Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2075/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: INVENTÁRIO
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CABEÇA DE CASAL
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 07/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2079º, 2087º DO CC E 1345º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. É de qualificar como ordinária a administração cometida ao cabeça-de-casal, cabendo no seu conteúdo não só os poderes e deveres especificamente previstos na lei, mas também os poderes para a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acerco hereditário.
2. O património não pode ser colocado, antes da partilha, ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros ou cônjuge meeiro, apenas tendo estes o direito de exigir do cabeça-de-casal a distribuição por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam.

3. Exorbita dos seus poderes o cabeça -de -casal que procede ao levantamento das quantias em dinheiro depositadas em instituição bancária em nome do inventariado, e, de seguida, as deposita em seu nome, muito embora as tenha incluído na relação de bens.

4. O levantamento dos depósitos bancários só pode ser legalmente permitido por acordo de todos os interessados.

5. Devendo constar da relação de bens o dinheiro pertencente ao inventariado, e estando o dinheiro depositado, então devem ser relacionados os depósitos bancários em nome do inventariado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

No Tribunal de Aveiro pende inventário por óbito de A..., sendo interessados B... e os filhos de ambos, C... e D....
A interessada B..., que foi casada com o inventariado sob o regime da comunhão geral de bens, foi nomeada cabeça-de- casal, tendo relacionado como crédito da herança quantias em dinheiro que, à data da morte do inventariado, existiam depositadas no B.P.I., Balcão 322 de Aveiro –Avenida, conforme relação de bens adicional de fls. 202, perfazendo o montante global de € 77.810,34.
Após designação da conferência de interessados, pelo herdeiro D... foi requerido que a cabeça-de-casal e o outro interessado C... depositassem à ordem do Tribunal as quantias relacionadas que estavam depositadas no B.P.I, e que haviam levantado após o óbito do inventariado, conforme documentação que juntou, obtida junto daquele Banco.
Notificada desse requerimento, a cabeça–de-casal confessou ter levantado tais quantias, alguns dias após a morte do inventariado, no exercício da administração da herança, para se prover de meios que lhe permitissem efectuar o pagamento de despesas da herança, designadamente, contribuições e gastos com a administração e conservação de imóveis, e, ainda, por lhe ter chegado ao conhecimento que o filho e interessado MANUEL efectuava diligências junto do B.P.I,, assim receando o “bloqueio” das contas, ficando impossibilitada de prover ao seu sustento e despesas de saúde que a sua avançada idade lhe impõe.
Foi tal requerimento indeferido, conforme despacho exarado a fls. 293 e 293v, aí se exarando que as quantias em dinheiro estavam relacionadas, a cabeça-de-casal responde pelas quantias que levantou e o quinhão hereditário do interessado e Requerente MANUEL estava garantido pelos 12 imóveis relacionados.

Inconformado com tal decisão, agravou o interessado MANUEL, insistindo na sua tese, e extraindo da sua alegação de recurso as seguintes conclusões:
1ª- Reconhece-se no douto despacho recorrido que o Recorrente informou no processo que a cabeça de casal levantou as quantias por si relacionadas como existentes no B.P.I. e que requereu a notificação da mesma e do interessado António para as depositarem à ordem do Tribunal, mas que, embora aquela tenha confessado isso, e que portanto tais depósitos tenham deixado de existir, eles encontram-se relacionados, e por eles responde a cabeça de casal, sendo que o quinhão do Recorrente se encontra garantido, pois foram relacionados 12 imóveis, assim tendo indeferido o requerido pelo Recorrente;
2ª-Desde logo há uma contradição insanável, pois se os depósitos deixaram de existir, não podem ser relacionados, como se faz na relação adicional de fls. 202, em que apenas se fala na entidade bancária;
3ª-Por outro lado, não é exacto que o quinhão do Recorrente está sempre garantido em virtude de se terem relacionado 12 imóveis, até porque não é só isso que está em causa, mas também a segurança e a disponibilidade quase imediata do dinheiro, ao contrário da eventual execução sobre aqueles, sempre muito demorada, como é público e notório - segurança que na Banca é praticamente ilimitada;
4ª-Acresce que se trata de reparar uma ilegalidade praticada pela cabeça de casal, com a conivência do seu outro filho, na medida em que os seus poderes de administração estão confinados ao contido nos arts. 2090º e segs. do CC., que apenas lhe permitia receber os rendimentos da herança, mesmo assim sujeita a prestar contas anualmente, nos termos do art. 2093º do mesmo diploma (o que nunca fez), e nem sequer podia invocar necessidade, pois só de rendas recebeu até 9.4.2003 cerca de 3.000.000$00;
5ª-Finalmente, estamos perante uma verdadeira sonegação de bens por parte da cabeça de casal e de seu filho António, nos termos e com as consequências do disposto no art. 2098º do CC, como tudo se havia alegado no requerimento de 6.10.2004, até porque inicialmente a cabeça de casal negou a sua existência, não obstante o seu elevado montante (€ 85.144,51, além dos juros).

A cabeça-de-casal contra-alegou no sentido da manutenção do decidido, mais uma vez referindo que procedeu ao levantamento das quantias depositadas no exercício das funções de cabeça-de- casal.

Foi mantido o despacho agravado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

A factualidade com interesse ao julgamento do recurso decorre dos autos e já acima foi relatada.
Tendo em apreço as conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), a única questão decidenda consiste em saber se, no conteúdo da administração do património hereditário por parte cabeça-de-casal, a esta assiste o poder de levantar as quantias em dinheiro que existiam depositadas no B.P.I, em nome e na data do óbito do inventariado.

Como flui do disposto no art. 2079º do CC, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de- casal, e, nos termos do n.º 1 do art. 2087º do mesmo diploma, o cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido, e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal. Estes, pois, os bens que constituem o objecto ou âmbito da cabeçalato, sendo certo que cabendo o desempenho do cargo de cabeça-de-casal ao cônjuge sobrevivo é nessa qualidade que a administração é exercida Cfr. Código Civil Anotado”, vol. 6º, p. 147, de Pires de Lima e Antunes Varela. .
Especifica a lei, de seguida, os poderes e deveres do cabeça-de-casal. Assim, no exercício dos poderes de administração, pode o cabeça-de-casal pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder (art. 2088º do CC), pode, em certas circunstâncias, cobrar as dívidas activas da herança (art. 2089º do CC), bem como deve vender bens e satisfazer encargos nos termos do art. 2090º do CC. A venda de bens está limitada aos frutos ou outros bens deterioráveis do acervo hereditário e mesmo aos frutos não deterioráveis, como se vê deste último normativo.
Ressalvadas essas hipóteses, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (n.º1 do art. 2091º).
Sendo de qualificar como ordinária a administração cometida ao cabeça-de-casal, no seu conteúdo cabem não só os poderes e deveres especificamente previstos na lei, mas também os poderes para a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acervo hereditário Cfr. Lições de Direito das Sucessões”, vol. 2º, p. 55, de Capelo de Sousa, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, p. 62, de Manuel de Andrade, Partilhas Judiciais, vol. 1º, p. 304 e segs., de Lopes Cardoso e Direito Civil- Sucessões, p. 495, de Oliveira Ascensão .
De qualquer modo, a administração por banda do cabeça-de- casal está apenas ao serviço do património hereditário, que deve ser exercida com zelo e prudência (alínea b) do n.º 1 do art. 2086º do CC). O património hereditário não pode ser colocado, antes da partilha, ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros ou cônjuge meeiro, apenas tendo estes o direito de exigir do cabeça-de-casal a distribuição por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam (art. 2092º do CC).
Ora, no caso ajuizado, a cônjuge meeira, exercendo as funções de cabeça-de-casal, alegou ter levantado todos os depósitos bancários alguns dias após o decesso do inventariado, com a finalidade de pagar despesas da herança, designadamente, contribuições e impostos e gastos com a administração e conservação dos imóveis, receio de bloqueio das contas bancárias por parte do ora Agravante, seu filho, ficando, assim, impossibilitada de prover ao seu sustento e despesas de saúde, atenta a sua avançada idade. Manifestamente, não se compreende que os invocados gastos com a administração ordinária da herança justifiquem o levantamento da avultada quantia depositada (€ 77.810,34) e a forma tão célere como ocorreu, como carece de qualquer sentido poder o herdeiro MANUEL Decorre dos autos o mau relacionamento existente entre o interessado Manuel e os demais interessados (a cabeça-de-casal, sua mãe, e o irmão António). , ora Agravante, “bloquear” as duas contas que existiam no B.P.I. em nome do de cujus. Ao proceder ao levantamento de todas as quantias depositadas em nome do inventariado, e muito embora as tenha incluído na relação de bens, a cabeça-de-casal exorbitou claramente dos poderes de administração ordinária que lhe assistem no desempenho daquele cargo. Afinal, apesar de relacionado, deixou de existir qualquer depósito bancário em nome do inventariado, para passar a existir, dando crédito à alegação da cabeça-de-casal, uma conta de depósito em nome desta. E para os interessados na herança indivisa não é indiferente estar o dinheiro depositado em nome do inventariado ou em nome da cabeça-de-casal. São as quantias em dinheiro depositadas, existentes na data do óbito do inventariado e em nome deste, que integram a herança e devem ser relacionadas. Compreende-se que a cabeça-de-casal pudesse movimentar os juros dessas contas para acudir às despesas de funeral, sufrágios ou encargos da administração, mas não mais do que isso (art. 2090º, n.º2 do CC). O levantamento dos depósitos bancários, no circunstancialismo presente, só seria, pois, legalmente permitido por acordo de todos os interessados (no caso, a cabeça-de-casal e os seus dois filhos) Cfr. acórdão da Relação do Porto, sumariado no BMJ n.º 386º, p. 509). .
Sendo assim, e diversamente do entendimento perfilhado na decisão impugnada, justifica-se que a cabeça-de-casal deposite no B.P.I., como integrando o património hereditário deixado pelo falecido marido, as quantias em dinheiro que indevidamente levantou daquele Banco, fazendo prova nos autos desse depósito. Foi requerido o depósito à ordem do Tribunal, mas tal não se impõe.
É de acolher, pois, e no essencial, a tese sufragada pelo Agravante, não podendo subsistir o despacho recorrido que indeferiu o requerimento de depósito das quantias levantadas pela cabeça-de-casal.

III)- DECISÃO

Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em.
1- Conceder provimento ao recurso.
2- Deferir o requerido pelo Agravante, e, consequentemente, revogar o despacho impugnado que deve ser substituído por outro a notificar a cabeça-de-casal para proceder ao depósito bancário, pela forma acima enunciada e em prazo a conceder.
3- Condenar a Agravada nas custas do recurso.
COIMBRA, 05/07/2005