Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3980/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA LEITÃO
Descritores: FACTOS INSTRUMENTAIS NÃO ALEGADOS
CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Legislação Nacional: ART. 664º DO CPC ; ARTº 1º DA L.C.T. ; ARTºS 1152º E 1154º DO C. CIV.
Sumário:

I – A limitação decorrente do princípio do dispositivo ( artº 664º do CPC ) está circunscrita aos factos fundamentais ( para a pretensão do A. e/ou do R.), sendo possível o acrescentar de factos instrumentais, ainda que não articulados .
II - O ponto fundamental para a diferenciação entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços consiste na verificação ou não do elemento “ subordinação jurídica “ .
III – Quando existe tal elemento, deparamo-nos com um contrato de trabalho. A sua ausência consubstancia a celebração de um contrato de prestação de serviços, desde que preenchidos os demais elementos necessários para esse efeito .
IV- A subordinação jurídica, todavia, terá que ser deduzida de elementos de facto em que se concretiza o desenvolvimento das relações contratuais entre os outorgantes . A jurisprudência tem apontado como dados caracterizadores de um vínculo laboral, o local de trabalho, o horário de trabalho, o controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a modalidade de remuneração, a propriedade dos meios de produção, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios de trabalho por conta de outrém .
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
AA intentou acção com processo comum emergente de contrato individual de trabalho contra AB-, invocando que, tendo celebrado com a Ré um contrato de trabalho acabou por ser alvo de despedimento ilícito, pedindo em consequência a condenação da demandada a pagar-lhe as retribuições devidas e a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, caso não opte pela legal indemnização.
A Ré contestou, alegando em resumo que, o Tribunal de Trabalho não é materialmente competente para conhecer do objecto do litígio, dado que nunca existiu qualquer vínculo laboral entre os litigantes, mas apenas um contrato de prestação de serviços e de qualquer forma, nada deve ao A( sendo que de qualquer forma alguns dos créditos peticionados se encontram prescritos) não tendo por outro lado ocorrido nenhum despedimento, antes foi o A que por sua iniciativa deixou de lhe prestar serviços.
Pede a sua absolvição e a condenação do A como litigante de má-fé.
Houve resposta na qual o A manteve a sua posição inicial e ampliou o pedido relativamente a alegados créditos salariais( comissões sobre vendas), tendo a Ré oposto a sua defesa à dita ampliação.
Por despacho ( transitado em julgado de fls. 345) foi considerado o T. Trabalho como competente para conhecer do litígio em causa e afinal foi proferida decisão, que considerando não ter o A logrado provar a existência do contrato de trabalho em que fundava a sua pretensão, absolveu a Ré de todo o peticionado, entendendo também que não se demonstrava a litigância de má- fé por parte do A
Este, inconformado apelou alegando e concluindo:
1-Tendo os factos alegados pelo A sido provados por documentos, embora particulares, mas assinados pela Ré, os factos que eles provam só podem ser contrariados por meio probatório de igual valia;
2- Se do documento que prova as condições de trabalho contratadas entre as partes resulta uma comissão de 15% sobre vendas não pode a Ré vir a provar por testemunhas que o percentual é inferior
3- Não pode o Mtº Juiz “ a quo” dar como provados factos que não foram articulados pelas partes, nem considerados em sentido contrário ao por elas apresentados;
4- Os factos articulados pelo A, que não foram impugnados pela Ré, deverão ser considerados provados em toda a sua plenitude;
5- nos autos todos os factos provados, permitem considerar que o contrato existente entre A e R, era um contrato de subordinação laboral e não de prestação de serviços
6- As tarefas descritas nos autos, não permitem afastar o regime do contrato individual de trabalho, à subordinação jurídica existente;
Mostram-se assim violadas entre outras, as normas previstas nos artºs 664º e 668º do CPC, 1º da LCT e 1152º e 1154º ambos do CCv.
Contra alegou a Ré pugnando pela correcção da sentença em crise, considerando que o A litiga de má-fé, pelo que por tal deve ser sancionado.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, tendo o Ex.mo Sr. PGA emitido douto parecer no sentido do respectivo improvimento, cumpre decidir.
Dos Factos:
Foi a seguinte a factualidade dada como assente na 1º instância
a) – O A. foi admitido ao serviço da Ré em 12.7.1995 como “vendedor/comissionista” e permaneceu ao serviço desta até 26.10.2001.
b) – No exercício daquela actividade ao serviço da Ré o A. prestava informação aos potenciais clientes sobre os produtos comercializados pela Ré (equipamento hoteleiro) e celebrava com os referidos clientes contratos de compra e venda que tinham por objecto os mencionados produtos.
c) – Nos termos do acordo celebrado entre as partes no início do contrato foram concedidas ao A. as seguintes “condições de comissionista”: “ajudas de custo mensais” na importância de esc. 80 000$00 (€ 399,04); “retirada mensal por conta comissões c/ passagem de recibo” de esc. 150 000$00 (€ 748,20) e “comissão a receber sobre vendas sem IVA” de 15 % (cfr. documentos de fls. 12 e 300).
d) – A Ré dedica-se à fabricação, comercialização e manutenção de Equipamento Hoteleiro.
e) – Tem a sua actividade fixada no estabelecimento comercial sito na Urbanização ..., local da sede; não tem qualquer outro estabelecimento comercial.
f) – Detém um quadro de pessoal próprio que desenvolve as suas funções a partir de e naquele estabelecimento, por conta e ordem da Ré, nunca tendo chegado ao limite de 20 trabalhadores.
g) – O A. nunca figurou no quadro de trabalhadores subordinados da Ré.
h) – Tendo em vista alargar o seu volume de negócios no Distrito de Viseu, a Ré necessitou de contratar os serviços de um vendedor.
i) – A Ré decidiu contratar o A. por o considerar pessoa de muitos conhecimentos e contactos, até porque já se dedicava, por conta própria, à actividade de venda de colchões ortopédicos, “poltronas relax” com massagem e almofadas anatómicas.
j) – Em 12.7.1995, acordaram A. e Ré, verbalmente, em que aquele iria desempenhar as funções de vendedor principalmente na zona dita em h). l) – Estipularam ambas as partes o seguinte:
- o A. prospectava e angariava clientes com vista à venda e instalação, por parte da Ré, de equipamentos hoteleiros;
- o A. contactava a Ré para elaborar os orçamentos e esta enviava-os ao A. para os entregar aos clientes para a sua aceitação ou não;
- após aceitação, o A. celebrava por escrito o contrato de fornecimento com os clientes;
- a Ré procedia à medição dos produtos solicitados ou à rectificação das medidas, e depois encomendava aos seus fornecedores e procedia à montagem;
- na data da montagem, efectuada pelos seus trabalhadores, emitia a Ré de imediato a respectiva factura;
- as condições/forma de pagamento eram negociadas directamente entre a Ré e o cliente.
m) – Como contrapartida da actividade desenvolvida pelo A. ao serviço da Ré foi estabelecido o referido em c), destinando-se a importância de esc. 80 000$00 ao pagamento, sobretudo, das despesas do A. com as suas deslocações em viatura própria e alimentação, devendo o A. entregar à Ré os documentos comprovativos das despesas realizadas. A comissão de 15 % seria calculada sobre cada negócio efectuado, percentagem que poderia ser inferior se o A. viesse a acordar um preço abaixo do orçamentado e/ou do “preço final” (com ou sem desconto) estabelecido pela Ré.
n) – Por conta das vendas realizadas ao serviço da Ré o A. recebia mensalmente a importância de esc. 150 000$00 a título de comissões, procedendo-se depois a acertos nos montantes devidos em função do volume total das vendas por si realizadas.
o) – A maioria dos pagamentos à Ré eram diferidos no tempo.
p) – Para pagamento das quantias mencionadas em c), m) e n), o A. emitia facturas e recibos em seu nome, liquidando IVA e com retenção de IRS (efectuada pela Ré).
q) – O A. trabalhava a partir da sua morada, sita em Viseu, sem qualquer horário de trabalho estabelecido; movimentava-se na área geográfica que lhe estava destinada na forma e com os meios que considerasse convenientes ou adequados e segundo o quadro temporal e espacial por si definido, com total liberdade na prospecção de mercado/angariação de novos clientes interessados na aquisição de produtos da Ré.
r) – O A. estava e está colectado como vendedor, maxime, como Trabalhador Independente, em IRS pela actividade de “Outras Actividades de Serviços Prestados Principalmente a Empresas Diversas, N.E.”, desde 25.11.1994 (cfr. documento de fls. 411).
s) – Nas declarações apresentadas para efeito de IRS dos anos de 1996 a 2000, o A. referiu como actividade principal “Comissionista” e como outras actividades “Com. Ret. Colchões Ortopédicos”, incluindo as comissões auferidas na Ré na rubrica “Prestações de serviços”; nessas declarações indicou a sua remuneração enquanto empresário, remunerações do pessoal ao seu serviço (exercícios de 1996 e 1999) e as demais despesas e encargos inerentes ao exercício das mencionadas actividades; na declaração correspondente ao ano de 2001 o A. apresentou o “Anexo B (trabalhador independente)do Modelo 3”.
t) – O A. não processava descontos para a Segurança Social através da Ré (em razão da actividade que desenvolvia ao serviço da mesma).
u) – O A. tinha a sua actividade de venda de colchões ortopédicos e produtos similares, para além da actividade desenvolvida ao serviço da Ré; chegou a vender um desses colchões a um dos sócios da Ré.
v) – Dos documentos da Ré, o A. tinha ao seu dispor os exemplares dos contratos para celebrar, folhas avulsas (tipo carta) com o timbre daquela e catálogos dos produtos comercializados pela empresa.
x) – A Ré nunca pagou ao A. quaisquer importâncias a título de férias e de subsídios de férias e de Natal.
z) – A partir do início do ano de 2000 passou a haver conflitos entre o A. e a Ré por esta considerar que aquele passara a não celebrar contratos que justificassem o pagamento da importância acordada a título de “ajudas de custo” e, ainda, que o mesmo deixara de apresentar os documentos comprovativos e justificativos para pagamento da respectiva importância mensal, pelo que a Ré deixou de pagar tal quantia a título de “ajudas de custo”.
aa) - Nos meses de Março, Abril, Maio, Junho e Setembro de 2000 o A. processou contabilisticamente o recebimento da importância mensal de esc. 80 000$00 como “bónus referentes a vendas”. No ano de 2001, designadamente nos meses de Fevereiro, Junho e Outubro, a Ré pagou ainda ao A. a importância mensal de esc. 80 000$00 que este considerava devida nos termos do contrato, ou seja, a título de “ajudas de custo”.
bb) – O A. remeteu à Ré as cartas a que respeitam os documentos de fls. 294 a 307, datadas de 07.5.2001, 04.6.2001, 28.6.2001 e 09.10.2001, reclamando o pagamento de “comissões” e “ajudas de custo” alegadamente em dívida e propondo a alteração das condições do contrato ditas em c) tendo em vista a sua colaboração futura com a Ré como “comissionista”.
cc) – Ao serviço da Ré o A. realizou, pelo menos, as vendas aludidas nos documentos de fls. 23, 271, 275, 282, 286, 290 e 292.
dd) – Actualmente, e desde o início de 2002, o A. presta a sua actividade para “AC, tendo esta entidade declarado que o A., em nome da referida sociedade, mas sem estar sob a sua autoridade e direcção, vende a terceiros o material que esta comercializa, recebendo uma percentagem sobre o valor dessas vendas (cfr. documento de fls. 430).
ee) – Desde 01.9.1993 até meados de 1995 o A. promoveu por conta de “AD”, com sede no Porto, a venda de equipamento hoteleiro e similares que esta comercializava; recebia em contrapartida uma comissão sobre o valor da mercadoria facturada, bem como sobre o valor dos trabalhos e obras de decoração, e com base nas notas de encomenda elaboradas pelo A. ou a ele atribuídas em virtude das vendas efectuadas nas zonas que lhe eram concedidas; o A. recebia da dita sociedade a importância mensal de esc. 180 000$00 a título de adiantamento por conta das comissões, contra a passagem de recibo, com os respectivos IVA e IRS, este, retido na fonte; o A. recebia ainda da mesma sociedade determinada importância mensal fixa a título de “ajudas de custo”.
Do Direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação- artºs 684º n.º 3 e 690º nºs 1 e 3 ambos do CPC-
Pelo que no caso em apreço, temos que as questões colocadas se prendem com a análise da matéria de facto, posta de certa forma em causa pelo apelante, de modo a que ( modificada aquela) se venha a considerar que existiu um contrato de trabalho entre ele e a ora recorrida.
Vejamos então
Refere desde logo o apelante, que a factualidade dada como assente nas alíneas q) e s), não tem qualquer suporte em alegações fácticas incluídas nos articulados.
E na realidade, em princípio o Juiz está limitado na sua decisão, ao factos que as partes trazem ao processo nos respectivos articulados, espontaneamente , ou em face de correcção determinada pelo Julgador, nos termos do art.º 27 b) do CPT
Só assim não será( e estamos evidentemente a referir- nos exclusivamente ao ordenamento adjectivo laboral) , se no decurso da produção de prova surgirem factos que, ainda que não articulados , o tribunal considera relevantes para a boa decisão da causa.
Se tal suceder, deve o juiz ampliar a base instrutória( se a houver) ou então tomá- los em consideração na decisão sobre a matéria de facto, desde que sobre eles tenha incidido discussão, ou seja desde que se respeite o princípio do contraditório( art.º 72º nº1 do CPT).
Contudo e “ in casu”, nenhuma referência è feita na sentença em crise, sobre este ponto, pelo que se tem que concluir que apenas pode ser considerada a factualidade alegada pelos litigantes.
Mesmo sendo assim, e ressalvando sempre o respeito devido, não assiste razão ao recorrente.
É que a limitação decorrente do princípio do dispositivo e que está plasmada no art.º 664º do CPC( princípio esse aliás que não opera totalmente no processo laboral, como decorre do citado art.º 72º n.º 1), está circunscrita aos factos fundamentais ( para a pretensão do A e /ou do R), sendo perfeitamente possível pois o “ acrescentar” de factos instrumentais, ainda que não articulados. cfr. neste sentido A Varela/Miguel Bezerra / Sampaio Nora , in Manual de Processo Civil , 2ª ed. págs. 412 e segs. -.
Ora se se atentar no que a Ré articula nos artºs 23º a 28º da sua douta contestação, conclui-se - , a nosso ver sem esforço, que essa factualidade acabou por ser vertida para a dita alínea q)- embora que por palavras não exactamente semelhantes,
E no que concerne à alínea s) o que ali se elenca encontra arrimo nomeadamente nos factos indicados nos artºs 10º, 18º, 29º e 30º do aludido articulado, sendo que contém factos instrumentais dos alegados nomeadamente em 29º e 30º da defesa.
Efectivamente ali se diz que o A “estava e está colectado como vendedor” e que” tinha e tem responsabilidade fiscal própria no que diz respeito aos negócios efectuados para a Ré”.
Daí que a indicação das declarações de IRS apresentadas por ele, de 1996 a 2001( e que são o conteúdo da alínea em causa) e do respectivo teor, acaba por estar ligada por um nexo de instrumentalidade com os facto fundamental alegado pela aqui recorrida( ou seja e em síntese, que o A tinha o regime fiscal de um trabalhador independente).
No que respeita à alínea z), o seu teor retira-se sem dificuldade do que é alegado pelo próprio A, no art.º 9º da sua douta petição inicial e pela Ré( cfr. artºs 49º a 53 da contestação).
No concernente às alíneas aa), dd) e ee), apesar de sindicadas, o A nas suas doutas alegações, não indica os motivos em que baseia a sua discordância.
Por isso não é possível a este tribunal, pronunciar-se sobre a razão de tal crítica.
Pretende ainda o A que se dê como provada toda a matéria de facto constante do art.º 3º da p. inicial.
Ora a verdade é que o respectivo teor( foi parcialmente) impugnado pela Ré( art.º 42º da contestação), que aliás indicou um algo diverso, conjunto de tarefas que contratualmente estariam a cargo do ora apelante, conforme resulta do art.º 12 de tal articulado.
E perante isso, o Ex. mo Juiz do Tribunal recorrido, produzida a competente prova, decidiu conforme a sua livre convicção, como o determina aliás, o art.º 655º do CPC.
Salvo o devido respeito, entende-se portanto que, não existem motivos para alterar a factualidade que consta destes pontos da sentença recorrida, pois que, não só existiu impugnação sobre determinada matéria alegada pelo A( e que ele agora pretende ver dada como assente) como o Ex. mo Julgador por outro lado, não foi além dos factos fundamentais que as partes articularam, sendo certo também que o Tribunal não está obrigado a verter para a sentença “ ipsis verbis” o que os litigantes alegaram.
De qualquer jeito, mesmo a aceitar-se a pretendida alteração factual, tal não significaria, que a acção devesse proceder, podendo até dizer-se que para o núcleo central do litígio( qualificação do contrato que A e Ré celebraram), muitos destes aspectos - salvo o concernente ao que consta das ditas alíneas q) e s) - apresentam-se como absolutamente irrelevantes, como resulta em nosso modesto entender inequivocamente dos factos que deles constam.
Improcedem assim as doutas conclusões 3 e 4.
Porém o A insurge-se também no que concerne ao teor da alínea m) da matéria de facto, na parte em que –e em síntese- deu como provado que a comissão por vendas efectuadas auferida pelo A, poderia ser de valor inferior a 15%.
E socorre-se para tanto do documento de fls. 12, impresso em papel com o timbre da ré onde expressamente consta que a tal comissão seria de 15%.
Esse documento encontra-se assinado e tem obviamente natureza particular.
Daí que apenas teria força probatória plena, nos termos e com a amplitude dada pelo art.º 376º n.º 1 do CCv, se a assinatura dele constante como sendo de alguém que legalmente representava a Ré, tivesse sido reconhecida ou não impugnada por esta, ou se ela tivesse alegado desconhecimento sobre a respectiva autoria( cfr. art.º 374º n.º 1 do CCv).
Então, se tal sucedesse, o aludido documento teria, como se disse a força probatória que lhe confere o citado art.º 376º n.º 1, não podendo as declarações dele constantes e de certo modo os factos nestas compreendidos- serem postos em causa por prova testemunhal, cuja produção não seria então admissível- art.º 394º n.º 1 CCv-.
Contudo, no caso concreto a Ré – e expressamente- impugnou o teor, a letra e a assinatura do documento em análise( cfr. artºs 43º e 44º da contestação).
Daí que competiria ao A o ónus de provar a veracidade quer da letra, quer da assinatura, nos termos do art.º 374º n.º 2 do CCv- desiderato que não logrou.
Por isso perfeitamente legal se mostra a produção de prova testemunhal sobre as condições contratuais, mormente as que desse documento constam.
Motivo pelo qual se entende , não ser passível de alteração o teor da referida alínea, alteração essa aliás, que igualmente se poderia vir a mostrar totalmente inútil se se não provasse a existência de um contrato de trabalho.
Também não se sufragam assim as doutas conclusões 1ª e 2ª.
Resta indagar se atenta a factualidade elencada na sentença sob censura- se se deve concluir que o convénio celebrado entre A e Ré assumiu a natureza de vínculo laboral.
Dispõe o art.º 1º da LCT- coincidindo aliás sob o ponto de vista literal com o art.º 1152º do CCv- que “ contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta”.
Por seu turno o art.º 1154º deste último diploma define contrato de prestação de serviços, como sendo aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar á outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Na vida prática, torna-se por vezes difícil a distinção entre estes dois negócios jurídicos( naturalmente quando na prestação de serviços ocorre a contrapartida retribuição , dado que sem ela não se pode configurar a existência de um vínculo laboral).
Cremos todavia que hoje, o ponto fundamental para a diferenciação destes contratos consiste na verificação ( ou não ) do elemento “ subordinação jurídica “ .
Do modo que quando ela existe, nos deparamos com um contrato de trabalho; a sua ausência consubstancia( naturalmente preenchidos os restantes elementos) a celebração de um contrato de prestação de serviços- neste sentido e entre muitos outros, cfr. CJs 1985, 4º 113 , XXV, IV, 246 e BMJ 447º/308-.
Pode dizer-se também que enquanto no contrato de trabalho um dos outorgantes se obriga a prestar a outro o seu trabalho, no de prestação de serviços o objecto é o resultado do trabalho e não o trabalho em si.
Menezes Cordeiro, in Manual do Direito de Trabalho, 1991, 520 escreve.” No contrato de prestação de serviços trata-se de proporcionar certo resultado do trabalho, enquanto que no contrato de trabalho se refere o prestar uma actividade”.
Mais impressivamente e a este propósito Galvão Telles, in BMJ 83º, 165, expõe:” Todo o trabalho conduz a algum resultado e este não existe sem aquele. O único critério legítimo está em averiguar se a actividade é ou não prestada sob a direcção da pessoa a quem ele aproveita, que dele é credora. Em caso afirmativo, promete-se o trabalho em si, porque à outra parte competirá, ainda que porventura em termos bastante ténues, dirigi-lo, encaminhando-o para a consecução dos resultados que se propõe”.
Em síntese: estamos em frente de “dois quadros”:
Num deles existe a obrigação de prestar o trabalho, mediante subordinação jurídica do prestador ao credor da prestação; noutro a de apresentar um resultado do trabalho, o qual é feito, sem qualquer sujeição à autoridade e direcção da outra parte.
Portanto se conceitualmente parece simples a distinção entre estes dois tipos de convénio, já na prática e como se escreve no douto acórdão do STJ, de 16/5/00, no recurso de revista 351/99 “ uma tal caracterização reveste não raras vezes enorme dificuldade”.
E como se explicita no também douto aresto daquela Alto Tribunal, proferido no recurso de Revista n.º 305/99 “ à diversidade das tarefas e das especificidades e particularismos que o seu desempenho pode revestir- não deixa de manifestar-se o princípio da liberdade contratual- aliam-se frequentemente pormenores circunstanciais de vária ordem, próximos ora de ou outro contrato, que chocando-se não consentem a afirmação de factores predominantes”.
Como acima se disse a “ pedra de toque” que diferencia o contrato de trabalho, do de prestação de serviços, reside na existência ( ou não) da tal “ subordinação jurídica”.
Esta todavia terá que ser deduzida de elementos de facto em que se concretiza o desenvolvimento das relações contratuais entre os outorgantes.
E assim, a jurisprudência tem apontado como dados caracterizadores de um vínculo laboral, o local de trabalho, o horário de trabalho, o controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a modalidade de remuneração, a propriedade dos meios de produção, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios de trabalho por conta de outrém- cfr. p. ex. C.J. XXV, IV; 246-.
Ora vertendo estes princípio para o caso concreto o que é que encontramos?
Pois e desde logo , que a Ré não pagava ao A nem subsídios de Natal, nem de férias.
Por outro lado, o A não estava sujeito a qualquer horário de trabalho, laborando a partir da sua morada, sita em Viseu e movimentava-se na área geográfica que lhe estava destinada na forma e com os meios que considerasse convenientes ou adequados e segundo o quadro temporal e espacial por si definido, com total liberdade na prospecção de mercado/angariação de novos clientes interessados na aquisição de produtos da Ré.
Acresce que se encontrava colectado em sede de IRS, como trabalhador independente, não processando os descontos para a Segurança Social através da Ré.
Ora todo este quadro é dificilmente compaginável com a existência de um contrato de trabalho, pois demonstra, além do mais, uma liberdade de actuação do ora recorrente, que não se adequada muito bem a uma situação de dependência jurídica que caracteriza o vínculo laboral.
É certo que foi dado como provado que o A foi admitido ao serviço da Ré em 12/7/95, como “ vendedor/comissionista” e que permaneceu ao serviço dela até 26/10/01( cfr. alínea a) da matéria de facto).
Esta asserção pode inculcar uma ideia de prestação de actividade, numa posição de subordinação ao credor de tal prestação.
Porém, não deixa de contem em si um juízo algo conclusivo e que não encontra suporte fáctico em qualquer elemento, nomeadamente que revele que a tal subordinação jurídica, sendo certo que, mesmo nos contratos de prestação de serviços, sempre o prestador da actividade estará de alguma forma sujeito, a declarações de vontade do credor.
Ora no caso concreto se se pode considerar a atribuição da “ categoria” de vendedor comissionista, como um afloramento do poder determinativo da função, que integra o poder de direcção da entidade patronal inerente a um contrato de trabalho, já – atento o quadro fáctico que se nos depara- no que concerne ao poder conformativo da prestação( que como se sabe – e no dizer de M. Fernandes, in Dtº do Trabalho, 9ª ed. Pág. 240- se exprime pela possibilidade de dar ordens e de fazê-las obedecer- cfr. artº 20 º c) da LCT- ), a factualidade apurada é demasiado frágil para que se possa concluir, pela sua existência, na relação contratual que ligava A e Ré.
Em suma: ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, estamos perante uma situação, que cria natural legítima e fundada dúvida, sobre qual a natureza do aludido convénio.
Como elemento constitutivo do direito que invoca, competia ao A, o ónus de alegação e prova, dos elementos de facto que conduzissem à conclusão de que efectivamente estava ligado à aqui apelada, por um contrato de trabalho( art.º 342º n.º 1 do CCv).
Não logrou tal desiderato, em nosso modesto entendimento.
Daí que e desde logo, a acção por ele proposta nunca poderia proceder.
E saliente-se que se chega a esta conclusão, sem seque levar em linha de conta, a materialidade vertida para a alínea s), da fundamentação de facto, que como supra se referiu foi posta em crise, nesta apelação.
O que significa que mesmo sem se considerar tal factologia, a solução a dar a este litígio, apontaria no mesmo sentido- a não prova de que entre A e e Ré fora celebrado um contrato de trabalho-.
O que mais reforça a ideia de que no fundo era despiciendo analisar se a dita factualidade deveria ou não ter sido dada como provada, porque não directamente alegada pelas partes.
Tendo-a ou não em conta- e atendendo aos restantes factores que se demonstraram e que foram inequivocamente alvo de oportuna invocação nos articulados, (nomeadamente na defesa da Ré), nunca se poderia concluir pela demonstração de que existira um vínculo laboral ligando A e Ré.
Deste modo fenecem também as conclusões 5 e 6 das doutas alegações de recurso.
Finalmente e no que concerne à pretensa litigância de má- fé, por parte do A dir- se-á simplesmente que do processo não resultam elementos, que permitam qualificar dessa forma a conduta substantiva ou adjectiva do A.
Pelo que uma sua condenação a esse título, a nosso ver, não se justifica.
Em suma e decidindo:
- Não se demonstra a existência de litigância de má- fé por parte do Recorrente.
- Confirmando-se a sentença proferida na 1º instância, julga-se improcedente a apelação.
Custas pelo A