Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2791/07.9TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 01/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA NAZARÉ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 21º DO D. L. Nº 149/95, DE 24/06 (ALTERADO PELO D.L. Nº 265/97, DE 2/10).
Sumário: I – De harmonia com o disposto nos artºs 10º, nº 1, al. a) e f), e 16º do D.L. nº 149/95, de 24/06, é obrigação do locatário financeiro pagar as rendas e, findo o contrato, restituir o bem locado; em caso de mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a 60 dias, ao locador é permitido resolver o contrato.

II – Se, findo o contrato por resolução, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal a tutela cautelar referida no artº 21º, nº 1, desse diploma.

III – Esta medida – entrega judicial de veículo ao locador e cancelamento do respectivo registo de locação financeira – destina-se tão só a tutelar antecipadamente o cumprimento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado derivada da extinção do contrato.

IV – Tal providência não tem que ser também requerida contra o cônjuge do requerido que assinou o contrato, pelo que não é motivo de ilegitimidade a não demanda desse cônjuge.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

I.1- «A… » instaurou em 14.6.07 (inicialmente nas varas cíveis de Lisboa) procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo nos termos do art.21º do DL nº149/95, de 24.6, contra B…, pedindo que seja decretada a entrega imediata à requerente do veículo ligeiro «Peugeot» com a matrícula 87-58-XP, e seja ordenado o cancelamento do registo do contrato de locação financeira celebrado entre as partes que impede sobre o mesmo veículo.

Alega, em síntese, que no exercício da sua actividade celebrou com o requerido um contrato de locação financeira, ao abrigo do qual se comprometeu a adquirir e a proporcionar-lhe o gozo, temporário e oneroso do veículo referenciado; em cumprimento desse contrato, a requerente adquiriu, por indicação e sob proposta do requerido, o mencionado veículo que lhe entregou pelo prazo de 84 meses e mediante o pagamento de renda; o requerido deixou de pagar a renda acordada, pelo que a requerente comunicou-lhe a resolução do contrato, sendo que, não obstante, o veículo não lhe foi restituído.

O requerido deduziu oposição, defendendo-se por impugnação e por excepção peremptória e dilatória. Quanto a esta, alega, em síntese, que tendo o contrato sido celebrado também pela mulher do requerido, a acção não foi intentada contra esta, pelo que, tratando-se de litisconsórcio passivo necessário, o réu é parte ilegítima na acção.

Mais alega que o equipamento que a requerente pretende ver restituído sofreu um acidente rodoviário que o imobilizou por completo, encontrando-se desde Abril de 2006 na oficina para reparação, o que é do conhecimento da requerente, pelo que não se verifica o requisito do periculum in mora, uma vez que o dano que se pretende evitar (a desvalorização do bem), já se encontra verificado. Em consequência, peticiona a condenação da requerente em litigância de má fé.

         I.2- Posteriormente, o requerido veio informar que a requerente havia procedido ao levantamento do veículo da oficina onde o mesmo se encontrava, no dia 4 de Março de 2008.

A requerente, em sede de audiência que teve lugar em 2.6.08, respondeu às excepções invocadas. Por despacho aí proferido, foi determinada a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de apreensão de veículo, prosseguindo os autos quanto ao pedido de cancelamento do registo do contrato de locação financeira sobre o veículo em causa.

         Inquiridas as testemunhas arroladas (fls.212), foi proferida decisão datada de 12.6.08, na qual se julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva do requerido, absolvendo-se o mesmo da instância.

         I.3- Inconformada, agravou a requerente.

         Concluiu assim, e de útil, as suas alegações:

         1ª/ No contrato de locação financeira dos autos está apenas identificado como locatário o ora recorrido, e também como locatário no registo automóvel;

         2ª/ A pretensa locatária “inventada” da decisão recorrida, não surge minimamente identificada no contrato de locação financeira, nem nos documentos juntos com a p.i., estando apenas o referido contrato bem como o auto de recepção do veículo em causa por ela assinados nos termos e para os efeitos do disposto no art.1691º/1-a) do C.C.;

         3ª/ Está provado que o recorrido incumpriu o contrato em causa, tendo o ora recorrente procedido à resolução do mesmo e comunicado tal resolução ao recorrido, pelo que se impunha que a providência requerida tivesse sido decretada.

         I.3- Contra-alegou o requerido em defesa do julgado.

         Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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         II - FUNDAMENTOS

         O objecto do recurso cinge-se a uma única questão: a de saber se, tal como se entendeu na decisão agravada, o requerido é parte ilegítima por não ter sido também demandado o seu cônjuge.

         Adiantando a nossa posição, diremos, com todo o respeito, que não se decidiu correctamente.

         Com interesse para a apreciação da questão aludida, tem-se por indiciariamente assente a seguinte factualidade, resultante dos docs. juntos pela requerente e expressamente aceites pelo requerido:

1 – Entre a requerente, «A…» e o requerido, B... e C…, foi assinado, em 10/02/2006, um escrito particular a que denominaram “Contrato de Locação Financeira Mobiliária nº747184”.

2 – Nesse cabeçalho do mencionado escrito vem identificado como locatário o requerido B....

3 – A primeira e última folhas do aludido escrito encontram-se assinadas pela requerente e pelo requerido e por C…, estes na qualidade de locatários, e as demais encontram-se rubricadas por estes.

4 – O requerido e C… assinaram o escrito particular, na qualidade de locatários, denominado “Auto de recepção da viatura”.

5 - No dito contrato (fls.10) consta logo no início, que entre o «C…» e B... “é celebrado o contrato de locação financeira mobiliária …”; mas no espaço destinado a assinatura de “O(s) Locatário(s)” surgem as assinaturas deste e do cônjuge, o mesmo ocorrendo nas “condições gerais” a fls.11-13.

6- Na certidão emitida pela C.R.Automóveis de Lisboa (fls.15) consta que a propriedade do veículo 87-58-XP está registada a favor do «C…» e que sobre o mesmo veículo encontra-se registado o encargo “locação financeira” com início em 10.2.06 e fim em 10.2.2013, constando como sujeito activo o aqui requerido.

         Vejamos, então.

         A providência cautelar solicitada de entrega judicial do veículo ao requerente e do cancelamento do respectivo registo de locação financeira, vem prevista no art.21º do DL 149/95, de 24.6, alterado pelo DL 265/97, de 2.10. Visou o legislador com esta medida cautelar, enfrentar situações de periculum in mora relacionadas com o incumprimento de obrigações de obrigações do locatário emergentes de contratos de locação financeira.

         Na situação em apreço, a requerente/locador invoca a extinção do contrato de locação tendo por objecto um bem móvel (o veículo «Peugeot»), em consequência da resolução com fundamento na falta de pagamento por parte do requerido/locatário das prestações periódicas.

         De harmonia com o disposto nos arts.10º/1, a) e f) e 16º do citado diploma, é obrigação do locatário financeiro pagar as rendas, e, findo o contrato, restituir o bem locado; em caso de mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a 60 dias, ao locador é permitido resolver o contrato.

         Se, findo o contrato por resolução, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal a tutela cautelar anunciada no já referido art.21º/1.  

         No caso, alegando que o requerido não pagou as rendas acordadas e não procedeu à restituição do veículo, a requerente solicitou que fosse ordenada a providência em causa, tendo para tanto demandado o requerido e não também o cônjuge deste.

         Considerou a 1ª instância - dando assim razão ao requerido -, que este era parte ilegítima, argumentando-se estarmos perante situação que careceria de ter na acção a representatividade inerente a todos quantos assinaram o contrato, por ser relativamente aos locatários que teria que ser reconhecida (indiciariamente) a resolução do contrato e de que decorreria não só a restituição da viatura à A., mas também o cancelamento do registo averbado.

         É verdade, como vimos, que quer o contrato de locação financeira, quer os documentos que o acompanham, estão assinados pelo requerido e cônjuge, não obstante ser ele a pessoa cujo nome figura como locatário. E é ele que aparece como sujeito activo no registo (obrigatório) do contrato na competente Conservatória.

         Mas conforme atrás se referiu, a medida cautelar proporcionada ao credor/locador pelo apontado art.21º, destina-se tão só a tutelar antecipadamente o cumprimento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado derivada da extinção do contrato.

         No caso, a tutela provisória solicitada compreendeu a entrega do veículo locado e o cancelamento do registo do contrato de locação financeira. Ora, se bem que se impusesse ao requerente a alegação de factos de onde emerge o direito a acautelar (a contrato de locação, a situação de mora no cumprimento das prestações e a recusa na restituição do veículo), a providência não tinha que ser requerida também contra o cônjuge do requerido que com ele assinou o contrato. Estando apenas em causa a entrega do veículo e o cancelamento do registo da locação financeira, sendo que neste é o requerido que surge como sujeito activo, a promoção da providência exclusivamente contra si não é motivo de ilegitimidade.

         Com efeito, não tem de existir uma necessária coincidência entre o sujeito passivo do procedimento e aquele que na relação causal figura como devedor. Conforme escreveu A. Abrantes Geraldes, do lado passivo a legitimidade deve encontrar-se no sujeito que, na versão daquele que se arroga a titularidade do direito cuja tutela antecipada se solicita, é responsável pelos actos ou omissões criadores do risco de lesão grave e dificilmente reparável ou aquele a quem é imputada a conduta cujos efeitos se pretendem prevenir.[1]

         E assim, embora necessariamente dependente de acção pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, alegando o requerente como fundamento da providência solicitada, a extinção do contrato por resolução operada com base no não pagamento pelo requerido/locatário das prestações periódicas, a par da recusa por este de restituição do veículo objecto do contrato, nada impedia que o procedimento cautelar fosse instaurado apenas contra ele, locatário faltoso.

         Ora, malgrado a sua natureza provisória, a providência cautelar contemplada no art.21º acaba por conduzir, na prática, a resultados definitivos. No caso em análise, resta tão só o cancelamento do registo da locação, já que a requerente recebeu o veículo na pendência deste procedimento. Deste modo, o que se pretende fazer valer na acção definitiva instaurada ou a instaurar de que o procedimento é instrumental, é a confirmação do direito alegado (resolução operada com base no incumprimento contratual) e o pagamento das prestações em dívida. E aqui, então, poderá sustentar-se que se torna necessário a intervenção do cônjuge, de acordo com o regime do art.28º/2, C.P.C.. Ao apôr a sua assinatura no contrato em referência, a mulher do requerido manifestou vontade de se co-obrigar na dívida contraída pelo marido, sendo indiscutível que tem interesses patrimoniais a defender. É que, de acordo como o disposto no art.1691º/1-a) do C.C., são comunicáveis “as dívidas contraídas, antes ou depois do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro”, aplicando-se a hipótese aí presente a qualquer regime de bens.

         Concluindo, pedindo-se no procedimento cautelar, que o tribunal decrete a entrega imediata do veículo ao requerente e o cancelamento do registo de locação financeira, não se reputa manifesto que o requerido, que no contrato figura como locatário e como sujeito activo no registo, seja parte ilegítima, muito embora o seu cônjuge tenha também assinado o contrato de locação.

         Entende-se, assim, que não ocorre aqui uma situação de litisconsórcio necessário a implicar a ilegitimidade passiva do demandado e a sua absolvição da instância, procedendo, portanto, os fundamentos do recurso.

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         III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho agravado, o qual será substituído por outro que fixe os factos provados e apure os pressupostos da providência requerida em ordem ao seu deferindo ou indeferimento.

         Custas pelo agravado.

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                                                                  COIMBRA,  

[1]   «Temas da reforma do processo civil», III Vol. (2ª ed.), pág.194