Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/06.9 PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DIREITO DE NECESSIDADE
Data do Acordão: 04/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 34º,348º DO CP, 15.º E 17º DO DECRETO-LEI N.º 116/94, DE 3 DE MAIO
Sumário: 1. A punição para a condução de veículo sem pagamento do imposto devido não se esgota na previsão do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio.
2. Incorre em crime de desobediência simples o arguido que conduzir o veículo que aquando da autuação pela inexistência de dístico comprovativo do pagamento do imposto de circulação devido, foi instituído depositário do veículo, conforme artigo 17.º, n.º 1,daquele diploma ,sendo advertido de que não o poderia utilizar, sob pena de incorrer na prática de crime de desobediência.
3. Primeiros pressupostos para o emergir da causa de exclusão do art.º 34º do CP é que o agente se mostre confrontado com um perigo actual, não removível de outro modo, e que lhe imponha o comportamento indevido.
4. Um receio na perca do emprego, caso não acatasse a ordem e procedesse à condução imposta, algo futuro e conjectural não basta para que se considere preenchida a aludida causa de exclusão da sua culpa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção (4.ª) Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público, o arguido C..., já mais identificado nos autos, foi submetido a julgamento, porquanto alegadamente incurso na autoria material consumada de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal [CP], e 22.º do Decreto-Lei [DL] n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
Findo o contraditório, em sentença adrede proferida, viu-se o arguido condenado enquanto agente do mencionado ilícito na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
1.2. Porque se não revê em tal veredicto, interpôs recurso, sendo que da motivação ofertada extraiu o seguinte quadro de conclusões:
1.2.1. O DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, regula apenas as normas que disciplinam o registo da propriedade automóvel.
1.2.2. Interpretar extensivamente esse preceito e aplicá-lo aos casos de falta de pagamento do imposto de circulação constitui uma violação do princípio nullum crimen sine lege e do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa [CRP].
1.2.3. Por isso que nunca poderia o recorrente ser condenado pela prática do crime de desobediência qualificada.
1.2.4. A alínea b) do artigo 348.º, n.º 1 do CP tem natureza subsidiária, existindo apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente.
1.2.5. A violação da obrigação de pagamento do imposto de circulação de veículo afecto ao transporte de mercadorias está expressamente prevista no artigo 15.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem criado através do DL n.º 116/94, de 3 de Maio, o qual estabelece a prática de uma contra-ordenação punida com coima de €´s 49,98 a 4.987,98 para a utilização de qualquer veiculo sujeito a este imposto sem que o mesmo se mostre pago, para além da apreensão do veículo e documentos.
1.2.6. Logo, o recorrente também não pode ser condenado pela prática do crime de desobediência simples.
1.2.7. Mas mesmo que assim se não entenda, o que não se concede, a pena aplicada é desadequada e desproporcionada
1.2.8. O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, considerando incorrectamente julgados os pontos 6. e 7. dos factos mencionados na sentença recorrida e que não foram tidos em conta outros relevantes para a decisão de mérito.
1.2.9. O depoimento das testemunhas S..., M... e B... vieram confirmar o depoimento do recorrente e impõem a seguinte decisão diversa da recorrida:
6. No dia 12 de Julho foi ordenado ao arguido, pela sua entidade patronal que conduzisse o veículo, tendo este recusado prestar tal trabalho por se encontrar apreendido o veículo em questão.
7. No entanto, a entidade empregadora obrigou o arguido a conduzir tal veículo, sob pena de despedimento e este, com medo de perder o emprego, conduziu-o.
Para além desta matéria, há que aditar outra:
a) À data dos factos o arguido era o único trabalhador que estava legalmente habilitado a conduzir tal veículo e o seu cônjuge encontrava-se desempregado.
b) O veículo apreendido era pertença da entidade patronal do arguido, a Vidrocarmo, Lda.
1.2.10. Perante esta nova factualidade, verificam-se os pressupostos indispensáveis à consideração e aplicação no caso concreto do estado de necessidade desculpante, conducente à dispensa da pena ou à sua especial atenuação, visto o estatuído no artigo 35.º, n.º 2, do CP.
Terminou pedindo o eximir de toda e qualquer responsabilização penal. Para a hipótese de a mesma dever subsistir, seja dispensado de pena ou se decrete a sua especial atenuação.
1.3. Notificado ao efeito, respondeu o Ministério Público, defendendo o acerto do decidido.
1.4. Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta instância, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao provimento parcial da impugnação. Com efeito, sustenta, no mais se mantendo o decidido, deve o arguido ser condenado tão-somente como agente de um crime de desobediência simples.
Cumprido com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [CPP], seguiu-se réplica do recorrente.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Por isso se ordenou a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como o prosseguimento dos autos com submissão à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se como provados os factos seguintes:
1. No dia 12 de Julho de 2006, cerca das 16.40 horas, na Rua Padre António Vieira, área da comarca de Coimbra, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias de matrícula QT-00-00, marca Toyota, modelo Dyna, tendo sido fiscalizado por S..., agente principal da PSP de Coimbra.
2. No entanto, o pesado de mercadorias conduzido pelo arguido tinha sido apreendido pelo Sub-destacamento Fiscal de Quiaios, da Brigada Fiscal da GNR, em 11.07.2006, por circular sem o dístico modelo n.º 2, correspondente ao imposto de circulação respeitante ao ano de 2005.
3. No momento da apreensão o arguido foi nomeado fiel depositário daquele veículo e advertido que a sua utilização o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
4. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não podia circular com aquele veículo e que a ordem que lhe fora dada para que o não fizesse era legítima.
5. Desrespeitou, no entanto, essa ordem, apesar de ter perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida.
6. Quando foi solicitado ao arguido, pela sua entidade patronal, para realizar um trabalho no dia 12 de Julho, este logo advertiu que não o podia fazer por o veículo estar apreendido.
7. No entanto, a sua entidade patronal reagiu agressivamente à sua atitude e, com medo de perder o seu emprego, o arguido acabou por aceder e, por isso, conduziu o veículo em causa.
8. O arguido aufere € 426,00 de ordenado e € 300,00 de ajudas de custo. Sua esposa aufere € 600,00. Têm uma filha menor a seu cargo, pagando do crédito para habitação € 250,00 e do empréstimo para a compra de carro € 150,00, ambas as quantias, mensalmente.
9. No certificado de registo criminal do arguido nada consta.
2.2. Relativamente a factos não provados, consignou-se na dita decisão que:
“Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa.”
2.3. Por último, escreveu-se na motivação probatória da peça em causa:
“Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Atendemos, assim, às próprias declarações do arguido que referiu que o veículo foi apreendido e, por insistências da sua entidade patronal e com medo de perder o emprego, acabou por aceder e conduziu o veículo em causa. Admitiu, assim, que sabia que não podia conduzir mas fê-lo com medo das consequências da sua recusa. As testemunhas de defesa M... (colega de trabalho do arguido e que o acompanhava quando foi interceptado a conduzir o veículo apreendido) e B... (colega de trabalho do arguido) confirmaram que, efectivamente, a patroa, mesmo depois de alertada para o facto de o veiculo estar apreendido e não poder circular, exigiu que o arguido efectuasse o serviço, e este, com medo elas consequências da sua recusa, acabou por aceitar efectuar o serviço.
A patroa do arguido, estranhamente (ou não), M... veio referir que não se lembrava de o arguido a ter alertado para o facto de o veículo estar apreendido e que não o podia conduzir. No entanto, a testemunha nunca disse que tal conversa não ocorreu, pelo que ficamos com a versão dos factos apresentada pelo arguido e testemunhas de defesa acima identificadas.
A testemunha de acusação S... (P.S.P.) confirmou que viu o arguido a circular com a carrinha e mandou-o parar. No seguimento desta fiscalização, elaborou o auto de notícia e os documentos que o acompanham.
Por seu turno, a testemunha J... (G.N.R.) explicou por que motivo procedeu à apreensão do veículo.
Valoramos, ainda, a prova documental de fls. 8 a 11 que comprova que o veículo em causa se encontrava apreendido e que, no dia seguinte à apreensão, circulava pelas artérias desta cidade.
O documento de fls. 46 demonstra que o arguido não tem antecedentes criminais.
Aceitamos as declarações do arguido quanto à sua situação económica e familiar.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios elencados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, ou das nulidades mencionadas no n.º 3 do mesmo normativo (que, adiantamos, se não vislumbra configurarem no caso presente), é consabido que o âmbito dos recursos se define através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigo 412.º, n.º 1, do CPP).
Vale por dizer, então, que o thema decidendum vertente se traduz em ponderarmos das questões seguintes:
- Deve alterar-se a matéria de facto no sentido propugnado pelo recorrente (conclusões 8.ª e 9.ª)?
- Da factualidade provada não emerge a prática pelo mesmo de um qualquer crime de desobediência [qualificada ou simples] (conclusões 1.ª a 6.ª)?
- Concedendo-se a sua condenação enquanto agente de um tal crime (mas meramente sob a forma simples), sempre da factualidade assente (ademais a ora aduzida e aditada) se deduz haver ele actuado em estado de necessidade desculpante determinante de dispensa da pena ou da sua especial atenuação (conclusão 10.ª)?
3.2. Primeira questão colocada pelo recorrente, a do seu dissídio relativamente à forma pela qual foi apreciada parte da prova objecto do processo.
3.2.1. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma Seguiremos, de perto, o expendido pelo Ex.mo Desembargador Jorge Gonçalves, com data de 11 de Março de 2009, e a propósito no recurso n.º 4/05.7 TAACN.C1, disponível em www.dgsi.pt..
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., 339; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P.Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 4.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo 07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
3.2.2. Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, afigura-se-nos que o recorrente visou impugnar (impugnação ampla) a matéria de facto provada e que o fez de forma a cumprir, num patamar mínimo, as exigências legais.
3.2.3. Dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P., prescreve que os actos decisórios «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias.
«Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina» (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 294).
A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da comunidade.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P., a fundamentação consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Os factos provados e não provados são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais, e ainda os que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão. Saliente-se que a imposição da enumeração dos factos provados e não provados só se satisfaz com a relacionação ou narração minuciosa, isto é, um a um, dos factos provados e não provados.
No caso vertente, da sentença recorrida consta a indicação dos factos provados. Uma vez que eles esgotavam o objecto processual definido pela acusação (o arguido na contestação limitou-se a considerar “Não praticou o crime de que vem acusado”), considerou-se na parte respeitante aos não provados: “Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa.”
As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem também ser especificadas na fundamentação, o que, no caso, acontece.
No que toca à fundamentação da decisão de facto, exige-se a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto – mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, processo: 05P662, www.dgsi.pt).
3.2.4. No caso em análise, a sentença recorrida coloca claramente o acento decisivo quanto ao modo como o arguido acabou por conduzir o veículo, quer nas suas próprias declarações, quer nos depoimentos das testemunhas M... e B....
As declarações daquele vão no sentido que pretende ver agora sufragado. Compreende-se, mas não podemos olvidar do seu interesse natural em que assim fosse, sendo sintomático que apenas em audiência tenha assumido uma tal versão do sucedido.
Os depoimentos das duas testemunhas mencionadas atêm-se a uma pretensa conversa existente entre o arguido e a “D.ª Carla, a patroa”, segundo a qual esta o teria obrigado a conduzir o veículo apreendido sob represália de despedimento se o não fizesse. Sintomaticamente também as respostas de ambos se mostraram evasivas quando confrontadas pela própria mandatária do recorrente: “Não sei, talvez lhe pusessem um processo disciplinar” – B... – “Ele tinha duas alternativas: ou pegava no carro ou se calhar sujeitava-se ao despedimento” – M... –.
Neste circunspecto, mostra-se razoável a parcimónia assumida pela M.ma Juiz a quo aquando da ponderação dos factos: conceder o acolhimento da versão segundo a qual o arguido agiu constrangido mas, todavia, sem precisar com mais minúcia (porque a tanto obstava a prova produzida) dos exactos contornos ínsitos nesse constrangimento.
Os meios de prova alicerçadores da convicção mostram-se perfeitamente legais. Por outro lado, assim considerados, foram-no dentro dos limites impostos pelo artigo 127.º do C.P.P., isto é, da sua livre consideração.
E questioná-los não é simplesmente contrapor à convicção adquirida pelo Tribunal a quo, aquela que o recorrente entende devia ter sido a extraída, como sucede.
Em suma, deve manter-se o acervo fáctico tal como acolhido na 1.ª instância, improcedendo a 8.ª e 9.ª conclusões.
3.3. Segundo pomo de discórdia do recorrente, a sua condenação enquanto autor de um crime de desobediência. Na verdade, refutando-a, desde logo, enquanto agente de um tal ilícito qualificado, questiona, inclusive, a sua prática na forma simples.
Para fundamentar a condenação do arguido por aquela primeira forma, a sentença recorrida chamou à colação o estatuído, conjugadamente, nos artigos 348.º, n.ºs 1 e 2, do CP, e 22.º, n.º 2, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
Recente Acórdão do STJ, para uniformização de jurisprudência N.º 5/2009, publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 55, de 19 de Março de 2009. aporta considerações pertinentes no sentido do infundado dessa conclusão.
Com efeito, e sendo certo que tal aresto se reporta a uma distinta situação de facto (condenação do depositário condutor de um veículo então apreendido em consequência de falta de seguro), não menos verdade é que a ratio da argumentação expendida aponta para que também, in casu, se não imponha tal condenação.
Permitimo-nos aqui respigar um seu excerto, concretamente quando enuncia o estrito âmbito a que se deverá reportar a aplicação do coligido artigo 22.º, n.º 2.
Escreveu-se (itálicos nossos):
“2.3.4 — O que desloca a nossa atenção para o normativo já referido: o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
Dispõe ele que «1 — A apreensão, a penhora e o arresto envolvem a proibição de o veículo circular» e que «2 — A circulação do veículo com infracção da proibição legal sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada.»
Seguramente que, à luz dos elementos até agora recolhidos, a circulação do veículo apreendido com infracção desta proibição legal sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada, como resulta da conjugação do n.º 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 54/75 com o n.º 2 do artigo 348.º do Código Penal.
Mas será aplicável esta disciplina ao desrespeito pelo depositário, de veículo automóvel apreendido, por falta de seguro, da ordem de apreensão, de forma a considerar essa conduta como desobediência qualificada (uma vez que, como se viu, quer os sucessivos códigos da estrada e os diplomas sobre o seguro obrigatório de responsabilidade civil, nunca cominaram expressamente como desobediência qualificada aquele desrespeito)?
A consideração da génese deste diploma legal e a hermenêutica impõem uma resposta negativa.
Na verdade, o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, visou remodelar a matéria de registo de automóveis, propriedade ou outros direitos ou factos com ele directamente relacionados, individualizando os respectivos proprietários, tornar possível o seu tratamento automático e dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis (artigo 1.º).
E as suas normas prendem-se, sempre, directa ou indirectamente, com questões de registo de ou sobre automóveis. Reportam-se sempre a situações que estão previstas como actos sujeitos a registo (artigo 5.º) e procuram regular procedimentos que decorrem da obrigatoriedade de registo (cf. v. g. o artigo 10.º) ou acautelar o desenvolvimento dos seus procedimentos, como a apreensão que visa acautelar a venda do veículo e o direito do credor (cf. v. g. artigos 17.º e 18.º).
Isso mesmo, aliás, consta do respectivo preâmbulo (…).
Assim, o registo dos actos a ele sujeitos abrange, além do arresto e penhora de veículos automóveis, «a apreensão prevista neste diploma» [artigo 5.º, alínea e)], expressão significativa que se refere à apreensão ordenada pelo juiz no âmbito do processo para apreensão de veículo, a que se referem os artigos 15.º a 21.º: a apreensão em virtude do vencimento e não pagamento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, do não cumprimento do contrato por parte do adquirente, ordenada pelo juiz no processo a que se reporta o artigo 15.º
Ora, é essa apreensão (ao lado da penhora e arresto de veículos, todos especialmente referidos no Decreto-Lei n.º 54/75 e sujeitos a registo) que envolve a proibição de o veículo circular e comina com o crime de desobediência qualificada (artigo 22.º, n.ºs 1 e 2) a violação de tal proibição pelo depositário e que se distingue da penhora de veículos, enquanto penhora de bens móveis, feita também através da sua apreensão, mas que foram objecto de referência distinta no mencionado artigo 22.º
Uma é a apreensão ordenada no âmbito da acção prevista no artigo 15.º, enquanto que outra é a apreensão em que, nos termos gerais das leis do processo, a qual se materializa na penhora de veículos, bens móveis sujeitos a registo. Sendo certo que a alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º usa a expressão «prevista neste diploma», visando tão-só à apreensão, não a estendendo à penhora e ao arresto.
É essa a conclusão a extrair dos textos analisados, numa hermenêutica saudável (…).
Interpretar um preceito consiste, antes do mais, em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma significação; em extrair da palavra — expressão sensível de uma ideia — a própria ideia nela condensada. Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que o texto legal traga ao espírito do jurista. É que a lei não se destina a alimentar a livre especulação individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, p. 144, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 5.ª ed., 1951, p. 24).
Diversos elementos contribuem para esse objectivo. O elemento gramatical com uma primeira função de natureza negativa, eliminadora: a de eliminar dos sentidos possíveis da lei todos aqueles que, de qualquer modo, exorbitam do texto respectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 159), tendo presente que, quanto às normas que comportam mais de um significado (sentido, pensamento), nem todos esses sentidos recebem do texto legislativo igual apoio; uns hão-de naturalmente caber dentro da letra da lei mais à vontade do que outros; os primeiros corresponderão ao sentido natural das expressões utilizadas, os outros a um sentido arrevesado, forçado. O intérprete deve, em princípio, admitir que a lei procede de um legislador que sabe exprimir com suficiente correcção o seu pensamento [...]; do simples texto da lei recebe maior impulso o sentido que melhor corresponde ao seu significado natural, ao seu alcance normal (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pp. 159 e 160).
Quando no texto da lei surgem vocábulos de sentido dúbio ou ambíguo, só o elemento lógico pode fixar o seu sentido e alcance decisivos, o que não significa que não deva esse elemento intervir mesmo quando o texto da lei é aparentemente claro, dada a possibilidade de o texto legislativo ter atraiçoado o pensamento real do legislador.
O elemento racional, a razão de ser, o fim visado pela lei (a ratio legis) e ainda nas circunstâncias históricas particulares (…) em que a lei foi elaborada (ocasio legis) contribuem para a avaliação da sua influência no espírito do legislador e, assim, para descortinar mais facilmente a disciplina que através da norma se pretendeu estatuir.
O elemento sistemático, as disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar e as disposições reguladoras dos institutos ou problemas afins (…).
E o elemento histórico, os materiais relacionados com a história da norma e que lançam alguma luz sobre o seu sentido e alcance decisivo (…).
Sintetizando, pode reter-se que se trata de estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete (…), cientes de que a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do CC), além de que, «na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas» (artigo 9.º, n.º 3).
Isto posto, é tempo de voltar aos textos implicados na solução da questão controvertida.
No que respeita ao elemento histórico, importa notar que, quer quando o Decreto-Lei n.º 54/75 foi publicado, 12 de Fevereiro de 1975, quer quando entrou em vigor, 12 de Março de 1975, ainda não tinha sido instituído legalmente o seguro obrigatório de responsabilidade civil (…), o que, já se viu, só veio a ocorrer com o Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1980.
Ou seja, o legislador do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Dezembro, não quis cominar como desobediência qualificada as situações de desrespeito pela ordem de apreensão decorrente da falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, realidade que então se não vivenciava, e que não determinava, por isso, a apreensão do veículo.
O elemento literal do preceito, que vimos ser decisivo para a solução da questão controvertida, sugere claramente que, para efeitos de qualificação do crime de desobediência, a apreensão (a que se refere o artigo 22.º) diz respeito à apreensão sujeita a registo nos termos do artigo 5.º do mesmo diploma.
Esse mesmo elemento, de alargado a todo o articulado do diploma, não fornece indicação no sentido da aplicação genérica da referida cominação a casos que não os verificados no seu âmbito.
Âmbito que, como se viu, se reporta à apreensão, penhora e arresto, envolvendo a proibição de o veículo circular, como formas de garantir a realização do registo obrigatório, ou de satisfação de crédito hipotecário vencido e não pago ou de incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade.
E é a essas realidades específicas, bem distintas da falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil na circulação automóvel, que se dirige, nada indicando em sentido diverso, designadamente quanto à sua aplicação em geral.
Como se sublinhou já, se o n.º 2 do artigo 22.º prevê que «a circulação do veículo com infracção da proibição legal sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada», o antecedente n.º 1 prescreve que «a apreensão, a penhora e o arresto envolvem a proibição de o veículo circular [...]» e os artigos 15.º e 16.º inserem-se num campo de previsão da possibilidade de apreensão do veículo e documentos nos casos de falta de registo quando obrigatório, de vencimento e não pagamento de crédito hipotecário ou de falta de cumprimento das obrigações legais que originaram a reserva de propriedade.
Se o legislador entendesse que a disciplina de tal diploma, que regula especificamente o registo da propriedade automóvel, era de natureza genérica ou que dela se revestiria a norma do artigo 22.º, n.º 2, abrangendo todas as situações de apreensão de veículos, dado o âmbito expressamente atribuído ao Decreto -Lei n.º 54/75, tê-lo-ia consagrado designadamente no Código da Estrada.
E ocasiões, como se viu, não lhe faltaram no domínio das diversas intervenções de que aquele Código foi sujeito.
Ora, como lembra o Ministério Público, faria todo o sentido, se essa fosse a sua intenção, que o tivesse feito nesse diploma. Efectivamente, foi a partir do Código da Estrada de 1994 que o legislador optou por prever uma norma a determinar a apreensão com fundamento na falta de seguro, sendo certo, por outro lado, que também não o fez em nenhum dos diplomas que regularam especificamente o instituto do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Mas, face aos n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º do Código da Estrada, a falta de seguro constitui contra-ordenação e o próprio Decreto-Lei n.º 291/07, que regulamenta actualmente o seguro obrigatório, determina a apreensão de veículo que circule sem esse seguro, remetendo a apreensão para a alínea f) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada, sem mais.
Por outro lado, a interpretação actualista do artigo 22.º, por forma a abranger a desobediência resultante da utilização do veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, traduzir-se-ia numa interpretação extensiva da norma, e agravativa da responsabilidade penal, vedada por força do princípio da legalidade.
Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 1.º do Código Penal, «não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde».
É certo que aqui não estaria em causa a analogia mas sim a interpretação extensiva, essa ainda compatível com o princípio da legalidade, uma vez que se traduz na reconstituição, em todo o seu alcance, da previsão ou incriminação da norma.
Mas, a interpretação extensiva tem igualmente limites.
Para além do pensamento legislativo que o elemento histórico nos desvendou, e que não contemplava a sua aplicabilidade à apreensão por falta de seguro obrigatório, importa notar, com Simas Santos e Leal-Henriques (…), que «o limite máximo da interpretação da lei penal é o ‘sentido literal possível’ dos termos linguísticos utilizados na redacção do texto legal. Em direito penal toda a interpretação que exceda este sentido literal possível […] deixa de ser interpretação para se converter em criação do direito por via judicial ou doutrinal e, na medida em que sirva para fundamentar ou agravar a responsabilidade, viola o princípio da legalidade.».
Finalmente, importa lembrar que o legislador do Decreto-Lei n.º 54/75, no âmbito dessa intervenção, cominou a desobediência qualificada em homenagem aos bens jurídicos que protege e que entendeu exigirem essa incriminação agravada, assim lhes conferindo uma maior protecção penal. Ponderou seguramente a circunstância de estar em causa a autoridade pública e autonomia intencional do Estado manifestada através de uma decisão judicial, no âmbito de processo movido para salvaguarda dos direitos dos interessados, como sucede no âmbito da acção prevista no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75 (…).
Dentro da liberdade de conformação que o artigo 348.º do Código Penal consagrou e a que já se fez referência, mas que não se equaciona necessariamente da mesma forma quando se trata de apreensão por falta de seguro obrigatório.
(…)”.
Em síntese, a apreensão efectivada e determinante da nomeação do arguido como depositário do veículo que depois conduziu não era das previstas no Decreto-Lei n.º 54/75, pois que a ela se não referem os n.ºs 1 e 2 do citado artigo 22.º
Por outro lado, estando vedado o recurso à analogia ou sequer a uma interpretação extensiva da norma convocada, não é possível enquadrar a sua conduta nesse normativo.
Resta, contudo, ponderar da sua possível directa subsunção à alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal que, vimos, igualmente questiona o arguido.
Cabe começar por referir que não colhe a sua argumentação quando aduz que a punição para a condução de veículo sem pagamento do imposto devido, como era o caso, é apenas ou se esgota na previsão do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio.
Manifestamente falamos de factos distintos: é que além da coima resultante da utilização de qualquer veículo compreendido no seu artigo 1.º sem pagamento do imposto, quando devido, esta sim aí cominada, do que agora se cuida é da conduta do “infiel” depositário nomeado na sequência do disciplinado pelo artigo 17.º, n.º 1 do dito diploma, onde se precisa, sublinhamos: «Independentemente das sanções previstas nos artigos anteriores, a falta de pagamento do imposto devido, nos prazos legalmente fixados, implicará a apreensão do veículo e respectiva documentação até ao pagamento do imposto em dívida, (…)».
Precisa-se no indicado artigo 348.º:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
(…)
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
(…).”
A correspondente redacção – do CP de 82 –, seu artigo 388.º, era a seguinte:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandato legítimo que tenha sido regularmente comunicado e emanado de autoridade ou funcionário competente será punido com prisão até 1 ano e multa até 30 dias.
2. A mesma pena será aplicada se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência simples.
3. A pena será de a de prisão até dois anos e multa até 100 dias se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência qualificada.”
A redacção daquela alínea b), suscitou já comentários de perplexidade, uma vez que, num código de direito penal, se plasmou assim um tipo legal de crime que, nesse concreto item, é um autêntico não tipo legal, tanta a atipicidade que comporta, em flagrante desrespeito e afronta ao princípio da legalidade criminal. Exemplificativamente, relembramos: Figueiredo Dias [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] quando expressou as suas dúvidas quanto a este artigo; Sousa e Brito [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 409], que defendeu a restrição do âmbito de aplicação do artigo pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem; por último, Maia Gonçalves, consignando que se trata de um artigo controverso [Código Penal Anotado, comentário ao art.º 348.º].
Mais do que um tipo aberto, norma penal em branco, cuja densificação cabe em último caso ao julgador, o art.º 348.º n.º 1 al. b) do Código Penal contém como elemento típico uma possível decisão discricionária, a ser tomada em cada caso concreto por um agente da administração.
Ora, isto é um ataque ao que de mais sagrado existe no direito penal, o princípio da legalidade – na formulação latina que lhe foi dada por Feuerbach: nullum crimen, nulla poena sine lege – e a um dos seus conhecidos corolários: nullum crimen, nulla poena sine lege scripta.
Só a lei formal ou a lei em sentido jurídico-constitucional estrito pode fundamentar a incriminação e a punição. Consequentemente, são inadmissíveis outras fontes de incriminação e punição [Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, Digesta, Vol. I pág.355].
Não podendo o intérprete fugir à letra da lei, já é tarefa dos tribunais, uma sua interpretação conforme a constituição o que necessariamente impõe, no caso, uma sua interpretação exigentemente restritiva, não incriminando tudo o que possa ser considerado não obediência. Desde logo fazendo valer o princípio bagatelar ou da insignificância ancorado no carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, negando dignidade criminal a algumas condutas taxadas de desobediência que nem sequer foram consideradas merecedoras de tutela por parte de uma ordem sancionatória não penal [Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354].
Por outro lado – conforme resulta hoje claramente do confronto da pré-vigente e da actual redacção do crime de desobediência, art.ºs 388.º do Código Penal de 1982 e 348.º do Código Penal de 1995 – a desobediência atípica ou inominada – art.º 348.º, n.º 1, al. b) do actual Código Penal – exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação. Ora a correspondente cominação funcional, no mínimo, atendendo ao que deixamos dito, só pode ser: faz isto ou não faças aquilo, sob pena de incorreres em crime de desobediência.
O legislador na reforma [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] teve o cuidado de acrescentar a necessidade de ser feita a correspondente cominação, que só pode ser, no mínimo, a de crime de desobediência.
Confrontando-se a antecedente alínea a) desse mesmo artigo, o que descortinamos então é que se nesta se exige, apenas, que a ordem seja legal, regularmente comunicada, emanada de autoridade competente, e «uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples», já na ora em causa o que se estatui é a exigência de «na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
No dizer de Cristina Líbano Monteiro Comentário Conimbricense ao Código Penal, 2001, pág. 350., «em ambos os casos temos, portanto, um dever qualificado de obedecer – qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal. Com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente (...)».
No caso vertente, mostra-se assente que aquando da autuação pela inexistência de dístico comprovativo do pagamento do imposto de circulação devido, o arguido foi instituído depositário do veículo, conforme citado artigo 17.º, n.º 1, sendo advertido de que não o poderia utilizar, sob pena de incorrer na prática de crime de desobediência.
Nesta perspectiva é fora de dúvida o emergir da responsabilidade decretada pelo Tribunal a quo, conquanto que como desobediência simples.
Vale por dizer da improcedência também das conclusões 1.ª a 6.ª
3.4. Último aspecto da discordância do recorrente o não haverem sido consideradas pela sentença recorrida as circunstâncias em que se aprestou a conduzir: obrigado pela entidade patronal, sob a ameaça de despedimento, sendo ele à data exclusiva fonte de sustento do agregado familiar. Seja, em enquadramento jurídico-penal: ter agido em estado de necessidade desculpante, conducente à dispensa da pena ou a uma sua espacial atenuação.
A pretensão do arguido entroncava, essencialmente, numa prévia modificação da matéria de facto: alteração dos itens 6. e 7. e aditamento de outros dois como alegou.
Esta foi tarefa malograda, desde logo, como começámos por ver.
Quid iuris então perante o acervo recolhido?
Determina-se no artigo 35.º, do CP:
«1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2. Se o perigo ameaçar interesse jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena.»
Distintamente do estado de necessidade prevenido pelo antecedente artigo 34.º, excludente da ilicitude, depara-se-nos aqui um outro excludente da culpa, para cuja verificação se impõe que o agente tenha a intenção de afastar um perigo actual, não removível de outro modo, e que este (perigo actual) ameace a vida, a integridade física, a honra, a liberdade do agente ou de terceiro (n.º 1), ou, outros interesse jurídicos diferentes desses (n.º 2), quando, em qualquer dos casos, não seja razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Decorre da matéria de facto provada que o arguido teve sempre a capacidade de avaliar o mal que constituía o exercício da condução, tanto que, solicitado pela entidade patronal para realizar um trabalho no dia 12 de Julho, logo a advertiu que não o podia fazer por o veículo estar apreendido e ele estar instituído como seu fiel depositário. Fê-lo, porém, atenta a reacção agressiva da patronal e pelo receio em perder o seu emprego.
Primeiros pressupostos para o emergir desta causa de exclusão é que o agente se mostre confrontado com um perigo actual, não removível de outro modo, e que lhe imponha o comportamento indevido.
Ora, o que se nos depara é antes um receio na perca do emprego, caso não acatasse a ordem e procedesse à condução imposta. Logo, algo futuro e conjectural que não basta para que se considere preenchida a aludida causa de exclusão da sua culpa.
O que, todavia, não obtempera a que em sede de escolha e graduação da pena seja um factor a ter em conta (como foi).
3.5. A moldura abstracta da pena considerada na decisão recorrida foi a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias. Por força da alteração ora introduzida deverá situar-se entre prisão até um ano ou multa até 120 dias.
A decisão sindicada contém assertivas considerações sobre a opção efectuada pela pena não detentiva, bem como sobre os critérios determinantes à sua fixação (número de dias e montante diário correspectivo).
Porque nada de novo releva, escusamos de os reproduzir.
Como assim, e atentando-se na novel moldura, reduz-se o quantum arbitrado, fixando-o em 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.
*
IV – Decisão.
São termos em que, na procedência parcial do recurso interposto, vai o arguido condenado enquanto autor material de um crime de desobediência simples, p.p.p. artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de cinquenta (50) dias de multa, à taxa diária de cinco (5) euros.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UC´s.
Na 1.ª instância, remeter-se-ão boletins ao registo criminal.
Notifique.
*
Coimbra, 28 de Abril de 2009