à falta de cumpri-mento da obrigação da entrega do bem, podendo por isso legitimar, contra o vendedor, a excepção de não cumprimento “do contrato”.

              Reforce-se apenas esta questão: para os executados poderem circular com o veículo tinham que ter os documentos do mesmo (arts. 5º/1a), 2 e 3, 9º e 25º/1, do Dec. Lei 54/75, de 12/02, 78º/1 e 2 do Código da Estrada, 11º/3 e 28º do Decreto 55/75, de 12/02, e 7º do Código do Registo Predial, nas redacções em vigor à data dos factos). Assim sendo, a vendedora estava obrigada a uma dada conduta como acessória à obrigação da entrega do veículo: o dever acessório de que fala o acórdão do STJ de 23/3/2006, publicado na CJ.STJ.2006, tomo I, págs. 150/152.

              Ora, “não tendo a ré entregue os documentos do veículo, violou a sua obrigação de entrega da coisa objecto do contrato de compra e venda pois, como refere [Pedro de Albuquerque], tratando-se de uma obrigação complexa, compreendendo a entrega da coisa propriamente dita (no caso o veículo) e os documentos, faltando entregar qualquer destas realidades, falta-se ao cumprimento da obrigação (Direito das Obrigações, vol. III, [sob coordenação de Menezes Cordeiro], p. 33)” (ac. do TRE de 23/2/2006, com o nº. 135/05-2 na base de dados do ITIJ – todas as referências deste género são sempre à base de dados do ITIJ). No mesmo sentido Carlos Ferreira de Almeida (em Contratos II, 2011, 2ª edição, Almedina, pág. 123), coloca a eventual obrigação de entrega de documentos no mesmo plano da obrigação da entrega do objecto em conformidade com o contrato; e Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho (Operação complexa de “crédito ao consumo” e excepção de não cumprimento do contrato, Cadernos de Direito Privado, nº. 28, Outubro/Dezembro de 2009, págs. 65/66, sob b)), fala de uma prestação acessória e explica que “o incumprimento da mesma acaba por ter um peso considerável no plano da satisfação dos interesses globais do seu credor: como é sabido, e é, aliás, afirmado no aresto aqui anotado [ac. do TRC de 03/06/2008, 39/07.5TBFVN.C1], a posse da documentação do veículo é normalmente obrigatória, sendo mesmo condição de circulação do veículo”.


*

Do pagamento do preço


              O primeiro argumento da sentença contra o uso da excepção não convence, por ser puramente formal e, verdade seja, a própria sentença não lhe dá grande relevo: não se pode dizer que os executados já pagaram o preço (à vendedora) e por isso não podem opor a excepção, quando os executados estão a ser demandados precisamente por não terem “pago” (embora ao financiador e embora o que esteja em dívida não seja formalmente o preço mas o reembolso do financiamento).

              Para além disso, se a sentença entende, seguindo os acórdãos do STJ citados, que os executados poderiam opor a excepção se estivessem preenchidos os dois requisitos que exige (previstos no art. 12º/2 do RCC: acordo prévio, exclusividade), que nada têm a ver com esse pagamento, então não pode deixar de entender que o pagamento efectuado não é obstáculo ao exercício da excepção.

                                                                 *


Da oponibilidade da excepção do não cumprimento do contrato, segundo as regras gerais no entender da doutrina…

              Assim, o fundamento relevante para a inoponibilidade da excepção, defendida pela sentença recorrida, é apenas a previsão normativa do art. 12º/2 do RCC e é contra este fundamento que, por várias razões, os executados põem em causa a decisão recorrida.

              Antes de se entrar na apreciação destas razões diga-se o seguinte. Se não houvesse nenhuma norma que obstasse ao exercício da excepção, as regras gerais imporiam a admissibilidade da mesma.

              É o que resulta daquilo que se disse contra o argumento formal da sentença. A aparente contradição das afirmações de que os executados pagaram o preço mas estão a ser demandados por não “o” terem pago, resulta do facto de em face dos executados não se encontrar apenas a contraparte da venda efectuada.

              José João Abrantes, A excepção de não cumprimento do contrato no direito civil português, Conceito e fundamento, 1986, Almedina, explica que:
         “[…] Se a excepção não pudesse ser feita valer contra terceiros, a referida protecção seria frustrada, em numerosas hipóteses (desde logo, na de o outro contraente, por exemplo, ceder o seu crédito) […].
         […]
         Como escreve Cassin, tratando-se de um efeito do próprio contrato bilateral, a exceptio é “oponível a todos aqueles que, munidos ou não de um direito próprio, penetram na relação sinalagmática” […]”

              Pedro Romano Martinez, no seu já antigo Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina,1994, págs. 466-467, expunha assim a situação prática e a solução para ela (é um estudo do juiz Nuno Miguel Pereira Ribeiro Coelho - O consumidor e a tutela do consumo no âmbito do crédito ao consumo. Algumas questões, RMP 103 -, que lembra esta obra):
         “Relativamente à união de contratos, como, contrariamente ao que se passa em matéria de contratos mistos, cada negócio jurídico mantém a sua autonomia, os preceitos especiais do cumprimento defeituoso só encontram aplicação no que respeita ao contrato que regulam. Os problemas levantam-se, porém, quando o recurso a tais normas se pode repercutir na execução do outro negócio jurídico.
         Estas situações são habituais no domínio da compra e venda financiada […]
         Considerando que não há qualquer relação entre a compra e venda e o mútuo por meio do qual o comprador paga o preço, a prestação da coisa defeituosa não é oponível ao mutuante. Mas tal solução é fonte de injustiças, porquanto limita os direitos do com-prador em caso de cumprimento imperfeito; muito frequentemente, o preço é pago ao vendedor pelo mutuante; se as garantias edilícias não forem oponíveis a este último, o adquirente não poderia, designadamente, usar a excepção de não cumprimento.
         Na falta de intervenção legislativa, como a que se verificou em França e na Alemanha, deve entender-se que há uma coligação entre os contratos de compra e venda e de mútuo quando se verificar que eles estão relacionados na prossecução do mesmo fim, com conhecimento de todas as partes, tratando-se, por conseguinte, de uma união de contratos necessária. Esta unidade existirá, por exemplo, se o mutuante paga directamente o preço ao vendedor, ou se […] é  próprio alienante que promove a obtenção do crédito.
         Verifica a existência de uma união de contratos, os defeitos da coisa vendida são indirectamente oponíveis ao mutuante. Assim, […] sendo feitas valer qualquer uma das pretensões de cum-primento, o comprador mantém a possibilidade de excepcionar o pagamento da sua prestação, notificando o mutuante no sentido de não saldar o preço.”

              Calvão da Silva em anotação a um acórdão do STJ, publicada na RLJ nºs. 3911 e 3912, 2000, pág. 90, defende que (é o ac. do STJ de Dez2006, citado abaixo, que lembra esta anotação):
         “A aplicação da exceptio inadimpleti contractus na união ou coligação de contratos não pode oferecer dúvida série e legítima, em respeito à vontade última das partes traduzida no programa económico unitário realizado através de uma pluralidade de negó-cios jurídicos.
         No fundo, a defendida aplicação da exceptio não passa de expressão ou afloramento da reconhecida repercussão de efeitos entre os negócios coligados: o incumprimento de um contrato […] pode validamente ser excepcionado pela outra parte […] para legitimamente recusar ou suspender o pagamento de certas rendas no [outro] contrato e assim paralisar ou travar a resolução de [um outro] contrato.
         A interdependência e correspectividade das prestações emergentes de contratos distintos, mas coligados ou unidos, torna aplicável a regra inadimpleti non est adimplendum, porque e na medida em que as partes contraentes, no uso da autonomia privada, quiseram ligar as relações entre si, em função umas das outras (coligação voluntária, teleológica e funcional […]).”

              Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias (Sobre o conceito e a extensão do sinalagma, Estudos em Honra do Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão Almedina, 2008, Vol. I, pág. 399; este estudo também está disponível em http://muriasjuridico.no.sapo.pt/wSinalagmaFinal.pdf) derivam a possibilidade do exercício da excepção pura e simplesmente do facto de existir, no caso, um sinalagma trilateral:
         “No sinalagma trilateral mais simples, ou mais perfeito, três intervenientes fazem atribuições jurídicas de tal modo interdependentes entre si que cada uma delas se encontra intrinsecamente limitada ao sucesso de uma outra atribuição a cargo de parte diversa da beneficiária da primeira. O sinalagma bilateral corresponde a dois do ut des recíprocos e em que coincidem rigorosamente aquele a quem se «dá» e aquele de quem se pretende «receber», mesmo que esta prestação seja dirigida a terceiro. Neste sinalagma trilateral há três do ut des não recíprocos e cada uma das partes «dá» à outra se a terceira, por seu turno, lhe «der», e para que lhe «dê».
         Os remédios sinalagmáticos têm aqui uma aplicação adaptada. Supondo uma relação puramente obrigacional, o não cumprimento por uma das partes dará, em regra, ao respectivo credor a possibilidade de, verificados os competentes requisitos, usar esses remédios contra a terceira parte, de quem ele é devedor e relativamente à prestação por ele devida. Acresce que o exercício desses meios de defesa terá, em princípio, um efeito de cascata,  i.e., legitimará a terceira parte a exercer um meio de defesa idêntico no que respeita à sua vinculação.
         Estando A interessado em que B lhe limpe regularmente a casa durante um ano, pretendendo C receber explicações de inglês de A durante um ano e, finalmente, querendo B que C tome conta da sua filha enquanto B trabalha, também durante um ano, A, B e C podem convencionar uma «troca» triangular. Se posteriormente A faltar ao acordado e se recusar definitivamente a dar lições particulares a C, C poderá, por via resolutiva, pôr termo definitivamente à obrigação que tinha para com B, e B, finalmente, por já não ter direito aos serviços de C, poderá deixar de limpar a casa de A.
         Oferece-nos um exemplo de um negócio com sinalagma trilateral, com inegável interesse prático na economia actual, a compra e venda ou prestação de serviços com financiamento por terceiro sempre que a ligação sinalagmática resulte das declarações das partes.”

              Na posição destes autores, não se está pois perante contratos autó-nomos, nem perante uma união de contratos. Está-se antes perante um ne-gócio com sinalagama trilateral: um fornecimento de bens com financia-mento por terceiro. Ou seja, aquilo a que Carlos Ferreira de Almeida, obra citada, pág. 38, chamaria um contrato plurilateral (no caso trilateral) de troca.

              Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho (na anotação citada, pág. 62) explica:
         “não pode o consumidor ver-se privado de um direito – justamente o de uso da exceptio – que teria no quadro de uma comum venda a prestações, tanto mais que o mutuante vem apenas substituir-se ao vendedor na função de financiamento que caberia a este se fosse celebrada uma venda a prestações.”

              E, na nota 6 deste comentário, observa:
         “[O] art. 591 do CC prevê justamente uma hipótese com alguma analogia com aquela que aqui se nos depara: a de terceiro emprestar dinheiro ao devedor, permitindo a este efectuar o cumprimento da sua obrigação, e dando-se, por conseguinte, a sub-rogação do terceiro na titularidade do crédito (apesar, repare-se, de se tratar de um pagamento realizado não por terceiro, mas pelo próprio devedor). Dando-se pois, aqui, a sub-rogação nos direitos do credor, parece que o devedor  deverá manter os meios de defesa que podia opor ao credor inicial – e entre eles certamente a exceptio -, sob pena de o terceiro adquirir um direito mais forte que o do seu antecessor, contrariando a regra “nemo plus juris in alium transfere potest quam ipse habet”. É verdade que se discute esta manutenção dos meios de defesa em face do credor sub-rogado, dado o facto de o art. 594 não efectuar qualquer remissão para o art. 585 do CC (v., sobre o ponto, L. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, Coimbra, 2008, pág. 45) – mas parece que, tendo o “cessionário” intervindo directamente na operação negocial, e sabendo ele que o crédito que adquire se reporta à compra e venda financiada e se expõe, portanto, aos respectivos riscos de inexecução, não haveria qualquer razão que impedisse a aplicação, a este caso, do mecanis-mo do art. 585. Solução que, de resto, se acha em conformidade com a regra, estabelecida no art. 431 do CC, de oponibilidade da exceptio a terceiros.”

              Paulo Duarte, num estudo publicado por volta de 2007 [A Posição Jurídica do Consumidor na Compra e Venda Financiada: Confronto entre o Regime em Vigor (RJCC) e o Anteprojecto do Código do Consumidor (AntpCCONS.), nos estudos de Direito do Consumidor – 7/2005] entende que a falta, no ordenamento jurídico nacional de uma norma que, em geral, quanto à compra e venda financiada, regule o problema da repercutabilidade no mútuo das excepções oriundas do contrato de compra e venda representa uma verdadeira lacuna normativa que poderá ser col-matada através da extensão à compra e venda financiada, por via do argumentum a majore ad minus, dos princípios do direito cambiário que permitem desvios às regras da inoponibilidade de excepções ao portador do título, em particular no que diz respeito aos efeitos da “relação de colaboração planificada” entre o terceiro portador do título e o seu transmitente” (págs. 403 e 404).

No entanto, como decorre da posição de Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias “não é forçoso considerar-se que existe uma lacuna, dada a extrema variedade de configurações do sinalagma trilateral. Pelo menos, não nos parece haver lacuna exclusiva do direito do consumo” (obra citada, nota 38).

              Assim sendo, vemos que todos estes autores admitem, de uma forma ou de outra, o uso, pelo comprador, contra o financiador, da excepção de não cumprimento do contrato, sem necessidade de fazer apelo à regra do art. 12º/2 do RCC. Ela decorreria da aplicação das regras gerais ou da aplicação analógica de regras que regulam situações semelhantes.

                                                                 *


[Da protecção do consumidor]

              Se tudo isto é assim quanto aos contratos civis em geral, logo fica o começo de uma dúvida de que um regime jurídico de protecção ao consu-midor – como lembra o ac. do STJ de 2007 citado abaixo, “o DL 359/91, diploma que transpôs para a nossa ordem jurídica duas Directivas comunitárias [, teve como] confessado objectivo […] o de no domínio do crédito ao consumo estabelecer normas que garantam adequada protecção dos direitos dos consumidores, assim cumprindo o objectivo estabelecido, quer no art. 129º-A do Tratado da União Europeia, quer no art. 81º, h), da nossa Lei Fundamental, que fixa como uma das “incumbências prioritárias do Estado”, justamente, “garantir a defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores” – possa ter uma norma que tire este direito precisamente àquele que se destina a proteger.

              Aliás, como lembra Paulo Duarte (artigo citado, págs. 396/397, nota 28), o princípio da proibição de enfraquecimento da posição jurídica do consumidor, uma criação jurisprudencial alemã antes de haver normas legais que regulassem a questão, tem como ideia nuclear que “o desmem-bramento de uma operação economicamente unitária em dois contratos jurídico-formalmente distintos não deve colocar o consumidor em pior situ-ação do que estaria se o crédito fosse directamente concedido pelo vendedor no quadro de um contrato de compra e venda a prestações”.

              É o princípio referido acima por Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, que, em última instância, poderia ser utilizado na defesa da posição contrária à da sentença recorrida.

                                                                 *

                                              … e da jurisprudência

              Vários acórdãos dos tribunais assumem isto mesmo e, por exemplo, o ac. do TRL de 23/02/2006 (10021/2005-.8) considera possível o uso da excepção para além do mais com recurso às regras gerais:
         “É o que se pode concluir face ao estatuído no nº 1 do art. 428 do CC, pois, na concreta situação dos autos, a mesma deve ser configurada como se um só contrato (trilateral) houvesse. Assim, neste complexo quadro jurídico, é inegável que o financiamento efectuado pelo banco apelado só se justifica e assume razão de ser na medida em que há efectiva aquisição do bem financiado. Não havendo entrega do bem, em desconformidade com uma das “componentes” contratuais, deixa de se justificar o conjunto de obrigações resultantes do contrato de mútuo, tornando-as absurdas, iníquas e injustificáveis face ao próprio senso comum.”

              Vários outros acórdãos das várias relações seguem, na prática, o mesmo entendimento, como se verá à frente.

                                                                 *


Notas avulsas

              Por fim, para já, diga-se ainda que:

              i) O anteprojecto do código do consumidor, com a autoridade doutrinária que lhe é reconhecida, prevê expressamente a possibilidade do exercício da excepção do comprador contra o financiador, no seu art. 307, sem qualquer dependência de outros requisitos que não o de existir uma coligação de contratos: existindo esta, diz o art., “o consumidor tem o direito de recusar ou suspender o reembolso da quantia mutuada ou efectivamente utilizada sempre que se apoie em qualquer excepção relativa ao contrato de aquisição […] que o legitimaria a, do mesmo modo, recusar ou suspender o pagamento do preço ao fornecedor”. E, como nota Paulo Duarte (nota 21 das págs. 390/391): a “coligação de contratos” que é recortada nesta disposição do antpCCons é uma hipótese absolutamente objectiva, que não envolve qualquer elemento ou requisito volitivo, nem nenhuma espécie de “vontade coligante” dos sujeitos envolvidos.

              ii) O actual regime jurídico do crédito ao consumo (do Dec. Lei 133/2009, de 02/06) segue, no essencial, esta mesma regra. É o que está previsto no art. 18/3a) do Dec. Lei: No caso de incumprimento ou de des-conformidade no cumprimento do contrato de compra e venda […] coliga-do com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor, não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exacto cum-primento do contrato, pode interpelar o credor para exercer qualquer uma das seguintes pretensões: a excepção de não cumprimento do contrato […].” Ou seja, de novo, substancialmente, um único requisito, o da coliga-ção, que tem, como se viu, um sentido absolutamente objectivo.

              iii) Quem actualmente tem a posição assumida pela sentença recor-rida, e ainda exige a verificação daqueles requisitos que dela decorrem, reconhece – expressa ou implicitamente (quando diz que se está a resolver a questão com o direito constituído, como quem diz: não com aquele que seria desejável; caso do ac. do STJ de 04/2007; ou quando se diz, como nos acs. do STJ de 11/2008 e de 01/2010, “considere-se ou não questionável a exclusividade aqui exigida”) - a injustiça da situação, mas diz que nada pode fazer, sem fazer qualquer referência a todas as vias de solução acabadas de expôr. Ora, que sentido tem falar de uma solução jurídica concreta injusta, lamentando-a, se nem sequer se afastam as inúmeras vias de solução existentes em alternativa?

                                                                 *

                                               Do art. 12º/2 do RCC

              Posto isto…

              A sentença recorrida, seguindo três acórdãos do STJ, vem defender que é o art. 12º/2 do RCC que permite o uso da excepção, pois que só essa norma é que afastaria o princípio da relatividade dos contratos (eles só valem entre as partes que o celebraram…), mas que apenas o permite se se verificarem dois requisitos cumulativos.

              A norma em causa (do art. 12º/2) tem o seguinte teor:
         “O consumidor pode demandar o credor em caso de incum-primento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vende-dor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
         a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
         b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior.”

              Antes de ver, qual a fundamentação da sentença recorrida quanto a isto, veja-se o que diz a doutrina quanto a esta norma:

                                                                 *


Da inaplicabilidade do art. 12º/2 à questão da oponibilidade das excepções, segundo a doutrina

               Paulo Duarte, artigo citado, diz que o art. 12º/2 nada tem a ver com o problema da repercutabilidade das excepções do contrato de compra e venda no contrato de mútuo. O art. 12º/2 só tem a ver com a questão da responsabilidade subsidiária do financiador pelo incumprimento do contrato de compra e venda, atribuindo um direito adicional ao comprador, nas condições exigentes nela previstas (e são exigentes precisamente porque atribuem um direito adicional) (págs. 398 a 403).

              E lembra que havia uma norma na Directiva 87/102/CEE, Directiva que o RCC visou transferir para o direito interno que, dela sim, decorria ex-pressamente o regime de tal questão, que era o art. 11º/1 da Directiva (págs. 395 a 398).

              Dizia este art. 11º/1 que a existência de um contrato de crédito não influenciará de maneira alguma os direitos do consumidor contra o forne-cedor dos bens […] adquiridos ao abrigo desse contrato, nos casos em que os bens e serviços não sejam fornecidos ou de qualquer modo não estejam em conformidade com o contrato relativo ao seu financiamento” (pág. 395).

              Desta norma decorria pois a consagração legal expressa do prin-cípio, referido acima, da proibição de enfraquecimento da posição jurídica do consumidor, que, como também acima se viu, permite a Pereira Coelho defender  a possibilidade de uso da excepção contra o financiador.

              Assim, existiam duas normas para resolver duas questões distintas: o art. 11º/1 da Directiva resolvia a questão da oponibilidade da excepção e o art. 11º/2 resolvia a questão da responsabilidade subsidiária do financiador. A primeira não foi transposta. A segunda foi transposta para o art. 12º/2 do RCC. Assim sendo, não faz qualquer sentido pretender ver no art. 12º/2 do RCC a resolução da questão que era resolvida pelo art. 11º/1 da Directiva, mas apenas a resolução da questão que era resolvida pelo art. 11º/2 da Di-rectiva, a da responsabilidade subsidiária do financiador e não a da oponibi-lidade de excepções.

              A posição deste autor é apoiada pela estudo dos dois outros profes-sores já referidos, Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, que dizem (págs. 400 a 402):
         “O sinalagma trilateral não está, de modo algum, confinado à prévia celebração de um acordo de exclusividade entre financiador e fornecedor exigida pelo art. 12.º/2 do DL 359/91 de 21/09 (Regi-me Jurídico do Crédito ao Consumo, adiante RCC). O sinalagma trilateral, como o sinalagma propriamente dito, faz parte do conteúdo das declarações negociais, pelo que não depende nem é posto em causa por convenções estranhas a uma das partes desse sinalagma, como é o caso do acordo de exclusividade entre finan-ciador e vendedor relativamente ao comprador.
         Embora uma leitura superficial pudesse induzir à conclusão oposta, o citado art. 12.º/2 do RCC não é uma consagração do sina-lagma trilateral. Por outras palavras, não estatui a dependência en-tre a prestação devida pelo comprador ao financiador e o seu direito à entrega de uma coisa conforme ao contrato de venda. Os termos da admissibilidade de uma recusa (temporária ou definitiva) de cumprimento do comprador ao financiador com fundamento numa perturbação da compra e venda não integram o horizonte regulativo do preceito. O art. 12.º/2 do RCC limita-se a consagrar a respon-sabilidade subsidiária do financiador pela satisfação de direitos que assistam ao comprador em razão do não cumprimento, lato sensu, da compra e venda. A exigência de uma cláusula de exclusividade entre financiador e fornecedor, bem como o requisito da subsidia-riedade da actuação contra o financiador só valem na solução dessa específica questão.
          Aprofundemos a justificação da inaplicabilidade do art. 12.º/2 do RCC às sequelas do sinalagma trilateral. Já se vê que, estando em causa problemas jurídicos tão distintos, não podem ser aglutinados numa disposição que não os separe (o art. 12.º/2 do RCC), que delimite de forma unitária o seu âmbito de aplicação e estabeleça, sem excepção, o requisito da subsidiariedade de uma acção contra o financiador. Na esteira de uma separação tríplice dos problemas jurídicos colocados pelo não cumprimento, embora sem estar exactamente de acordo com essa repartição tripartida, dir-se-á que estamos perante perguntas inconfundíveis. De um lado, está em causa saber se pode ser autorizada uma atitude «defensiva» do comprador perante o financiador com base numa perturbação da atribuição que lhe é (ou era) devida nos termos da compra e venda celebrada: o comprador invoca o não cumprimento da venda para suspender temporária ou definitivamente o pagamento das prestações devidas ao financiador. Aqui, o postulado de  não piorar a posição do comprador financiado relativamente à do comprador a prestações vai constituir simultaneamente o fundamento e o critério da resposta a este proble-ma. De outro lado, está em causa uma actuação «agressiva» do com-prador, que pretende exigir ao financiador a satisfação de pretensões, maxime, indemnizatórias decorrentes do contrato de compra e venda. Como, porém, o exercício de semelhantes direitos representa um avantajamento da posição do comprador financiado relativamente à do comprador a prestações, só há que autorizá-lo no universo limitado de casos em que tal tratamento mais favorável se justifique. A inaplica-bilidade do art. 12.º/2 do RCC ao primeiro problema é, de resto, confirmada pelo art. 11.º da Directiva 87/102/CEE de 22 de Dezembro de 86: ainda que de forma não inteiramente clara, os dois problemas surgem devidamente apartados nos dois primeiros números deste artigo da Directiva. O 12.º/2 do RCC limitou-se a decalcar o n.º 2 do art. 11.º da Directiva, e o n.º 1 não chegou a ser transposto. De modo análogo, os arts. 307.º e 308.º do Anteprojecto do Código do Consu-midor também estabelecem as devidas distinções. O art. 307.º trata da suspensão ou recusa de reembolso da quantia mutuada ou utilizada, a qual é autorizada sempre que haja uma unidade económica entre contrato de crédito e o contrato de fornecimento do bem ou serviço (definida no art. 304.º do mesmo anteprojecto) e sempre que o com-prador se apoie numa excepção que o legitimaria a recusar ou suspen-der o pagamento do preço ao fornecedor. O art. 308.º, por seu turno, regula a responsabilidade subsidiária do financiador relativamente à satisfação de direitos que ao comprador assistam em virtude do não cumprimento do contrato de fornecimento, o que é autorizado apenas quando exista um acordo prévio de exclusividade entre fornecedor e financiador.”

              E logo adiantam estes autores:
         “Não estando regulado no art. 12.º/2 do RCC o problema da recusa de cumprimento do comprador perante o financiador com fundamento no não cumprimento, lato sensu, da compra e venda, deixam de fazer sentido as tentativas de interpretar amplamente a exigência de relação de exclusividade que nele se faz, bem como a adaptação do requisito da subsidiariedade àquelas situações.” (nota 39 da pág. 401)

              Esta interpretação destas normas não deixa dúvidas e, assim sendo, a questão da admissibilidade da excepção do não cumprimento não depende do art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91, mas apenas das regras gerais relativas ao sinalagma existente entre os três contratantes.

                                                                 *

                                                  Os acórdãos do STJ

              No entanto, não é esse o entendimento dos acórdãos citados pela sentença recorrida.

              Dizem então os acórdãos do STJ em causa:

              Ac. do STJ de 24/04/2007 (07A685):
         “II. A relação de trilateralidade consagrada no nº 2 do art. 12º do Dec.-Lei nº 359/91, de 21/09, quanto aos efeitos do incumprimento contratual do vendedor confere ao consumidor a faculdade de accionar o financiador, ou de, quando demandado, alegar a excepção de incumprimento, fazendo-o repercutir no con-trato de financiamento. III. Mas para isso a lei exige a verificação em concreto de duas condições: 1ª) a existência de um acordo pré-vio entre o credor e o vendedor – acordo dito de exclusividade – em virtude do qual este se obriga a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão do crédito necessário à aquisição dos bens que ele, vendedor, fornece; 2ª) e a obtenção do crédito no âmbito desse acordo prévio de exclusividade. Se não se verificarem estes dois requisitos, o credor não responde pelo incumprimento do vendedor”.

              O ac. invoca o acórdão do STJ de 05/12/2006 (06A2879), acórdão este, de 2006, que cita, em abono da interpretação perfilhada, Meneses Leitão, Direito das Obri-gações, I, 200, e Gravato de Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo. Efeitos para o Financiador do Incumprimento pelo Vendedor, 95, 253 e 415; este acórdão de 2007 diz que também Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 188 e sgs, faz uma esclarecedora resenha de direito comparado, dando conta da actual situação no quadro da União Europeia, e mostrando que a nossa legislação, no aspecto aqui considerado, não difere substancialmente da dos restantes países da União, designa-damente O Reino Unido, a França e a Alemanha (mas este acórdão de 2007 não cita quaisquer passagens que esclareçam de que efectivas soluções este autor está a falar).

              Apesar do sumário deste acórdão de 2007 também referir a questão da oponibilidade da excepção de não cumprimento, nele não estava em causa o exercício da excepção mas sim a pretensão dos réus relacionadas com o pedido de resolução da compra e venda por incumprimento da chamada (vendedora) e a anulação do mútuo, em ambos os casos com a consequência da restituição das quantias pagas a uma e a outro, prontificando-se o réu a entregar à chamada o veículo adquirido.

              O ac. também invoca o do STJ de 02/11/2004, na CJ2004STJ, III, pág. 104. Neste, também o que estava em causa não era a excepção de não cumprimento, mas sim a pretensão de restituição do valor pago. Neste acórdão não se invoca qualquer doutrina ou jurisprudência.

              Ac. do STJ de 14/02/2008 (08B074):
         “Estamos perante uma união de contratos, em que existe entre estes um nexo funcional que influi na respectiva disciplina, que cria entre eles uma relação de interdependência bilateral ou unilateral, em que um deles pode funcionar como condição, contra-prestação, base negocial do outro, ou outra forma de dependência criada por cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de motivação que afectam um deles ou ambos”.

              No caso deste acórdão, o comprador quer que se declare a nulidade da compra e, por consequência, a do financiamento. O ac. apenas cita um dos trabalhos de Paulo Duarte (publicado na revista “Sub Júdice”, n.º24, de Janeiro /Março de 2003, intitulado “A sensibilidade do mútuo às excepções do contrato de aquisição na compra e venda, no quadro do regime jurídico do consumidor”) para descrever juridicamente a operação negocial em causa. Depois exige a verificação dos requisitos do art. 12º/2, embora aluda apenas a um deles, quando se refere à exigência de que financiamento tenha sido concluído no contexto de uma colaboração planificada entre o mutuante e o vendedor (acordo prévio) sem qualquer referência à exclusividade.

              Ac do STJ de 20/10/2009 (1202/07.4TBVCD.S1)
         “I. Nos contratos de crédito ao consumo, designadamente nos casos em que o crédito, concedido sob a forma de contrato de mútuo, pagável em prestações, se destina a financiar a aquisição de bens, para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam influenciar a operação de crédito, é neces-sário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma colaboração estreita, com carácter de exclusividade, entre o mutuante e o vendedor (art. 12º do Dec.-Lei 359/91, de 21/09). II. Tem considerado o STJ que a “exclusividade” exigida por aquele normativo deve ser entendida como integrante do acordo entre a entidade financiadora e o fornecedor do bem, pois que, de outra forma, o mutuante ficaria colocado, sem nada poder fazer, na mão do consumidor quanto à fiabilidade do vendedor, podendo impor-lhe, no limite, em quaisquer circunstâncias, o incumprimento deste, o que se não coaduna com a regra base da interpretação e segundo a qual o intérprete presumirá, para a fixação do sentido e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. III. No contrato de crédito ao consumo, a credora, entidade financiadora, responde pelo incumprimento da vendedora, perante a consumidora mutuá-ria, desde que provada a afectação do crédito ao contrato respectivo e desde que no âmbito de um prévio acordo de exclusividade e, em consequência, não estando provada a existência de um tal acordo e por incumprimento do mútuo, deve a mutuária pagar o débito. IV. Provado que a autora, compradora de um veículo automóvel, assi-nou os papéis impressos destinados à concessão do crédito nas ins-talações da vendedora, 1ª ré, e que esta deu seguimento, contac-tando e obtendo o assentimento da instituição financeira, 2ª ré, tal não significa uma vinculação a um acordo prévio entre ambas as rés, pelo que não são extensíveis à 2ª ré os efeitos da resolução do contrato de compra e venda operada pela autora ante a situação de incumprimento da 1ª ré, nada tendo a 2ª ré de restituir no âmbito do contrato de mútuo celebrado, antes podendo a autora obter da vendedora o preço que lhe foi pago com a recíproca restituição da viatura”.

              Estavam em causa pretensões de resolução e de restituição. Na fundamentação não se refere qualquer doutrina e remete-se para os acórdãos do STJ de 2007 e de Nov2008 e mais à frente para o de Dez2006 e referência que aí se faz da posição de Gravato Morais.

              No mesmo sentido dos três acórdãos citadas pela sentença recorrida, podiam ainda invocar-se os acórdãos do STJ:

              de 13/11/2008 (07B27224):
         “4. Não estando provada a exclusividade exigida pelo nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 351/91, o eventual incumprimento do vendedor não é oponível ao financiador.”

              Estavam em causa pretensões relacionadas com a revogação da compra e venda relativamente ao financiamento. O ac. do STJ pressupõe que o art. 12º/2 rege também a questão da oponibilidade das excepções ao financiador, sem justificar, e remete depois para os acs. do STJ de 2006 e 2007.

              e o de 07/01/2010 (08B3798):
         “4. Para que o consumidor possa opor ao financiador o in-cumprimento do fornecedor do serviço, é necessária a existência de um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusi-vamente pelo mesmo credor e que o crédito em concreto tenha sido obtido pelo consumidor no âmbito desse acordo.”

              No caso estavam em causa pretensões de nulidade, resolução e restituição. O ac. resolve a questão simplesmente com remessa para as posições assumidas no ac. do STJ de 2007 (que por sua vez tinha remetido, no essencial, para o de 2006) e no de Nov/2008.


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O acórdão do STJ de 05/12/2006 (06A2879)

         “I. No contrato de crédito ao consumo, e em caso de não en-trega pelo vendedor ao consumidor do bem adquirido, assiste a este a faculdade de suspender o pagamento ao financiador das presta-ções do crédito e de resolver o respectivo contrato.”

              No caso deste acórdão do STJ houve suspensão do pagamento, mas a pretensão dos réus compradores é também a de resolução do financiamento com restituição e indemnização. Este acórdão do STJ confirma o ac. do TRL de 2006, referido abaixo, que reconhece aos réus compradores os direitos à resolução e restituição contra o financiador. O ac. do STJ fá-lo com base no art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91, cujos requisitos considera verificados, com recurso à prova indiciária.

              Vê-se que a referência à obra de Menezes Leitão tem só a ver com a qualifica-ção do contrato. A referência que faz a Gravato Morais (inclusive ao artigo por este publicado na SI nºs. 286/288, Julho-Dezembro de 2000, págs. 375/411) permite ver que este autor defende, de facto, que o art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91, tem a ver com as duas questões já referidas: a oponibilidade das excepções e a responsabilidade subsidiária do financiador e que também ele sustenta o recurso à prova indiciária.

              É este, por fim, o acórdão do STJ que faz a referência à anotação de Calvão da Silva citada acima.

                                                                  *

              A via sugerida pela fundamentação deste acórdão de Dez2006 - ou seja, invocar, com apoio da posição defendida por Gravato Morais, a prova indiciária para preenchimento dos requisitos do art. 12º/2 (mais liberal na utilização de “uma equivalente intensidade presuntiva” é o estudo de NMP Ribeiro Coelho, referido acima, págs. 92 a 96, espec. págs. 94 e 95) - tem sido aproveitada para, noutros acórdãos, se dar procedência à pretensão dos compradores.

              Assim, por exemplo, o ac. do TRP de 31/03/2011 (1805/07.7TB VLG.P1):
         “II - De entre os requisitos exigidos pelo n.º 2 [do art. 12 do RCC], evidencia-se o acordo de cooperação entre o credor e o vendedor, o qual deve ser prévio e exclusivo. III - Segundo uns, é considerada bastante uma exclusividade de facto (no sentido de que não se exige uma estipulação contratual que imponha essa obriga-ção) e que esta pode funcionar de modo alternativo (em princípio, em favor do credor). IV - No entanto, ainda que não se adopte esta interpretação restritiva para o requisito da exclusividade, o mesmo deve ter-se por verificado quando, no local da venda, existam auto-colantes publicitários do financiador, impressos e instruções de preenchimento de acordo com as instruções daquele, bem como a inexistência de um contrato directo entre credor e consumidor.”


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Das razões pelos quais estes acórdãos não têm de ser seguidos na solução do caso dos autos


              Diga-se antes de mais que, apesar de ser inequívoco que estes acór-dãos assumem de facto a posição perfilhada pela sentença recorrida e por isso contrária à que aqui se considera correcta, a verdade é que nenhum des-tes acórdãos do STJ trata de um caso, como o dos nossos autos, em que o comprador pretenda apenas não ser obrigado a pagar enquanto os documen-tos do veículo não lhe forem entregues. O que os compradores fizeram nes-tes casos dos acórdãos do STJ foi invocar a nulidade do contrato com a pre-tensão de dela obter “vantagens” (restituição do que tinham pago). Ou seja, não um caso de “atitude defensiva”, mas de uma “atitude agressiva” (na acepção de Paulo Duarte e Maria de Lurdes Pereira/Pedro Múrias).

              Depois, como de facto em todos eles não se ponha apenas uma questão de oponibilidade de excepções mas de exercício de direitos, contra o financiador, de declaração de nulidade do contrato e de restituição de prestações pagas, justificava-se como se viu acima, a invocação das exigên-cias do art. 12º/2 do RCC.

              Por outro lado, se bem se vir, na parte em que a razão de decidir destes acórdãos pode ser aproveitada, mal, para a questão da simples (porque desacompanhada da pretensão de exercício de outros direitos) oponibilidade das excepções, toda a fundamentação deles acórdãos se ba-seia, de uma forma ou de outra, apenas numa interpretação que se considera errada (como ficou esclarecido naqueles estudos de Paulo Duarte, Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias) da norma do art. 12º/2 do RCC, que tem por base a posição defendida por Gravato Morais (principalmente, segundo as citações que são feitas, no seu União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, 54 e ss., e Contratos de Crédito ao Consumo, 229 e ss., especialmente, 248 e ss. [no mesmo sentido, veja-se o artigo do mesmo autor, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo: Situação Actual e Novos Rumos, nos Estudos de Direito do Consumidor, 7/2005, págs. 279 e segs]).

              Note-se, entretanto, que o acórdão do STJ com mais extensa fun-damentação, que é o de Dez2006, no essencial a base da posição sustentada por todos os outros, decidiu, contrariamente a todos estes, pela procedência da pretensão dos compradores...

              Por fim, todos estes acórdãos desconhecem a posição defendida por Paulo Duarte e Maria de Lurdes Pereira/Pedro Múrias quanto ao alcance e razão de ser da norma do art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91. Desconhecem-na e por isso não a afastam nem dão razões para a afastar.

              Assim sendo, não se vêem razões que possam ser aduzidas a favor da tese defendida por aqueles acórdãos do STJ para aplicação ao caso dos autos (em que, repete-se, está em causa apenas a oponibilidade da excepção de não cumprimento), e por isso, as exigências do art. 12º/2 do RCC não são de aplicar quanto à possibilidade de invocar a recusa de pagar a presta-ção ao financiador, enquanto o vendedor não cumprir a sua obrigação de entregar os documentos do veículo. 


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Das interpretações restritivas de tal interpretação do art. 12 do RCC


              Mesmo aqueles que viam (usa-se a forma verbal do passado, para realçar que são posições no essencial assumidas antes da publicação dos estudos de Paulo Duarte, Maria de Lurdes Pereira, Pedro Múrias e FMB Pereira Coelho), no art. 12º/2 do RCC o regime da oponibilidade das excepções do compra-dor ao financiador, no caso das vendas para consumo financiadas, procura-vam, tendo em conta a injustiça material a que conduz tal interpretação, vias de resolver a questão a favor da oponibilidade das excepções.

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Da oponibilidade mesmo sem exclusividade

              Assim, parte da jurisprudência tem feito uma interpretação restri-tiva de tal norma, admitindo a oponibilidade, mesmo sem exclusividade:

              É o caso do acórdão citado pelos recorrentes, do TRL de 23/02/2006 (10021/2005-.8), já citado acima, que entendeu (no contexto das razões invocadas, já citadas) que:
         “Embora se reconheça que o advérbio “exclusivamente”, constante na alínea “a)” d[o art. 12º/2], numa interpretação literal, possa suscitar algumas reservas (embora se não compreenda bem a sua razão de ser…), entendemos que a “ratio” e os fins da norma – e do regime legal em que se insere (trata-se afinal, da defesa do consumidor…) - justificam plenamente, no caso em apreço, uma interpretação restritiva, valorando-se, assim, de forma especial, os elementos sistemático e teleológico, pelo que a norma é aplicável “mesmo quando não se verifique a ‘exclusividade’ aí prevista, sem-pre que, no caso concreto, procedam as mesmas razões e interesses que estão na origem do consagrado na letra da lei.”

              Nos outros pontos do sumário diz-se:
         “I – Na interpretação do disposto no nº 2 do art. 12º do [RCC…], deve tomar-se em especial consideração que está em causa a protecção ao consumidor, pelo que se deve valorar de forma especial a ratio da norma, valorizando-se especialmente, nessa interpretação, os elementos sistemático e teleológico.
         II – Não é aceitável, mesmo à luz do senso comum, que um regime legal especial de protecção ao consumidor conduza, na sua aplicação concreta, a um regime menos favorável do que aquele que resultaria da aplicação das normas gerais, no mesmo âmbito.”

              Esta posição foi seguida pelo, também invocado pelos recorrentes, ac. do TRC de 22/01/2008 (2695/06.2YXLSB.C1):
         “A questão está em definir os exactos contornos dos aludidos requisitos ou pressupostos, o que passa pela correcta interpretação do referido nº 2 do art. 12º, nomeadamente da alínea a) e, dentro desta, do advérbio «exclusivamente».
         A letra da lei inculca que o acordo prévio entre o credor e o vendedor terá de revestir-se de exclusividade, em termos de só aquele credor conceder financiamento aos clientes daquele vende-dor para aquisição de bens fornecidos por este último.
         Porque tal interpretação se apresenta como menos favorável ao consumidor e, por isso, algo desajustada ao propósito do RCC, vem alguma jurisprudência ensaiando interpretações que, com recurso ao elemento teleológico do preceito, obstem a essa aparente contradição.”

                                                                 *


Da oponibilidade no caso da colaboração referida no nº. 1 do art. 11 do RCC

              Outra parte da jurisprudência, entende que “o termo “exclusiva-mente” constante da alínea a) do nº 2 do mencionado artigo, nada tem a ver com o quadro das relações comerciais entre o mutuante e o fornecedor, referenciando apenas a vinculação do financiamento à aquisição de bens a fornecedor determinado; por isso, para que o comprador possa opor as excepções ao financiador, basta-se com a prova da colaboração referida no nº. 1 do art. 12º do Dec. Lei 359/91.

              Assim, os acórdãos da Relação de Guimarães de 24/05/2007 (766/07) e de 0/09/2007 (1612/07-2), cuja fundamentação é a seguinte:
         “Já atrás assinalámos a incongruência da leitura que conexio-na a aplicabilidade do regime legal à mencionada exclusividade: na prática equivaleria a tornar letra morta a tutela tão generosamente prodigalizada pelo legislador.
         Parece-nos que a exclusividade pressuposta na norma não se reporta ao quadro negocial estabelecido entre a sociedade finan-ceira e o fornecedor mas antes à vinculação do crédito a um deter-minado contrato de compra e venda que é característica desta espé-cie de crédito conhecido na gíria comercial como crédito “afec-tado”.
         Ou seja, em execução do acordo preexistente entre a socieda-de financiadora e o fornecedor este, em proposta produzida por aquela, fez inscrever as condições do contrato de mútuo preten-didas pelo seu cliente [os compradores] submetendo-a à sua acei-tação e recebendo directamente o produto do financiamento.
         No contrato foi consignado o nome do estabelecimento forne-cedor (e identificado até o vendedor e a autorização a viabilizar o crédito) e foi identificado o objecto a cujo pagamento o crédito foi concedido.
         Por conseguinte, estava vedado ao consumidor utilizar o valor financiado na compra de outro veículo ou mesmo do veículo nele identificado a qualquer outro fornecedor […].
         É esta afectação exclusiva do produto financiado ao negócio de compra e venda identificado no contrato de mútuo que justifica o regime legal plasmado no artigo 12º invocado pelas partes.”

                                                                 *

                                 Da relativização da exclusividade

              Seguindo esta fundamentação, mas entendendo que o que se está a fazer é a relativizar a exigência da exclusividade e portanto a aplicar ainda o nº. 2 do art. 12, vai o ac. do TRP de 14/03/2011 (3974/08.0TBVLG-B.P1) que interpreta estes requisitos nos seguintes termos:
         “Acordo prévio entre credor e vendedor; uso desse crédito exclusivamente para aquisição de bens do vendedor pelos seus clientes; e realização do contrato no âmbito daquele acordo.”

              É também o caso do acórdão do TRE de 03/02/2010 (45/09.5TBETZ.E1):
            “No contrato de crédito ao consumo, a credora, entidade financiadora, responde pelo incumprimento da vendedora, perante a consumidora mutuária, desde que provada a afectação do crédito ao contrato respectivo.”

              É também a posição seguida no estudo de FMB Pereira Coelho já citado:
         “[…] entendemos que devia relativizar-se o alcance da exigência legal: a prática ensina-nos que não é normal a existência de tais acordos, pelo menos do lado da entidade financiadora, que não se vê que autolimite as suas operações ao círculo de clientes daquele vendedor ou fornecedor; e trata-se sempre de um acordo de prova difícil ou impossível, sobretudo da parte daquele sujeito (o consumidor) sobre quem justamente recai o correspondente ónus probatório – sujeito que, afinal, é completamente estranho a tal acordo. É verdade que a dita exclusividade “acentua a colaboração entre as partes, tornando-a íntima, intensa e estável”. Simplesmen-te, o que não se percebe é em que medida a exclusividade seja necessária do ponto de vista da concessão ao consumidor do direito de demandar o financiador, que é apenas o que se acha em causa. Propendemos, pois, a crer, nesta sequência – e sob pena de nunca se verificar o pressuposto estabelecido no art. 12°/2a), do RCC e, por conseguinte, nunca poder o consumidor demandar o credor em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda -, propendemos a crer, dizíamos, que o que impor-tava era que o crédito fosse concedido aos clientes do vendedor ou fornecedor… exclusivamente para a aquisição dos bens ou serviços deste (e não para qualquer outra finalidade), e resultando esta desti-nação exclusiva, precisamente, de um acordo previamente celebra-do entre o financiador e o vendedor/fornecedor. Assim compreen-dida a exigência de exclusividade do art. 12°/2a), e embora persis-tam ainda, de alguma forma, as dificuldades probatórias a que nos referimos, ela passa já a fazer sentido do ponto de vista dos interesses aqui em presença e da peculiaridade da formação contra-tual em causa: a concessão de crédito tem (exclusivamente) aquela finalidade de financiamento, e essa destinação foi acordada previa-mente entre o financiador e o fornecedor, pelo que se dirá que a concessão de crédito “se integra”, por assim dizer, nesta compra e venda, É, pois, apenas com este limitado alcance que julgamos po-der aplicar a exigência de “exclusividade” para efeitos de atribui-ção ao comprador/mutuário do referido direito de exercício da exceptio”.

                                                                 *


Da jurisprudência das relações que segue a posição do STJ

              Entretanto, reconheça-se, parte significativa da jurisprudência das relações continua a seguir a interpretação de que não se podem dizer preenchidos os requisitos do art. 12º/2 do RCC, quando se prova que vendedor coopera com mais do que um único financiador. É o caso, apenas por exemplo, do ac. do TRP de 03/05/2011 (3477/08.2TBVNG.P1) que já refere, em nota, o estudo de Pereira Coelho, através da citação do ac. do TRP de 14/03/2011, mas contrapõe-lhe toda a doutrina em sentido contrário (apesar de apenas referir a posição doutrinária de Gravato Morais…).

                                                                 *


Da aplicação destas posições da jurisprudência ao caso dos autos

              Do que antecede resulta o seguinte: a jurisprudência na sua maior parte tem vindo a aceitar até agora, que a questão da oponibilidade das excepções está regulada no art. 12º/2 do Dec. Lei 359/91. Mas parte dela, com o apoio implícito dos acórdãos do STJ citados (pois que eles têm reme-tido para o acórdão de Dez/2006 que defende tal), serve-se de prova indiciá-ria (= tese da prova indiciária) para considerar como verificados tais requi-sitos, enquanto que outra parte faz uma interpretação restritiva da norma, quer no sentido de dispensar, na prática, um dos requisitos (= tese da dis-pensa da exclusividade), quer no sentido de os interpretar como valendo apenas nas relações do financiador com o vendedor (= teses da relatividade da exclusividade).

              Posto isto:

              O acórdão do STJ de Dez/2006 concluiu pela existência manifesta de um acordo de colaboração exclusiva entre a vendedora e o financiador, ao abrigo do qual teve lugar a concessão àqueles do crédito em causa, dos seguintes factos:

              O comprador dirigiu-se ao estabelecimento do vendedor a fim de adquirir a viatura. Nessa ocasião, o comprador assinou um documento com vista à obten-ção de crédito para a aquisição do veículo. No stand do vendedor havia autoco-lantes publicitários do financiador, colados nos vidros. O fornecedor do bem tinha em seu poder impressos do financiador, em branco, que eram preenchidos nas instalações do vendedor, por este, de acordo com as instruções fornecidas pelo financiador. Os contratos de crédito são propostos ao financiador pelo vendedor do bem, não tendo os clientes qualquer contacto directo com o financiador, na altura da formalização do contrato de crédito. Existindo, assim, um acordo prévio entre fornecedor e financiador, mediante o qual este coloca à disposição do fornecedor formulários seus de contratos de crédito, que são utilizados pelo fornecedor para financiar a aquisição de bens por si fornecidos, as seus clientes. Foi por via deste acordo entre o financiador e o fornecedor do bem, que foi atribuído o crédito ao comprador.

              A parte final que foi colocada em itálico é obviamente uma nova descrição dos outros factos. Por isso, no essencial, o que relevou para o ac. do STJ de 12/2006 para dar como provada a exclusividade e o acordo prévio foi o seguinte: o facto de os documentos do crédito, que eram formulários em branco do financiador em poder do vendedor, terem sido assinados na ocasião em que o comprador se dirigiu ao stand do vendedor com o fim de adquirir o veículo, tendo sido aí preenchidos, pelo vendedor, de acordo com as instruções fornecidas pelo financiador. A existência, no stand, de autocolantes publicitários do financiador, colados nos vidros. E o facto de os contratos de crédito serem propostos ao financiador pelo vendedor do bem, não tendo os clientes qualquer contacto directo com o financiador, na altura da formalização do contrato de crédito.

              Ora, no caso dos autos provou-se que:

              Os compradores negociaram com a vendedora a aquisição do veículo. Nessa ocasião, a vendedora propôs aos compradores a celebração de um contrato de crédito ao consumo para pagamento do veículo, tendo afirmado que tinha uma parceria com o financiador e que conseguiria, com facilidade, que a operação fosse aprovada. Foi a vendedora que negociou com o seu parceiro financeiro a concessão do mencionado crédito. Aprovada a operação de crédito, tratou de toda a documentação e apresentou o formulário do contrato, devidamente preenchido, para que os compradores o assinassem. Entre os compradores e a financiador foi celebrado o contrato de financiamento. O financiador entregou directamente à vendedora o montante financiado aos executados.

              O confronto de uma com outra situação, ajuda a perceber que, no caso do acórdão do STJ se pode dizer estar indiciada uma colaboração ex-clusiva, prévia e estável no âmbito do qual a venda foi acordada, enquanto que no caso dos autos apenas se pode dizer que está indiciado que a venda foi celebrada no âmbito de uma colaboração prévia, que, com esforço se poderia dizer estável, mas não exclusiva.

              Assim, seguindo a posição do STJ, como o fez a sentença recorrida, não se poderia dizer que estivessem verificados os requisitos do art. 12º/2 do RCC. Já se se seguirem quaisquer das outras teses, dir-se-ia que o esta-vam.


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Da procedência do recurso, embora por outras razões


              Os recorrentes entendem que se deve fazer esta interpretação restri-tiva, seguindo os acs. dos tribunais das relações de Coimbra e de Lisboa.

              Como aqui se está a defender que o art. 12º/2 nada tem a ver com a oponibilidade das excepções, que tenham a ver com a venda, do comprador ao financiador, mas com as condições de atribuição aos compradores de um direito adicional, colocando-o numa situação mais vantajosa do que aquela que teria num contrato de compra e venda a prestações, e que, sendo assim, se justificam plenamente as exigências acrescidas nele previstas, não se pode aderir a estas interpretações restritivas.

              Elas são soluções para resolver um problema que não se põe, ou que não se deveria pôr, como resulta dos ensinamentos actuais da doutrina citada.

              Acrescenta-se, no entanto, que, se fosse outro o entendimento sobre o alcance do art. 12º/2 do RCC, então seria de seguir, sem quaisquer reservas, tais interpretações restritivas, que, nesse contexto, se justificariam perfeitamente, como o demonstram os vários acórdãos que as defendem, bem como a anotação de FMB Pereira Coelho. Não faz sentido impor ao comprador, que está há mais de 8 anos à espera de ter a disponibilidade do automóvel que comprou e de que já pagou mais de 1/3 do respectivo valor, que continue a pagar, sem que antes o vendedor lhe entregue os documentos do automóvel. E é só isso que, no caso destes autos, os compradores que-rem: não pagar mais enquanto não lhes forem entregues os documentos.

              Em suma, o recurso procede, não em razão de uma interpretação restritiva dos requisitos contidos no art. 12º/2 do RCC, mas sim por se entender que não têm aplicação ao exercício da recusa em cumprir a presta-ção por não cumprimento da prestação em falta, que a ela estava ligada, pela vontade dos declarantes, por um óbvio nexo sinalagmático.


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Da obrigação de entrega dos documentos

Conclusão c)


              Os recorrentes aproveitam a via de fundamentação do ac. do TRC de 06/2008 que tem a ver com o facto de ser o financiador que tinha que proceder ao averbamento da propriedade do veículo em nome do compra-dores e do registo da reserva de propriedade a favor do financiador. Como era, por isso, o financiador que tinha que entregar os documentos aos com-pradores (depois de ter feito aqueles registos), a excepção poderia ser-lhe oposta pelos compradores pois que é a essa obrigação que se contrapõe à dos compradores pagarem o “preço” (ou melhor: o reembolso do capital).

              Mas esta fundamentação não pode ser usada nestes autos pois que nestes apenas ficou provado que “a vendedora informou os executados que seria o exequente quem faria o averbamento da propriedade do veículo e que iria remeter os documentos do veículo assim que estivessem disponí-veis, uma vez que havia também que proceder ao averbamento da reserva de propriedade, o que levaria algum tempo.”

              Ora, o financiador não fica vinculado por aquilo que a vendedora diz….

              Tal fundamentação não se podia, por isso, utilizar nestes autos (nem, salvo erro, se podia utilizar no caso do ac. do TRC de 06/2008, pois que aí também não se provou que o financiador se tivesse obrigado, mas apenas que o vendedor tinha informado que seria o financiador a fazê-lo… Daí que, ainda salvo erro, esse acórdão do TRC de 06/2008 não tivesse razão na fundamentação utilizada, nem a tenha, nesta parte, a anotação de FMB Pereira Coelho, que também utiliza tal facto como se estivesse provado [ou seja, dá como assente que era o financiador que estava obrigado a entregar os documentos]).      

                                                                 *


Da “inexigibilidade” da obrigação exequenda

              Visto que os compradores podem opôr – e opuseram - a excepção de não cumprimento da obrigação da entrega dos documentos ao financia-dor, a conclusão é a de que a obrigação, para já, é como se não fosse exigí-vel, o que deve acarretar a extinção desta execução [arts. 804º e 814/e) do CPC e Lebre de Freitas, A acção executiva… 5ª edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 29 (nota 2), 82-83, 93].

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              Sumário:

              I – Os requisitos previstos no art. 12º/2 do Dec.-Lei 359/91, não têm a ver com a oponibilidade das excepções do comprador ao financiador, mas sim com a questão da responsabilidade subsidiária do vendedor perante o comprador (uma atribuição adicional decorrente daquela norma, adicional porque o comprador não a teria se se estivesse perante uma compra e venda a prestações).

              II – A admissibilidade da excepção de não cumprimento, até ao novo regime do crédito ao consumo (do Dec.-Lei 133/2009) resulta da aplicação das regras gerais.

              III – O comprador pode opôr ao financiador o não cumprimento pelo vendedor da obrigação de entrega de documentos, sempre que esta obrigação esteja ligada por um nexo sinalagmático com a obrigação de reembolso do financiamento.

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              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por esta que julga procedente a oposição, com a consequência da extinção da execução.

              Custas pela exequente (quer do recurso quer da execução).

              Coimbra, 12/07/2011.

              Pedro Martins ( Relator )

              Virgílio Mateus

              António Carvalho Martins