Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
194/08.7TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MARINHO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
RECUSA A EXAME
ÓNUS DA PROVA
CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
RETROACTIVIDADE DA LEI
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.344 Nº2, 1817, 1871, 1873 CC, LEI Nº 14/2009 DE 1/ 4, ARTS.16, 18, 36, 282 CRP
Sumário: I. A ausência injustificada do pretenso pai a exame de averiguação da paternidade biológica, em termos que tornem impossível a prova da paternidade pelo Demandante, assume carácter culposo e gera a inversão do ónus da prova ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 344.º do Código Civil;

II. A aplicação retroactiva do n.º 1 do art 1817.º do Código Civil aos processos pendentes à data da entrada em vigor da redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, mas instaurados após a publicação da declaração de inconstitucionalidade vertida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 – nos termos impostos pelos art. 3.º de tal Lei –, geraria a violação do princípio da confiança, abalaria a certeza e a segurança jurídica e sempre produziria contrariedade à lei Fundamental, particularmente ao seu artigo 2.º.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO                  
P (…), com os sinais constantes dos autos, instaurou a presente acção declarativa constitutiva com processo ordinário contra A (…), neles também melhor identificado, pela qual solicitou que o Demandado fosse judicialmente reconhecido como seu pai.
Alegou, para o efeito, que:
Nasceu em 16 de Abril de 1967 das relações sexuais havidas entre sua mãe, B (…) e o ora Réu; aquela apenas com o Demandado manteve relações de trato carnal nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento;  a sua mãe só e sempre indicou o Réu como seu pai; questionado sobre a aludida paternidade, o Demandado remete-se sempre ao silêncio.
Citado, o Réu contestou sustentando a improcedência da acção e pedindo a condenação do Autor por litigância de má-fé. Em tal sede, impugnou factos, tendo negado a paternidade e a exclusividade, por parte da mãe do Demandante, das relações sexuais invocadas e alegado o carácter abusivo do pedido, formulado 23 anos após a obtenção da maioridade.
O Autor respondeu a este articulado concluindo como na petição inicial e reiterando a tese aí vertida. Apontou como estando na base do seu interesse processual em agir o direito de emanação constitucional de conhecer a identidade dos seus progenitores biológicos. Mais referiu que, porque o dever de prestar alimentos se prolonga para além da maioridade, nunca poderá ser questionada a utilidade da demanda.  
No início da audiência de discussão e julgamento, o Réu arguiu a excepção de caducidade do direito de acção do Autor em termos que viriam a ser declarados improcedentes.
Foi realizada a instrução, a discussão e o julgamento da causa tendo, depois, o Tribunal a quo proferido sentença que julgou a acção procedente e declarou o Demandante filho do Réu.
Face ao falecimento do Demandado, foram habilitados para intervir no processo, na sua posição, os seus herdeiros.
É desta sentença que vem o presente recurso interposto pelos aludidos herdeiros habilitados. Nessa sede, estes pugnaram pela declaração de caducidade da acção ou, se assim não se entendesse, pela alteração do julgamento da matéria de facto, revogação da decisão impugnada e absolvição do Réu.
Apresentaram, para o efeito, as seguintes conclusões:
 A sentença em crise aderiu ao princípio da imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, princípio que é contrário ao regime estabelecido na lei aplicável; atenta a idade do A., o direito caducou-lhe em Abril de 1987, pela lei então vigente, caducidade que se lhe aplicava quando ele propôs a acção; a nova lei (14/2009) prevê o prazo de 10 anos após a maioridade e manda aplicá-lo aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor; o acórdão 23/2006 do TC deu algum alento à tese da imprescritibilidade daquele direito de acção; porém, o legislador, em 2009, veio finalmente colocar o prazo nos seus justos limites; só se poderá falar em violação das expectativas se elas tiverem fundamento jurídico e se a previsibilidade da manutenção da posição jurídica em causa se fundamentar em valores reconhecidos no sistema; o A. não viu, com a nova lei, afectadas as expectativas, porquanto deixou caducar o direito no longínquo ano de 1987; o art. 3.° da nova lei não viola o princípio da confiança, neste caso porque não era previsível qualquer situação jurídica do A. objectivamente lesada; o princípio da confiança não é violado com a aplicação dessa norma; a procedência da excepção de caducidade é a que melhor serve a compatibilização dos interesses em jogo: os do impugnante e os do R.; a certeza e a segurança do direito exigem a fixação de um prazo para a propositura da acção; o pretenso progenitor tem o direito em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza; a segurança jurídica é elemento essencial do Estado de Direito (art. 2.° Constituição da República Portuguesa); o Tribunal Constitucional não se pronunciou pela inconstitucionalidade do art. 3.º da L. 14/2009; logo, esta norma deve aplicar-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor; o direito de acção do A. caducou e assim deve ser declarado; estão incorrectamente julgados os seguintes pontos: IV .... "íntimos entre si" (q. 3.º); V – "relações da mãe do A. com o R. durante período alargado com início em data não apurada ... " (qs. 4.º a 6.º). VI – "A mulher do R. sabia do rumor público .... " (q. 11); Resposta ao q. 13.º – deve ser dado como provado que a mãe do A., à data dos factos, tinha vários relacionamentos íntimos"; tudo como se depreende da gravação dos depoimentos, em especial das testemunhas do A.; A mãe era leviana" – (…); “Minha mãe não tinha cabeça. Era leviana" – (…); "Relacionamentos íntimos com vários homens" – (…); "A senhora tinha relacionamento com várias pessoas" – (…); as testemunhas do A. (de 2 e 3 anos de idade à data do nascimento do A.) nada podem saber do que aconteceu no período legal da concepção; nada daí se conclui no sentido de que a mãe do A. tivesse mantido relações sexuais com o R. no período referido na resposta aos q.ºs 4° a 6°; 23; também não se provou que a mulher do R. soubesse de rumor público acerca da alegada paternidade do A.; dos depoimentos das testemunhas, em especial das do A., resulta que a mãe do A., à data dos factos, tinha vários relacionamentos íntimos; devem, assim, ser alteradas as respostas aos q.os 3° a 6°, 11° e 13°, em conformidade com o que acaba de se expor; na sentença, não resulta provado o q. 7°, que constituía a causa de pedir; ao não realizar o exame, o R. não tornou a prova impossível, não se aplicando o n.º 2 do art. 344.º do CC.; o que se consignou na resposta aos qs. 4.º a 6.º não prova as relações da mãe do A. com o R. no período legal da concepção; não há motivo legal para inverter o ónus da prova, isto é, para fazer incumbir ao R. [«demonstrar»?] que não teve relações com a mãe do A. durante esse período legal; mas o R. conseguiu mesmo afastar a prova desse facto (v. resposta aos qs. 4.º a 6.º e depoimentos das testemunhas, em especial das do A.); a atitude do R. face ao exame não pode ser qualificada de "recusa com dolo directo"; nessa altura da vida, o R. não estava já munido de capacidade de entender e querer e, qual autêntica criança, reagiu mal e ninguém conseguiu levá-lo a fazer o exame hematológico; tão débil estava o R. que faleceu pouco tempo depois; a aplicação do n.º 2 do art. 519.º do CPC não deve ser no sentido de remeter para o art. 344.º-2 do CC, mas sim no sentido da livre apreciação da atitude do R. pelo Tribunal; através da prova testemunhal era possível a prova dos factos; a não realização do exame não faz concluir que isso tomou a prova impossível ao A.; o R., através da prova produzida, criou as "dúvidas sérias" de que fala o n.º 2 do art. 1871.º do CC.; logo, a sua paternidade é de afastar; mas mesmo que se considere invertido o ónus da prova, o que não se concede, provou-se a leviandade da mãe do A. e que o R. não manteve com ela relações no considerado período legal; dos factos dados como provados não se extrai que o A. é filho do R., isto é, não se presume a sua paternidade; não se provou a "posse de estado"; não se provou a existência de relações da mãe do A. com o R. no período legal da concepção; não se provou a sedução da mãe do A. pelo R. nesse período; "Data não concretamente apurada" é expressão elucidativa de que nada se apurou para a prova que interessava ao A.; incumbia ao A. provar qualquer dos factos referidos no n.º 1 do art. 1871.º do CC, o que não conseguiu; a atitude do R. face ao exame hematológico não pode qualificar-se de recusa, atento o seu estado de saúde e capacidade (v. AC. R.C de 22.1.2002, CJ 2002, TI, p. 18); não tendo havido exame, nada daí se pode extrair, nem a paternidade, nem a respectiva exclusão; não se tendo provado qualquer facto «donde» se presuma a paternidade do R., não é legalmente possível atribuir-lhe esse vínculo; o Tribunal deve aplicar o art. 3.º da L. 14/2009 e o n.º 1 do art. 1842.º do CC, na redacção dessa lei, declarando a caducidade do direito de acção do A.; o Tribunal fez errónea aplicação dos art.s 1871.º do CC, 519.º-2 do CPC e 344.º-2 do CC.
A contra-parte não apresentou resposta às alegações dos Recorrentes.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a avaliar:
1. Atenta a idade do A., o direito de investigar a paternidade caducou em Abril de 1987, pela lei então vigente, caducidade que se lhe aplicava quando propôs a acção?
2. Estão incorrectamente julgados os seguintes pontos: IV ...."íntimos entre si" (quesito 3.º); V -"relações da mãe do A. com o R. durante período alargado com início em data não apurada ..." (quesitos 4.º a 6.º). VI - "A mulher do R. sabia do rumor público ...." (quesito 11.º); Resposta ao quesito 13.°?
3. Não resulta provado o quesito 7.º sendo que, ao não realizar o exame, o R. não tornou a prova impossível, não se aplicando o n.º 2 do art. 344.º do CC.?
4.  O R., através da prova produzida, criou as "dúvidas sérias" de que fala o n.º 2 do art. 1871.º do CC.?
5. Incumbia ao A. provar qualquer dos factos referidos no n.º 1 do art. 1871.º do CC, o que não conseguiu?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
A impugnação judicial incide sobre parte da matéria de facto.
Como não se ignorará, não estamos perante proposta de realização de um segundo julgamento, com ponderação das razões de simples divergência face ao decidido mas, antes, diante de um pedido que deve ser lido como pretensão de análise da eventual existência de erros na consideração do valor dos meios probatórios colocados à disposição do Tribunal, ou seja, de apreciação da adequação técnica e sensatez da formação da convicção do órgão jurisdicional recorrido, designadamente considerando a eventual indiferença a determinados meios ou a sustentação da cristalização fáctica em elementos inidóneos para o efeito.
A conclusão no sentido da existência de tais erros só se poderá atingir quando esses meios se revelarem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente ou quando não sejam contrariados por outros de igual ou superior valor demonstrativo ou fidedignidade.
Na nova análise, deve ter-se presente que a avaliação de facto a realizar pela segunda instância deve assentar na noção de que a matéria dada como demonstrada só deverá ser alterada nos casos de patente falta de conformidade entre a mesma e os meios probatórios disponibilizados nos autos. Conforme, com acerto, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.4.2005, JTRP00037900, do qual foi relator o Sr. Juiz Desembargador Ferreira da Costa, in http://www.dgsi.pt, nesta operação deve «dar-se prevalência aos princípios da oralidade, da livre apreciação da prova e da imediação».
Não se deverá olvidar, em tal intervenção, o que ensinavam, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela e Outros in «Manual de Processo Civil», 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 657: "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".
Estas noções iluminarão as considerações que se seguem.
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(…)
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Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à restante matéria de facto, para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu.
Fundamentação de Direito
Atenta a idade do A., o direito de investigar a paternidade caducou em Abril de 1987, pela lei então vigente, caducidade que se lhe aplicava quando propôs a acção?
A presente acção foi proposta em 12 de Maio de 2008.
Por força do disposto no art. 1873.º do Código Civil, aplicava-se, então, à matéria da definição do prazo para a propositura da acção de investigação de paternidade, o disposto no n.º 1 do art. 1817.º do referenciado encadeado normativo, com o seguinte teor: «1. A acção de investigação (...) só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.»
O regime aplicável à demanda instaurada era, então, dominado e condicionado pelo decidido no seio do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, Processo n.º 885/2005, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 28, de 8 de Fevereiro de 2006, que decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do apontado preceito, «na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Este aresto chamou a atenção para a existência de dois regime antitéticos neste domínio – um assente na ideia da imprescritibilidade do direito de instaurar acções de averiguação da maternidade e da paternidade e outro (o nacional, o suíço e o francês) baseado na ideia da necessidade de balizar temporalmente a possibilidade de investigar a filiação natural por razões diversas entre as quais militariam as relativas à segurança jurídica, à garantia da eficácia probatória, à tutela de direitos individuais do investigado e ao bloqueio à «caça à fortuna». Patenteou, ainda, serem dominantes, no Direito comparado, as soluções consagradoras da regra da imprescritibilidade e constituir o regime nacional um dos mais severos ou restritivos da Europa.
Na doutrina interna, Guilherme de Oliveira, in Estabelecimento da Filiação, Almedina, Coimbra, 1979, pág. 40, patenteara, já, o possível acerto da aludida tese maioritária referindo que «o direito indisponível ao estabelecimento da maternidade (ou da paternidade), corolário dos direitos à identidade e à integridade pessoais que a lei fundamental expressamente tutela, devia ser exercível a todo o tempo».
O aresto referenciado lembrou que o percurso a realizar com vista à análise da questão da constitucionalidade devia passar pela avaliação, «numa perspectiva substancial», da aceitabilidade deste «tipo de limitação ao direito fundamental em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela sua justificação», «à luz do princípio da proporcionalidade». Recordou, ainda, que a generalidade dos argumentos motivadores da consagração do regime nacional restritivo, eventualmente válidos após o Código de Seabra, haviam perdido peso e força motivadora, dedignadamente face ao crescimento da eficácia e rigor dos exames científicos de comparação do ADN e do seu peso nas acções investigatórias, bem como perante a alteração da estrutura social e da riqueza, ao que acrescia um movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens genéticas de todos os indivíduos e da total e permanente noção da verdade biológica e da importância dos vínculos ao nível das raízes da vida.
Apenas restaria, como valor associado à teleologia do regime avaliado (já que a justificação relativa à prova havia perdido também «quase todo o valor com a eficácia e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com base em testes de ADN, que não envelhecem nunca») a segurança, id est, o interesse do pretenso progenitor «em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade», «bem como o interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai, a que se junta o argumento de que as acções de investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais (de ‘caça à herança’)».
Não faria sentido, da mesma forma, a focagem restritiva dos interesses do investigante, i.e., a atenção ao tempo da maior necessidade deste – a menoridade – já que o dever de prestação de alimentos pelos pais aos filhos se prolonga no tempo e para além da obtenção da maioridade.
O Acórdão do Tribunal Constitucional que se vem referindo e citando, porém, e apesar de toda a argumentação expendida apontando a eventual indadequação científica e social da solução nacional, não excluía a possibilidade de «o argumento da segurança» «eventualmente justificar um prazo de caducidade da investigação de paternidade».
Na realidade, o aresto não fez qualquer escolha neste âmbito, tendo chamado a tenção para o facto de o seu thema decidendum não ser a opção pela tese da imprescritibilidade ou pela oposta mas, tão só, o cotejo constitucional do «concreto prazo previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, que conduz à caducidade da acção logo a partir dos 20 anos de idade». Quanto a esta idade, chamou a atenção para o facto de o prazo suplementar entre os dezoito e os vinte anos se esgotar, normalmente, «num momento em que, por natureza, o investigante não é ainda, naturalmente, uma pessoa experiente e inteiramente madura».
Temos assim que o Tribunal veio declarar que balizar no termo do segundo ano posterior à maioridade o prazo de investigação contrariava os comandos constitucionais mas não afirmou que não devia haver qualquer prazo. Essa opção continuaria a ser tarefa do legislador até que, eventualmente, fosse chamado expressamente a avaliar a questão de saber se a existência de algum lapso temporal para o efeito atentaria contra as normas da Constituição da República Portuguesa, designadamente a que reconhecia o princípio da identidade pessoal –  n.º 1 do art. 26.º.
No que respeita à eficácia da declaração de inconstitucionalidade, o n.º 1 do artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa estatui que «1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado».
O preceito declarado inconstitucional teve manifestação inicial no n.º 1 do art. 1854.º do Código Civil na redacção do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro. O regime anterior é, pois, o do Código Civil Português aprovado pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867. Neste estava erigida uma regra de imprescritibilidade, já que o art. 37.º do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910 permitia a instauração de acção de investigação a todo o tempo (ou melhor, em vida do pretenso pai ou mãe ou dentro do ano posterior à sua morte), nos contados casos permitidos – cf. art. 130.º desse Código Civil e art. 34.º do apontado diploma, que acrescentou à situações em que existisse escrito de pai declarando expressamente a paternidade e aos de posse de estado, estupro violento e rapto as de sedução e convivência notória.
Sob um tal contexto, sempre teria que se concluir pela inexistência de prazo de propositura da acção no período entre a declaração de inconstitucionalidade e a entrada em vigor da nova norma.
Caso se entenda de forma diferente e considere que «Não pode ser assimilada a lacuna legal, a postular a aplicação daquele normativo do Código Civil, a supressão de norma legal, por via da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral» (pelas razões indicadas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.2008, documento SJ2008041704746, ibidem, entre as quais domina a convicção expressa de que «deve ser considerado um direito de personalidade e, como tal, possível de ser exercido em vida do pretenso progenitor e continuado se durante a acção morrer, correndo a acção contra os seus herdeiros, por se tratar de um direito personalíssimo, imprescritível, do filho investigante»), ainda assim, a conclusão a chegar, na parte que interessa neste momento, é a mesma: não existia limite temporal para a instauração da acção de investigação no momento da interposição desta demanda.
Era este, pois, o panorama jurídico à data da entrada da petição inicial do presente processo na secretaria judicial: a acção de investigação da paternidade não tinha o limite dos vinte anos de idade e nenhum outro lapso temporal de fonte normativa subsistia; não se podia afirmar que o Tribunal Constitucional havia acolhido a regra da imprescritibilidade mas antes e apenas, removido um prazo que lhe pareceu restritivo de princípios de emergentes da Lei Fundamental o que acabava por produzir resultados semelhantes.
Foi ante esta rarefacção que o legislador nacional decidiu intervir, o que fez através da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, pela qual repôs um prazo de propositura da demanda investigatória, mantendo o afastamento da maioria dos regimes europeus e  alargando o lapso de tempo em termos que lhe pareceu produzirem convergência com a tese de constitucionalidade exposta. Ciente do vazio existente entre 2006 e 2009, nos termos supra-descritos, tal legislador decidiu não só fixar um lapso de tempo mas também mandá-lo aplicar às acções pendentes, com vista a reduzir os efeitos negativos gerados pela rarefacção regulatória intercalar, ao nível da afirmação da tese que quis repor  – o art. 3.º da Lei indicada mandava aplicar o seu regime também aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Assim, foi conferida a seguinte redacção aos apontado número do indicado artigo 1817.º: «1 — A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação», e fixou-se que se aplicaria este comando também às acções já entradas na secretaria do tribunal à data do seu início de vigência.
Sob um tal contexto, é manifesto que não estamos perante a reiteração ou nova materialização da questão de constitucionalidade apreciada, já que o Tribunal Constitucional não disse que contrariava a Constituição a imposição de uma qualquer baliza temporal mas, apenas, a concretamente apreciada. O que temos, antes, sob ponderação é a questão relativa à validade desta declaração de aplicação retroactiva que faz incidir a nova norma sobre um tempo em que não estava proscrita a existência de um prazo mas se tinha afastado o único existente e, assim, se criava a aparência e a substância da regra da imprescritibilidade. Quem entendesse que esta aparência nunca se teria criado por o Tribunal nunca ter afastado outros prazos, sempre colheria noção de sinal oposto da atitude do legislador – já que, se algum prazo tivesse subsistido, não seria necessária a iniciativa de aplicação retroactiva com vista à homogeneização de regimes (algo frustrada nos casos da acções tramitadas e concluídas durante o período de vazio normativo).
Esta situação projecta o problema em apreço para a área da tutela da confiança do cidadão no sistema em que se move e no legislador que elege, tudo no quadro do funcionamento coerente e uniforme do denominado «Estado de Direito Democrático». Na terminologia do Supremo Tribunal de Justiça, «o principio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar» e «O principio da protecção da confiança, basilar no Estado de Direito democrático, implica um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhe são criadas, não admitindo as afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente contar (…) Há que não desvalorizar o planeamento da vida dos cidadãos, em termos de não lhe surgirem obstáculos, imprevistos e irrazoáveis, no seu dia a dia. As expectativas legitimamente fundadas, têm ínsitas um mínimo de certeza e de segurança, para que a vida possa decorrer sem sobressaltos, com confiança no papel amortecedor de situações inesperadas que o Estado de Direito deve ter» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2007, documento n.º SJ20070327007601, in http://www.dgsi.pt)
Foi, justamente, este o princípio violado pelo art. 3.º da  Lei n.º 14/2009.
Por assim ser, conclui-se que a aplicação retroactiva do n.º 1 do art. 1817.º, acima referenciado, à presente acção produziria a violação da confiança em termos que abalariam os mínimos de certeza e segurança jurídica mencionados no aresto acabado de invocar e sempre envolveriam contrariedade à lei Fundamental, particularmente ao seu artigo 2.º.
Não existe, assim, a caducidade do Direito de acção, invocada.
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O R., através da prova produzida, criou as "dúvidas sérias" de que fala o n.º 2 do art. 1871.º do CC.?
Face à matéria fáctica dada como demonstrada, particularmente à resposta positiva ao quesito 7.º e às respostas negativas aos quesitos 13.º e 16.º a 18.º, não subsistem as referenciadas dúvidas sérias.
Improcede, em consequência, esta vertente do recurso.
Incumbia ao A. provar qualquer dos factos referidos no n.º 1 do art. 1871.º do Código Civil, o que não conseguiu?
A matéria demonstrada, particularmente o respondido ao quesito 7.º da Base Instrutória, inculcam a noção de que foi feita a demonstração do preenchimento da previsão da al. e) do n.º 1 do art. 1871.º do Código Civil.
Face ao que fica dito, sumaria-se a presente decisão nos seguintes termos:
I. A ausência injustificada do pretenso pai a exame de averiguação da paternidade biológica, em termos que tornem impossível a prova da paternidade pelo Demandante, assume carácter culposo e gera a inversão do ónus da prova ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 344.º do Código Civil;
II. A aplicação retroactiva do n.º 1 do art 1817.º do Código Civil aos processos pendentes à data da entrada em vigor da redacção que lhe foi conferida pela  Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, mas instaurados após a publicação da declaração de inconstitucionalidade vertida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 – nos termos impostos pelos art. 3.º de tal Lei –, geraria a violação do princípio da confiança, abalaria a certeza e a segurança jurídica e sempre produziria contrariedade à lei Fundamental, particularmente ao seu artigo 2.º.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmamos integralmente a sentença questionada no que tange à parte decisória dela constante.
Custas pelos Recorrentes.
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Carlos Marinho ( Relator )
 Alberto Ruço
Judite Pires