Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | FERREIRA DE BARROS | ||
| Descritores: | LETRA DE FAVOR | ||
| Data do Acordão: | 02/26/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | ANSIÃO | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 17º DA LULL | ||
| Sumário: | 1. Na letra de favor subjacente à obrigação cambiária assumida não se encontra uma relação jurídica fundamental, qualquer responsabilidade anterior, sendo o favor apenas a causa da obrigação cambiária. 2. O favorecente não pode opor ao portador da letra a excepção de favor, sendo esta apenas oponível a quem tiver participado na convenção extracartular de favor, ou seja, o favorecido. 3. O favor não é fazer uma assinatura, mas honrá-la, cumprindo as obrigações dela emergentes. 4. A convenção de favor não pode ser oposta nas relações mediatas mesmo que o terceiro portador conheça o favor, não podendo ser, só por esse motivo, um possuidor de má fé. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I)- RELATÓRIO A…… moveu, no Tribunal Judicial de Ansião, execução contra F….., servindo de título executivo uma letra de câmbio, no montante de € 33.500,00, sacada pelo Exequente e aceite pelo Executado. A letra foi emitida em 18.03.2003 e tinha o seu vencimento em 15.07.2003, não tendo sido paga pelo Executado. O Executado deduziu oposição à execução, alegando, em síntese, tratar-se de uma letra de favor, não titulando qualquer relação de débito entre Exequente e Executado e pedindo a condenação do Exequente como litigante de má fé. Prosseguindo os autos a sua regular tramitação, foi, por fim, julgada procedente a oposição, por inexistência da obrigação debitória fundamental, tendo sido declarada extinta a execução e condenado o Exequente como litigante de má fé. Inconformado com tal decisão, apelou o Exequente, tendo extraído da sua alegação de recurso as seguintes conclusões: 1ª-Resulta provado que o Executado assinou a letra de favor a pedido do Sr. J….., e não que tal pedido tenha sido feito ao Executado pelo Exequente; 2ª-A relação de favor, se existisse, seria entre o Executado e o J……; 3ª-O carácter de favor do aceite - o firmante de favor pode ocupar qualquer posição cambiária - só pode ser invocado por este nas relações imediatas relativamente ao favorecido e não quanto ao portador mediato, ainda que conhecedor do carácter de favor da assinatura; 4ª-Não resulta dos depoimentos das testemunhas que “J….. nunca assegurou ao Exequente que o seu débito iria ser pago pelo Executado” (resposta ao art. 12º da base instrutória), pelo que deve ser alterada a resposta àquele facto de modo a declarar-se “não provado”; 5ª-Resulta provado que o Exequente possuía um crédito real no valor da letra sobre o Sr. José Luís Godinho e que este como não tinha crédito pediu ao Executado que assinasse uma letra de depois entregou-a ao Exequente; 6ª-Na referidas circunstâncias, ao assinar a letra no lugar do aceite, como lhe pediu o devedor originário, o Executado mais não fez que assumir a dívida nela titulada (“o favor não é fazer uma assinatura, mas honrá-la”); 7ª-O Exequente estava e está convicto que o Executado é o responsável pelo pagamento. Senão para que serviria a letra? 8ª-O Exequente poderia estar erradamente convicto da justeza da sua pretensão sobre o Executado, pode até desconhecer o direito, mas apenas pretende receber o seu crédito que é real e está titulado na letra aceite pelo Executado; 9ª-Poderemeos até estar perante uma lide temerária; não agiu, porém, o Exequente com dolo ou intenção de se apropriar de algo a que não tenha direito ou com a consequência de que o Executado não tenha assumido a dívida cartular; 10ª-Só em tribunal se poderia discutir a exigibilidade do pagamento da dívida; 11ª)- Falta a prova irrefutável de que o Exequente tenha agido com dolo ou culpa grave; 12º)- Na sentença não se fez correcta interpretação do disposto nos artigos 17º da LULL e 456º do CPC, normas que, por isso, foram violadas. O Executado contra-alegou em defesa do julgado. Por acórdão desta Relação, exarado a fls. 311 a 314, foi julgada procedente a apelação, e alterada a resposta ao ponto n.º12 da base instrutória para “não provado” e revogada a decisão recorrida na parte em que condenou o Apelante/Exequente como litigante de má fé. Exequente e Executado recorreram de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo sido admitido o recurso interposto pelo Executado, como se vê do douto despacho de fls. 409 a 410. Por acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, incidindo sobre o recurso interposto pelo Exequente, foi julgada procedente a arguição de nulidade do acórdão desta Relação por omissão de pronúncia sobre o mérito da oposição à execução. Ao abrigo do n.º2 do art. 731º do CPC, foi ordenada a baixa do processo a este Tribunal a fim de ser reformado o acórdão anulado. Colhidos novos vistos, cumpre apreciar e decidir. II)- OS FACTOS Na sentença da 1ª instância foi dada por assente a seguinte factualidade: A) O exequente é portador de um documento com a palavra “letra” nele inscrita, junto a fls. 41 do processo principal, no valor de € 35.500,00, emitido em 18/03/2003, com data de vencimento em 15/07/2003, onde se diz, além do mais, “no seu vencimento, pagará V. Exªs. por esta única via de letra a nós ou à n/ ordem a quantia de trinta e três mil e quinhentos euros”, sendo que no espaço destinado ao “aceite” consta uma assinatura correspondente ao nome do embargante, F…., constando no espaço destinado ao “nome e morada do sacador”, os seguintes dizeres: “A…., Pocejal, 3105-423 Vermoil” e no espaço destinado ao “nome e morada do sacado”, os dizeres seguintes: “F……, Almofala de Baixo, 3260 Figueiró dos Vinhos” (alínea A) dos Factos Assentes); B) O executado trabalhou na sociedade “F…., Lda.” a qual tinha negociações com a sociedade “E…, Lda.” de que o exequente é sócio gerente (art. 1º da Base Instrutória); C) Porque a “F…., Lda.” não tivesse crédito no giro bancário, o gerente desta, J……, pediu ao executado que lhe aceitasse uma letra de câmbio, por mero favor, para que, através do respectivo desconto bancário, o exequente, na qualidade de sócio gerente da “E…..” obtivesse da banca o valor que pretendia, e que aquele devia a este, sendo tal facto do conhecimento do exequente (resposta ao art. 2º da Base Instrutória); D) Decorrida a data do respectivo vencimento, o gerente da “F….., Lda.”, J….., solicitou de novo, nas mesmas condições, ao executado que assinasse nova letra de câmbio, afirmando ser para reformar a anterior por passar por dificuldades financeiras para liquidar a primeira letra, sendo tal facto do conhecimento do exequente (resposta ao art. 3º da Base Instrutória); E) O executado, dada a sua relação com o gerente da “F….., Lda.”, J….., acabou por aceitar tais propostas e assinou ambas as letras (resposta ao art. 4º da Base Instrutória); F) Posteriormente, a pedido do exequente, o executado voltou a assinar uma terceira letra de câmbio, nas mesmas condições, o que fez sem que lhe tivesse sido devolvida a segunda letra referida e apenas por mero favor (art. 5º da Base Instrutória); G) O executado nunca teve com o exequente ou com a sociedade de que este é sócio gerente qualquer negócio que justificasse a emissão da letra referida em A) (art. 6º da Base Instrutória); H) Por acordo datado de 17/01/2000, o exequente prometeu vender a J….. o lote 55, sito na Urbanização do Seixal, em Leiria, pelo preço de Esc. 23.000.000$00, por conta do qual o referido J….. aceitou uma letra no valor de € 31.500,00 (art. 7º da Base Instrutória); I) J….. entretanto ficou numa grave situação económica, com dívidas avultadas e sem possibilidade de obter o desconto de letras junto dos bancos, em meados de 2002 (resposta ao art. 8º da Base Instrutória); J) Foi pelo referido em I) que o executado colocou a sua assinatura no espaço destinado ao aceite de uma letra de câmbio no valor de € 32.200,00, para titular o débito que o dito J….. tinha para com o exequente, acrescido dos encargos ocasionados com o desconto da letra que o mesmo havia aceite (resposta ao art. 9º da Base Instrutória); L) O exequente procedeu, entretanto, ao desconto dessa letra e, no seu vencimento em 15/11/2002, o executado aceitou nova letra, desta vez no valor de € 33.000,00, onde englobava o valor da letra anterior e os respectivos encargos bancários (art. 10º da Base Instrutória); M) J….. nunca assegurou ao exequente que o seu débito iria ser pago pelo executado (resposta ao art. 12º da Base Instrutória). III)- MÉRITO DO RECURSO Delimitado que é, em princípio, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), submete o Exequente/Apelante a julgamento deste Tribunal as seguintes questões: 1ª- Alteração da decisão sobre a matéria de facto; 2ª- Subsunção normativa da factualidade assente; 3ª- Litigância de má fé. III-1)- Vejamos a 1ª questão. Pugna o Apelante por resposta negativa ao ponto de facto n.º 12 da base instrutória. Tal ponto de facto reveste o seguinte teor: “O dito J…. sempre assegurou ao exequente que o seu débito iria ser pago pelo executado?” A resposta foi a seguinte: “Provado que o J…. nunca assegurou ao exequente que o seu débito iria ser pago pelo executado”- cfr. alínea M) da factualidade assente acima transcrita. Apoia-se o Recorrente no depoimento das testemunhas que arrolou (……/…./…) e ainda no depoimento das testemunhas do Oponente (…/…/..). Transcreve parte do depoimento da testemunha ….. Verifica-se ser positivo o facto vertido no n.º12 da base instrutória, respondendo-se de forma negativa, ou seja, considerou-se provado o contrário. Onde se indaga “sempre se assegurou” respondeu-se “nunca assegurou”. Logicamente a resposta negativa significa resposta de “não provado” ao facto positivo, sendo mesmo excessiva, no caso presente, tal resposta porque nenhuma das partes alegou o facto negativo que resultou provado. E sendo exorbitante, a resposta considera-se não escrita. O facto positivo foi alegado pelo Exequente na contestação à oposição, bem podendo dizer-se que nenhum interesse reveste à decisão da causa. Aliás, como é sabido, a prova de um facto negativo apresenta, por vezes, grandes dificuldades, sendo erróneo inferir a prova do facto contrário de um facto não provado. Sem necessidade de mais considerações, é de alterar a resposta o mencionado ponto de facto da base instrutória, considerando-se o mesmo “não provado”. III-2)- Examinemos, agora, a 2ª questão. Na sentença da 1ª instância, julgou-se procedente a oposição à execução, por ter sido provada a inexistência de qualquer relação subjacente ou extracartular entre Exequente e Opoente. A oposição à execução assenta na alegação de um aceite de favor por parte do Opoente e inexistência de qualquer transacção comercial ou responsabilidade anterior perante o Exequente sacador. E sem margem para qualquer dúvida resultou provada a existência de uma letra de favor aceite pelo Opoente, porque subjacente à obrigação cambiária assumida pelo Opoente, não se encontra uma relação jurídica fundamental, sendo apenas o favor a causa da obrigação cambiária, não tendo o Opoente, ao aceitar a letra, qualquer responsabilidade anterior para com o Exequente sacador. Com efeito, como se provou, o Executado/Oponente nunca teve com o Exequente ou com a sociedade de que este é sócio gerente qualquer negócio que justificasse a emissão da letra dada à execução (alínea G) da factualidade assente). E porque a F…, L.da não tivesse crédito no giro bancário, o gerente desta, J…., pediu ao Executado que lhe aceitasse uma letra de câmbio, por mero favor, para que, através do respectivo desconto bancário, o Exequente, na qualidade de sócio gerente da “….” obtivesse da banca o valor que pretendia, e que aquele devia a este, sendo tal facto do conhecimento do Exequente” (alínea c) da factualidade assente). Conforme ensinamento de Ferrer Correia (in “Lições de Direito Comercial, vol. III, p. 50), “a subscrição de favor oferece duas características. Primeira: o subscritor não tem a intenção de vir a desembolsar o montante da letra; ele quer apenas, opondo nela a sua assinatura, facilitar, pela garantia que esta representa, a circulação do título. Todavia, ele não deixará de agir com a consciência de ficar cambiariamente obrigado em virtude da subscrição. A segunda característica que está subjacente à obrigação cambiária assumida pelo favorecente, não se encontra uma relação jurídica fundamental estabelecida entre ele e o favorecido, além da que decorre da própria convenção de favor. O favorecente torna-se obrigado apenas pelo favor e não porque já o fosse em virtude de outra relação extra-cartular”. E, mais adiante, “poderá o subscritor de favor alegar, em face de um portador que lhe venha exigir o pagamento da letra, que a subscreveu por mero favor e sem qualquer intenção de a saldar? A resposta é que o favorecente não pode opor ao portador a excepção de favor, sendo esta apenas oponível a quem tiver participado na convenção: o favorecido”. Isto é, a subscrição de favor de uma letra de câmbio só pode ser oposta, mesmo no domínio das relações imediatas, aos que participaram na relação extracartular de favor, já que a convenção de favor não obriga para além das partes que a celebraram, sendo certo que o aceitante de favor não se limita a garantir o cumprimento de uma obrigação alheia mas assume uma obrigação própria e autónoma relativamente a terceiros, portadores mediatos de boa fé. A aposição da assinatura tem sempre e necessariamente o efeito jurídico de vincular o signatário pela obrigação correspondente - sacador, aceitante, etc.- e nunca as circunstâncias especiais em que lhe foi solicitada a assinatura poderiam ser invocadas pelo signatário de favor perante terceiros de boa fé, para se eximir ao pagamento do montante da letra” Cfr. José Gabriel Pinto Coelho, in “ Lições de Direito Comercial, As Letras”, vol. 2º, pag. 102.. Aliás, nenhum favor seria prestado se a subscrição do favorecente ou firmante do favor não envolvesse a obrigação de pagar. No caso ajuizado, a letra não está no domínio das relações imediatas, porque os sujeitos cambiários (sacador-sacado) não são concomitantemente sujeitos da convenção extracartular de favor. É, pois, portador mediato do título o que não foi parte na convenção de favor. Sendo o favor causa válida e eficaz da obrigação cartular para com o portador da letra, excepto se este for o favorecido, não ficando o favorecente isento de responder pelo pagamento da letra, pois, “o favor não é fazer uma assinatura, mas honrá-la, cumprindo as obrigações dela emergentes” ou, por outras palavras, “honra-se o favor prestado, pagando” Cfr. Vaz Serra, na RLJ, ano 108º- 379 e 380, na RLJ, ano 112º, p. 297, acórdãos do STJ publicados na CJ 2007, 1º, p. 142, na CJ 2005, 1º, p. 122, no BMJ n.º 93º, p. 346, no BMJ 228º, p. 233, no BMJ n.º 280º, p.343, no BMJ n.º 293º, p. 405, no BMJ n.º 284º, p. 221, no BMJ n.º 286º, p. 269, disponíves em www. dgsi. pt: P. 05ª4352, de 14.02.2007, P. 078508, de 25.10.1990, P. 087930, de 13.02.1996, P. 084432, de 28.10.1993 e acórdão desta Relação, na CJ 2002, 5º, p. 28. . Acrescente-se também que a convenção de favor não pode ser oposta nas relações mediatas, mesmo que o terceiro portador mediato conheça o favor ou complacência, não podendo ser considerado, só por esse motivo, possuidor de má fé, nos termos e para efeitos do disposto na parte final do art. 17º da LULL Cfr. acórdão do STJ publicado no BMJ n.º 457º, p. 393 ; Gonçalves Salvador, in “Decisões e Notas”, 1960, p, 77 e Beleza dos Santos, in “Simulação em Direito Civil”, vol. 1º. 1921, p. 163. . Como corolário das considerações jurídicas explanadas, fácil é concluir que o Executado não pode opor ao Exequente, sacador da letra, o carácter de favor da sua subscrição como aceitante, importando honrar a obrigação emergente dessa assinatura, ou seja, pagar a letra já vencida. È de todo irrelevante que, ao aceitar a letra, o Opoente não tenha para com o Exequente qualquer responsabilidade anterior, nessa circunstância residindo o favor que é a causa da subscrição cambiária. III-3)- Curemos, por fim, da 3ª e última questão. Tem a ver com a litigância de má fé em que foi condenado o Apelante/Exequente. Como resulta do n.º 2 do art. 456º do CPC, a litigância de má fé supõe dolo ou negligência grave. E, designadamente, ocorre quando o litigante deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ( alíneas a) e b). Ora, como acima se expôs, de facto e de direito, de forma alguma está o Apelante incurso na previsão dessas normas. Alegou factos verdadeiros e limitou-se a exercer um direito que lhe foi reconhecido em toda a linha, detendo um crédito titulado pela letra exequenda, sendo o Opoente responsável pelo seu pagamento. Manifestamente não pode subsistir a condenação do Exequente como litigante de má fé. III)- DECISÃO Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em: 1-Conceder total provimento ao recurso de apelação. 2-Em consequência, altera-se a decisão de facto pela forma sobredita e revoga-se a sentença impugnada, julgando-se improcedente a oposição deduzida contra a execução e absolvendo-se o Exequente do pedido de condenação como litigante de má fé. As custas, em ambas as instâncias, ficam a cargo do Apelado/Executado COIMBRA, (Relator- Ferreira de Barros) (1º Adj.- Des. Helder Roque) (2º Adj.- Des. Távora Vítor) |