Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
404/05.2GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
EMBRIAGUEZ
ALCOOLÉMIA
PROVAS
Data do Acordão: 03/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTIGOS 292º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 125º E 355º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I- O resultado do exame de álcool no sangue realizado por expiração do ar, através de aparelho utilizado pelas autoridades de fiscalização e aprovado pelo pela entidade competente, constitui-se como prova pericial (lato sensu) preconstituida – cfr. Climent, Carlos Durán, “La Prueba Penal”, Tomo II, Tirant lo Blanch, Valência, 2005, 2183 a 2195;
II - Toda a prova tem de ser realizada em audiência de discussão e julgamento, em homenagem aos princípios da legalidade e do contraditório;
IV - Um oficio dimanado, a em satisfação de uma solicitação de um organismo administrativo e de controle de uma actividade fiscalizadora, não se constitui como meio de prova que deva ser tomado em consideração pelo julgador na assumpção e formação do juízo conviccional;
v - A assumpção na formação do juízo conviccional de um meio de prova não submetido ao contraditório e em violação ao princípio processual de aquisição da prova;
VI - Existindo no processo todos os elementos probatórios que permitam ao tribunal de recurso operar a modificação da matéria de facto deverá, depois de operada esta, proceder à apreciação do caso.
Decisão Texto Integral:
“1ª – Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da douta Sentença de fls., que absolveu o arguido I……………, pela prática de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelos artigos 14°, no 1,26°,69°, nos. 1, alínea a) e 2 e 292°, nº 1, do Código Penal;
2ª – Ao facultar ao examinando a possibilidade de o mesmo requerer a realização de contraprova, quis o Legislador conferir-lhe o direito de impugnar o primeiro teste, ou seja, de verificar a veracidade do teste quantitativo, apenas pela positiva ou pela negativa, nunca servindo para determinar o quantitativo da taxa de álcool no sangue, dado que a contraprova não é a mesma coisa do que prova do contrário ou de factos diferentes;
3ª – Razão pela qual o Tribunal a quo deveria ter atendido ao resultado da prova efectuada pejas 2.42 horas do dia 14/09/2005, no valor de 1,27 g/I. e não ao teor do resultado da contraprova;
4ª – Ao ter decidido de forma diversa violou a douta Sentença a quo o disposto no artigo 153°, nº 3, alínea a), do Código da Estrada, o disposto nos artigos 1°, nº 1 e 2º, nº 1, ambos do Decreto Regulamentar no 24/98, de 30 de Outubro e 346°, do Código Civil;
5ª – Pelo que a douta Sentença a quo deverá ser substituída por outra que considere provado que o arguido I……………….., quando submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho “Seres “, modelo “679 T”, no de série “2395”, acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,27 g/l.;
6ª – “OS tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”;
7ª – Pelo que não deve obedecer a uma instrução veiculada pelo Exmo. Sr. Director Geral da Direcção Geral de Viação, instrução essa veiculada pela Circular no 101/2006 do Conselho Superior da Magistratura;
8ª – As competências e observância das regras legais e técnicas na aprovação dos Alcoolímetros estão definidas na Lei e são pertença do Instituto Português da Qualidade;
9ª – As competências de aprovação no uso de tais instrumentos de fiscalização do trânsito são pertença da Direcção-Geral de Viação;
10ª – Razão pela qual não podia a Mma. Juiz a quo ---- sem ter dado possibilidade do contraditório ao Ministério Público ---- deduzir, novamente, a margem de erro legalmente admissível, à taxa de álcool apresentada pelo arguido;
11ª – Não só porque tal possibilidade lhe estava legalmente vedada, mas também porque “o aparelho em causa nesta actuação (marca Seres modelo 679 T, com o nº de série 2395) foi submetido ao controlo metrológico do IPQ em 2005-09-14, através do qual os erros máximos admissíveis estabelecidos na regulamentação em vigor são objecto de verificação, como se comprova do Relatório de Ensaio”;
12ª – Pelo que ao assim ter decidido, violou a douta Sentença a quo o disposto no artigo 203°, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 1º, nº 2, 6°, nº 2 e 8°, nº 1, alíneas a) e b), todos do D.L. nº 291190, de 20 de Setembro, o Preâmbulo e os artigos 4° e 6°, alíneas a), b) e c), todos da Portaria no 748/94, de 13 de Agosto e do Despacho no 8036/2003, publicado no Diário da República de 28 de Abril de 2003, pág. 6454, na IIª Série;
13ª – Razão pela qual deverá ser substituída por outra que condene o arguido Igor Figueiredo Durão pela prática, em autoria material de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 14°, nº 1,26°,69°, nºs. 1, alínea a) e 2 e 292, nº 1, todos do Código Penal, de acordo com a gravidade e exigências cautelares de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir”.
O arguido não respondeu e nesta instância o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto emitiu diserto parecer em que: “[…] Quanto à primeira questão, cremos, e por força do disposto no artigo 153.°, 6, do Código da Estrada que o resultado da contra prova prevalece sobre o resultado inicial.
Daí que, in casu, o valor da taxa de alcoolemia a atender será o de 1,27g/l, ou seja, o valor da contraprova, como, aliás, foi entendido pelo magistrado do Ministério Público que deduziu a acusação de fls. 70/71.
Quanto à segunda questão, afigura-se-nos, assistir razão ao recorrente.
Com efeito, o artigo 203° da Constituição não deixa margem para qualquer dúvida – “Os tribunais… apenas estão sujeitos à lei”.
Ora uma circular é uma ordem de serviço ou instrução emanada de qualquer superior para os seus subalternos (cfr. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8ª ed. 1°, pág. 238) a que os tribunais, como é manifesto, não estão vinculados.
Cresce que o próprio Código da Estrada, no seu arfo 170° no 4, determina que os resultados obtidos através de aparelhos aprovados e utilizados na fiscalização de trânsito, como é o caso, fazem fé até prova em contrário, não abrindo aí margem para qualquer correcção, designadamente por via de circulares emitidas pela DGV – assim foi entendido no Acórdão desta Relação de 21.11.07, proferido no Proc. n.º 83.07.2GTV/S.C1.
Por outro lado e como se sumariou no ACRL de 03.10.07, Proc. n.º 4223/07-3 ..”Inexiste qualquer fundamento para, em momento posterior à certificação do aparelho medidor, nomeadamente na ocasião em que o agente de autoridade está a proceder a acção de fiscalização, serem considerados quaisquer valores de EMA (erros máximos admissíveis) a deduzir ao valor apurado pelo aparelho alcoolímetro quantitativo. Tais EMA são relevados e ponderados no momento do controlo metrológico e antes da certificação pelo IPQ ser atestada. A partir desse momento, os valores a ter em conta para efeito de determinação e quantificação da taxa de álcool no sangue, são aqueles que o alcoolímetro detectar e a que corresponde o valor inscrito no talão emitido pelo alcoolímetro quantitativo. Quaisquer deduções que a esta TAS sejam feitas carecem de fundamento legal e mesmo de suporte técnico-científico.
A ser assim, pois, a decisão recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, ao ter dado como provado que o arguido apresentava uma taxa de alcoolemia de, pelo menos, 1,14 g/1, inferior à apurada pelo alcoolímetro e impressa no correspondente talão.
E, porque tal vício pode ser corrigido pelo tribunal de recurso, dada a prova documental existente, ou seja, o talão impresso que contém a TAS, pode outrossim decidir da causa e, consequentemente, alterando a matéria de facto dar como provado que o arguido nas circunstâncias de tempo e de lugar constantes do ponto 1 conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1, 27g/l e desse modo integrando a sua conduta o crime previsto e punido no artigo 292.° do Código Penal.
Termos em que se opina, pois, pela procedência do recurso devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelo artigo 292.° do Código Penal.”
Assumindo-se o âmbito de cognoscência do recurso pelo resumo conclusivo apresentado pelo recorrente constata-se a existência de uma única questão a equacionar: - erro notório na apreciação da prova – nº 2, alínea c) do artigo 410º do Código de Processo Penal – por violação do estabelecido no artigo 153º, nº 3 do Código da Estrada.
II. – Fundamentação.
II.A. – De Facto.
Para a decisão que ditou cevou-se o tribunal na factualidade que a seguir se deixa transcrita.
“1. No dia 14 de Setembro de 2005, cerca das 2 horas e 42 minutos, o arguido tripulava o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 13-08-FQ pela Estrada Nacional n.º 1, ao km 95, Moleanos, Alcobaça.
2. Naquela ocasião foi o arguido submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho Seres, modelo 679T, n.º de série 2395 e acusou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,14 g/l, correspondente à TAS de 1,23 g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível.
3. O arguido sabia que tinha ingerido álcool antes de iniciar a condução e, mesmo assim, não se absteve de o fazer, admitindo como possível a verificação daquela taxa de alcoolemia e, conformando-se com tal possibilidade, ainda assim quis conduzir.
4. O arguido agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida por lei.
5. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., o arguido ia percorrer uma distância de cerca de 30 km e transportava no veículo que conduzia uma pessoa.
6. O arguido é solteiro e não tem filhos.
7. Mora com os pais em casa destes.
8. É servente de pedreiro e aufere um vencimento mensal de € 430,00.
9. Contribui com € 100,00 mensalmente para as despesas domésticas.
10. Tem o 9.º ano de escolaridade.
11. Confessou parcialmente os factos de que vem acusado.
12. Necessita da carta de condução para o exercício da sua profissão.
13. Não tem antecedentes criminais.
B) Factos não provados
Não se provou que:
a) O arguido nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. conduzia o veículo automóvel com uma TAS de 1,27 g/l.
C) Motivação da matéria de facto
A convicção do tribunal acerca da factualidade dada como provada assentou no conjunto da prova produzida e examinada em julgamento, nos seguintes termos:
- nas declarações do arguido que confessou parcialmente os factos de que vem acusado, designadamente, que conduzia o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. não obstante saber que não o podia fazer por ter ingerido bebidas alcoólicas.
Foi ainda com base nas declarações do arguido e das testemunhas Fernando Luís e César da Silva, amigos do arguido e que depuseram por forma a merecer a credibilidade por parte do tribunal, que este deu como provados os factos relativos à sua situação familiar, económica, social e profissional.
O tribunal atendeu ainda às declarações do arguido no que diz respeito aos factos vertidos em 5.
No que concerne à taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido, o tribunal atendeu ao talão constante dos autos a fls. 5 e respeitante à contraprova, ao qual deduziu a margem de erro legalmente admissível estabelecida em Recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal e na Portaria n.º 784/94, de 13/08 por remissão para a norma NFX20-701, conforme determinado pela Direcção Geral de Viação e veiculada pela Circular n.º 101/2006 do Conselho Superior da Magistratura, tendo necessariamente que dar como não provado o facto vertido em a).”
II.B. – De Direito.
II.B.1. – Erro Notório na Apreciação da prova.
Da prova documental (assinada pelo arguido) inerida no processo constam – cfr. fls. 5 – dois talões ambos com data de 14.09.05. Um primeiro onde, para além dos dizeres inerentes ao aparelho Seres Ethylometre, modelo 679T com o número de série 2395, se encontra inscrito a referência horária: 02:42 e verificada uma TAS de 1,27 G/L (sangue) e um outro em a referência horária inserta é 03:01 e a TAS é de 1,23 G/L (sangue). Neste segundo talão (itera-se assinado pelo sujeito submetido a exame) encontram-se insertos os seguintes dizeres (à mão) “CONTRA-PROVA”. Toda esta informação foi transportada para o auto de notícia – cfr. fls. 2 – no apartado sujeito à epigrafe “Informações Complementares”.
Para chegar à taxa que propinou ao arguido a exculpação pelo delito por que se encontrava acusado o tribunal lançou mão da sequente justificação “No que concerne à taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido, o tribunal atendeu ao talão constante dos autos a fls. 5 e respeitante à contraprova, ao qual deduziu a margem de erro legalmente admissível estabelecida em Recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal e na Portaria n.º 784/94, de 13/08 por remissão para a norma NFX20-701, conforme determinado pela Direcção Geral de Viação e veiculada pela Circular n.º 101/2006 do Conselho Superior da Magistratura, tendo necessariamente que dar como não provado o facto vertido em a).”
Incoamos por constatar a disparidade jurisprudencial (conhecida) que ziguezagueia entre duas posições: uma que estima que o valor da TAS a atender para balizar a conduta ilícita do condutor sujeito a exame mediante a expiração do ar e consequente incriminação a efectuar deverá ser aquela que resulta da taxa verificada pelo alcoolímetro deduzida a margem de erro máximo; e uma outra que estima que a TAS determinante para a subsunção da conduta do arguido ao preceito incriminatório deve ser deve ser aquela que resulta da verificação obtida pelo aparelho sem dedução de qualquer margem de erro. Norteados por uma única preocupação ilustrativa respigamos, da Relação do Porto, dois arestos em que se planteiam as duas posições elencadas, um datado de 12.12.2007; proferido no proc. nº 0746058; e outro datado de 12.12.2007, proferido no proc. Nº 0744023 e da Relação de Lisboa os acórdãos proferidos em 18.10.2007 e 23.10.2007; proferidos, respectivamente, nos processos 7213/07; 7089/07 e 7226/07 (estes dois últimos do mesmo Relator e com um voto de vencido de um adjunto).
Em nosso juízo a questão enunciada no proémio deste apartado não se prende, salvo o devido respeito, com a existência de um vicio de julgamento – erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável entre a decisão de facto e a fundamentação, como também já vimos defendido – mas, antes, deverá atinar com o regime legal de apreciação e valoração da prova obtida para o processo e do ónus probatório que impende sobre os sujeitos processuais.
A fixação judicial dos factos desenrola-se num marco institucionalizado de regras processuais que condicionam a obtenção do conhecimento e que se encaminham, bem a assegurar uma resposta mais ou menos rápida que num determinado momento ponha fim ao conflito de maneira definitiva (as regras de “limitação temporal”, o efeito do “caso julgado” e as que se dirigem a prover uma resposta judicial no caso de incerteza constituem exemplos dessas regras), bem a garantir outros valores que, junto com a obtenção da prova, se consideram dignos de protecção. Por derivar da institucionalização dos processos podemos chamar a estas regras – para as diferenciar das garantias epistemológicas ou de verdade – garantias institucionais.
“[…] as regias procesaIes podrían entenderse entonces, desde este punto de vista, como los esquemas teóricos desde los que se conocen los hechos en el proceso. En otras palabras, las regias institucionales sustituyen los critérios propios de la libre adquisición del conocimiento por otras autorizados juridicamente.” […] La institucionalización del proceso, sin embargo, incorpora – o puede incorporar – importantes excepciones a esta regla, estableciendo lirnitaciones, sea sobre los medias de prueba, sea sobre las fuentes de prueba. Podemos hablar, por simplificar, de limitaciones probatórias”.
“[…] Si los médios de prueba son los instrumentos o las actividades a través de las quales se introducen en el proceso pruebas (información) para reconstruir la realidad de los hechos de la causa, parece claro, conforme a la regla epistemológica enunciada, que cualquier médio de prueba que pudiera aportar información de interés para el proceso debería ser admisible; es decir, la regla epistemológica que rige com carácter general el uso de medios de prueba es Ia existência de un numerus apertus de los mismos. Por elIo, se excepciona esta regla cuando los sistemas probatorios institucionales adoptan el critério del numerus clausus; o sea, cuando no reconceen con carácter general otros medios de prueba que los expresamente regulados por la ley. Cierto que en esa regulación legal taxativa la mayoría de los sistemas probatórios contemplan todos los medias de prueba tradicionales, por lo que en este sentido no parece que se planteen particulares problemas. Si la limitación tiene importancia es, sobre todo, porque entorpece la incorporación de los nuevos avances probatórios, que no tendrían cabida en una interpretación restrictíva de la norma. De todas formas, no es esta ni la única ni la más grave limitación a la regia epistemoIógica comentada, pues es casi siempre posible hacer una interpretación extensiva de los medios de prueba tradicionales legalmente contemplados que permita la inclusión en eIlos de esos nuevos avances probatórios. La limitación más importante al uso libre de medios probatórios tiene lugar cuando se establece que no se podrán probar ciertos hechos más que com determinados medios de prueba prefijados por la ley, pues en estos casos resulta ciertamente difícil hacer una interpretación de la norma legal conforme con las exigências de la regla epistemológica”. Para um maior desenvolvimento sobre a temática da actividade probatória em processo penal veja-se Marina Gascón Abellán, em “Los Hechos en el Derecho – Bases Argumentales de la Prueba”, Marcial Pons, Madrid, 2004.
A actividade probatória de aquisição e produção de prova para cognoscibilidade do tribunal dos enunciados fácticos que lhe são propostos pelo libelo acusatório decorre da institucionalização de determinados princípios e está vinculada ao princípio da legalidade. Nenhuma prova pode ser produzida em tribunal nem o tribunal pode dela tomar conhecimento sem que: a) deva ser produzida perante o tribunal; b) que na sua produção sejam observados regras e procedimentos não intrusivos e violadores da pessoa humana; c) que seja assegurada aos sujeitos processuais as garantias de que toda a prova produzida é passível de ser contraditada e escrutinada pelo tribunal em audiência pública; d) que nenhuma prova ficará a cargo daquele que está coberto pelo princípio de presunção de inocência.
Toda a prova deve ser produzida perante o tribunal em audiência pública – cfr. artigo 355º do Código de Processo Penal – ficando vedado ao tribunal formar a sua convicção com quaisquer provas que não hajam sido produzidas perante si, com a excepção contida no nº 2 do preceito citado. Este principio conecta-se com aqueloutro consagrado no artigo 340º do mesmo livro de leis segundo o qual o tribunal não está sujeito às provas aportadas pelos sujeitos processuais antes lhe está cometida uma ampla averiguação da verdade subjacente aos enunciados fácticos que lhe são definidos pela acusação. O estabelecimento do princípio da investigação ou da averiguação da verdade material-processual sofre, porém, das limitações contidas na alínea b) do nº 4 do preceito citado por inadequação dos meios de prova para o fim probatório almejado. Para além do princípio da ponderação, proporcionalidade dos meios de prova a admitir para prova de determinados enunciados fácticos aflora nesta regra, com toda a plenitude, o principio cardeal e axial da produção de prova, a saber o principio da legalidade – cfr. artigo 125º do Código de Processo Penal.
Do que se deixou perfunctoriamente aflorado ressalta uma regra procedimentar para o tribunal na actividade probatória a desenvolver para a validação ou infirmação dos enunciados fácticos que lhe são propostos, qual seja a de que toda a prova é institucionalizada, ou seja produzida segundo determinado ritual e com determinado objectivo, e que na actividade probatória o tribunal não se pode afastar das regras procedimentares estabelecidas estando-lhe vedada a produção de prova que não haja sido sujeita ás regras do contraditório e da aquisição probatória arrimada ao processo em que devam ser utilizadas.
Feito este excurso pelas exigências que ao julgador são fixadas na actividade probatória a desenvolver na descoberta da verdade material-processual talvez seja conveniente analisar e fixar jurídico-processualmente o tipo de prova que se evidencia nos testes ou exames de álcool pela expiração do ar.
A doutrina assinala à prova de medição de alcoolemia a designação de prova pericial (lato sensu) preconstituída.
Escrevendo acerca da natureza e implicações processuais que se imbricam neste tipo de prova discorre Carlos Climent Durán que “la medición del grado de alcoholemia es una prueba preconstituida por los funcionarios policiales que la practican. Dadas las circunstancias en que se practica, com toda urgência o perentoriedad, para procurar apreciar en qué estado de intoxicación etílica se hallaba en el momento mismo de ir conduciendo, y teniendo presente su irrepetibilidad, há de realizarse com exclusiva intervención policial. De ahí que se puede decir que es una prueba policial preconstituida” ou como afirmou o Tribunal Constitucional (Espanhol) na sentença nº 145/1985, de 28 de Outubro trata-se “[…] de una prueba pericial «lato sensu», realizada policialmente, y que queda así preconstituida por razón de su irrepetibilidad durante el acto del juicio oral”.
“[…] Como se trata de una prueba policial preconstituida, que es irrepetible en las mlsmas condiciones y circunstancias como originariamente se efectuo, es preciso que se realice com el máximo de garantias posibles”.
“Estas garantias son las que se refieren al debido cumplimiento de la normativa sobre la medición del grado de alcohoiemia. En dichos preceptos se reconoce el derecho a negarse a realizar la prueba de alcoholemia, sin perjuicio de la responsabilidad criminal en que podrá incurrir por el delito tipificado en el artículo 380 del Código Penal, el derecho a una segunda medición de contraste y a realizar un análisis de sangre, así como a hacer cuantas observaciones estimen pertinentes que se consignarán en el acta policial que al efecto se levante, y también a firmar al pie de dicha acta. En cualquier caso, y atendida la urgência y premura com que se hace la medición del grado de aIcohoIemia, no es exigible que se realice com asistencia del abogado defensor del imputado.
[…] La realización de la prueba de alcoholemia no supone la vulneración de ningún derecho fundamental. La jurisprudência del Tribunal Constitucional se há referido expresamente a la no vulneración del derecho a no declarar contra sÍ mismo y también a la no lesión del derecho a la libertad personal.
La jurisprudência del Tribunal Constitucional también rechaza que la práctica de la prueba de alcoholernia conlleve una lesión del derecho a la libertad personal o de cualquiera de las garantias reconocidas a toda persona detenida en el artículo 17.3 de la Constitución.
El acta policial, levantada com ocasión de haberse efectuado la medición del grado de alcoholemia, constituye una prueba preconstituida que, por sí sola, es inapta para poder fundamentar validamente una sentencia condenatória, com la consiguiente destrucción de la presunción de inocência de que goza el acusado.
Se hace preciso que, además de dicha acta policial, que consta en el atestado com que se inicia el correspondiente procedimiento penal, se practique alguna outra prueba que corrobore la realidad de lo consignado en tal acta o que, al menos, se refiera a la realidad del hecho delictivo enjuiciado”. Cfr. Carlos Climent Durán, in “La Pruebe Penal”, 2ª edición, Tomo II, Tirnat lo Blanch – Tratados, Valência, 2005, pags. 2183 a 2195.
Em nosso juízo a classificação ensaiada pelo tratadista espanhol resulta adequada ao tipo de prova recolhida através de meio técnico autorizado e apto à mediação de uma substância gasosa desprendida pela existência de uma determinada percentagem de álcool existente ou em circulação no sangue do organismo de uma pessoa.
Descartando dos estudos que dão conta das incidências cientificas que permitem a medição do álcool no sangue Cfr. a comunicação de Maria Céu Ferreira e António Cruz, “Controlo Metrológico de Alcoolímetros no Instituto Português da Qualidade”, no 2º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia, em 17 de Novembro de 2006. temos para nós que a resolução da questão que nos é colocada haverá que passar pela análise da actividade probatória do tribunal e dos meios de prova utilizados para dar como provado um enunciado fáctico (que, aliás, lhe não foi proposto no libelo acusatório) em detrimento de um outro.
O arguido foi sujeito a julgamento mediante acusação do Ministério Público, por no dia 14.09.2005, cerca das 02h. e 42 minutos, quando conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 13-08-FQ pela Estrada Nacional n.º 1, ao km 95, Moleanos, Alcobaça ter sido submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho Seres, modelo 679T, n.º de série 2395 e acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,27 g/litro e tendo sido submetido a contraprova às 03 h. e 01 veio a acusar uma TAS de 1,23 g/litro de álcool no sangue. O arguido confessou parcialmente os factos e sabia que tinha ingerido álcool antes de iniciar a condução e, mesmo assim, não se absteve de o fazer, admitindo como possível a verificação daquela taxa de alcoolemia e, conformando-se com tal possibilidade, ainda assim quis conduzir. Com estes elementos constantes do processo o julgador viria a dar como não provado que o arguido conduzia com uma TAS de 1,27 mas sim de 1,14.
Para dar como não provado o facto constante do enunciado proposto pela entidade acusadora – 1,27 – e dar como provado o derradeiro dos valores indicados o tribunal convocou e importou para a sua actividade probatória um oficio circular do CSM que capeia um oficio da defunta DGV.
A questão, em face do que ficou dito supra, prende-se com averiguar da legitimidade processual-probatória para aportar para este julgamento um elemento indicativo, exterior à actividade vinculada e confinada a que o tribunal está adstrito e aquilatar da validade substantiva desse “meio ou elemento de prova” para prova do valor que veio a ser fixado.
Em nosso juízo o tribunal não pode importar ou convocar para um determinado processo um elemento informativo que se destina a fornecer indicações de índole e carácter genérico relativamente a um processo de aferição de um instrumento destinado a produzir, quando devidamente autorizado e calibrado, um valor correspondente a uma medição decorrente de um processo fisiológico desprendido pelo organismo humano. O oficio da defunta DGV não pode representar outra coisa senão um alerta indicativo de que ocorrendo qualquer situação de dúvida os valores variáveis a considerar poder-se-ão situar dentro dos limites referenciados no mapa inserto. Não afirma, nem o poderia fazer, que numa ou noutra situação devidamente comprovada a variação ou margem de erro deverá sempre, e independentemente do tempo que mediou entre a aferição e a utilização do aparelho de medição, ter um valor referido. Aliás os valores vêm antecedidos de dois sinais indicativos de “mais ou menos”. Não pode um oficio genérico despovoar e despejar a actividade probatória concreta e cingida a um processo e que nele deve e tem de ser produzida pela singela razão que não possui aptidão para excluir a necessidade processual de todas as provas serem produzidas perante o tribunal e pelos sujeitos involucrados. Ao fazê-lo o tribunal está a utilizar um meio de prova que não pode ser sujeito ao princípio do contraditório pelo sujeito que afecta, neste caso o Ministério Público. Qual a possibilidade que o Ministério Público tem para num determinado caso contrapor aos valores de erro máximo indicados no oficio? Como saber-se se naquele caso concreto o alcoolímetro não tinha acabado de ser aferido e a margem de erro é inexistente ou desprezível? Como contrariar a asserção contida no oficio de que ainda que aferido há já algum tempo o aparelho não apresenta desvio, v.g. pela qualidade do aparelho, e que a margem de erro é nula? Como indicar a margem correcta e exacta do erro, sempre tendo em consideração a falibilidade da máquina e o seu valor depreciativo do ponto de vista técnico? Em que limites se deve situar essa margem de erro e qual a sua variabilidade?
Do nosso ponto de vista um ofício que se limita a fornecer indicações não é meio apto e idóneo para justificar, num caso concreto sujeito à apreciação de um tribunal, um valor distinto daquele que foi verificado num exame efectuado através de um aparelho aferido e posto à disposição das forças de segurança para produzir determinada prova a analisar e valorar por um órgão jurisdicional. Tratando-se de um meio de obtenção de prova pericial preconstituída e tendo sido asseguradas ao examinado todas as garantias de defesa não pode o tribunal recorrer a um elemento alienígeno e não vinculado e escrutinado na actividade probatória do tribunal para desfeitear o resultado obtido pela medição realizada. O tribunal está vinculado ao resultado obtido pelo meio de obtenção de prova aprovado e legalmente aceite para a produção de determinadas perícias (lato sensu) pelo que ao desvincular-se do principio da legalidade da prova e da possibilidade de os sujeitos processuais, em sede adequada, vale dizer em audiência de julgamento, infirmarem o resultado violou:
1) - o principio da legalidade ao admitir um meio de prova não institucionalizado, portanto exterior à actividade probatória vinculada e permitida aos sujeitos processuais;
2) – o principio do contraditório por ter feito intervir no processo de formação da sua convicção um factor de indução cognitiva não admitido e escrutinado em audiência.
Nem a falta de comparência do agente de autoridade autoriza o tribunal a não considerar a prova recolhida por ele e segundo as regras e garantias estipuladas na lei. A este propósito decidiu o Supremo Tribunal espanhol que “[…] pese a la incomparecencia en el acto del juicio oral de los policias que realizaron la medición de la alcoholemia, es factible fundamentar una sentencia condenatória apoyándose en alguna outra prueba de cargo diferente del atestado policial, porque com solo este no es posible destruir la presunción de inocência del acusado.
Dice, a este respecto, la Sentencia del Tribunal Constitucional 145/1987, de 23 de septiembre que la confesión del próprio acusado reconociendo haber ingerido bebidas alcohólicas es prueba suficiente para dictar un pronunciamiento condenatório”.
De tudo o que queda dito concluímos pela violação dos princípios basilares da apreciação da prova e pela necessidade de modificação da matéria dada como adquirida para a decisão, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal.
Assim, e porque do processo constam todos os elementos que permitem proceder à modificação da decisão de facto, procede-se à modificação do facto indicado na decisão revidenda sob o nº 2 ficando o facto assinalado sob esse número a conter a sequente asserção:
“2. Naquela ocasião foi o arguido submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho Seres, modelo 679T, n.º de série 2395 e acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,23 g/l.
Em face da modificação factual operada a conduta do arguido passará a ser subsumível à previsão do artigo 292º do Código Penal, por a TAS ultrapassar o limite fixado pelo legislador para lhe atribuir relevância jurídico-penal.
Dispõe o artigo 292.º,nº1 do Código Penal, que: «quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
O arguido, de acordo com o demais provado na decisão de facto constante da decisão sob impugnação, circulava na via pública depois de haver ingerido bebidas alcoólicas sabendo que para o exercício da condução devia estar liberto de factores externos que lhe pudessem entorpecer a sua aptidão e capacidade de reacção que são requeridos numa condução prudente e respeitadora das regras estradais. A indicação legal de um limite a partir do qual o legislador entende que o valor de álcool no sangue é susceptível de pôr em crise valores relevantes da sociedade como sejam a segurança rodoviária e a vida de cidadãos que utilizam as vias públicas é atestado pela natureza do tipo de crime estatuído no preceito incriminador. [ Cfr. a este propósito Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, em que se doutrina que o crime previsto no artigo em questão é um crime de perigo abstracto, que não pressupõe a demonstração da existência de um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos (segurança da circulação rodoviária). Tal significa que o perigo não faz parte dos elementos típicos do crime, existindo apenas uma presunção por parte do legislador de que a situação é perigosa em si mesma, ou seja, que na maioria dos casos em que essa conduta teve lugar demonstrou ser perigosa sob o ponto de vista de bens jurídicos penalmente protegidos. Daqui resulta que para o preenchimento deste tipo legal de crime é de todo em todo irrelevante que a condução (ou da condução) com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l tenha resultado qualquer perigo ou que o percurso (percorrido ou a percorrer) seja curto ou longo, pelo que a procura da demonstração de tal circunstancionalismo é de todo em todo irrelevante e inócua para a apreciação da prática deste tipo legal de crime.]
À prática do crime previsto e punido pelo artigo 292.º, nº1 do Código Penal está associada a imposição de uma pena acessória prevista no artigo no artigo 69.º, nº 1, alínea a) do Código Penal. Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça através de acórdão de fixação de jurisprudência, publicado no Diário da República, I.ª-A, de 20 de Julho de 1999: «o agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 77/2001, de 13/7».
Impõe-se, após a subsunção operada, proceder à escolha e determinação da medida da pena.
II.B.2. – Individualização Judicial da Pena.
“A pena há-de entender-se acima de tudo como marginalização do facto no seu significado lesivo para a norma e, com tal, como constatação de que a estabilidade normativa da sociedade permanece inalterada; a pena é confirmação da identidade da sociedade, isto é, da estabilidade normativa, e com a pena se alcança sempre este – se quer – fim da pena.
A função manifesta da pena de confirmar a identidade da sociedade não exclui o aceitar como função latente una direcção da motivação: a repetida marginalização do facto e a confirmação da estabilidade social exclui formas de comportamento delitivas do repertório das sugeridas por donde quer, quando não incluso recomendadas, em outras palavras, na planificação quotidiana normal não se reflecte em primeiro lugar acerca da possibilidade de um proceder delitivo. Esta é a denominada prevenção geral positiva como função latente da pena. A ela também se lhe pode associar ainda um efeito intimidatório, quer dizer, una prevenção negativa, e outros mais”. Cfr. Günther Jakobs, in “Dogmática de Derecho Penal y la Construcción Normativa de la Sociedad”, Thompson- Civitas, Madrid, 2004, pág. 41
A propósito dos fins das penas, da medida concreta da pena e do princípio da proporcionalidade, doutrinou o nosso mais Alto Tribunal em dois arestos que se deixam transcritos a seguir.
“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade)” – (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2007; proferido no processo nº 28/07)
“O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça.
[Deve na determinação concreta da pena atender-se ao] “grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente); – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
4 – A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura. – (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.02.2007).
A defraudação na vigência das normas manifestada pela conduta infraccional de um sujeito devem conferir ao órgão formal de controle a possibilidade de aquele concreto individuo se manter numa atitude de afirmação negativa e portanto reflectir na escolha da pena o grau de necessidade de validação da norma violada pela intensificação do sancionamento com que o sujeito deve reflectir a sua assumpção e recolocação no espectro vivencial positivo que o ordenamento vigente lhe impõe.

A pena constitui-se como um instrumento para resolver defraudações de expectativas que não podem ser estabilizadas de outra maneira. Trata-se de um expediente jurídico-social que consiste em demonstrar à custa do defraudante que se mantém a expectativa comunitária que reverbera no ordenamento jurídico. «O autor determinou-se e executou a sua conduta sem consideração pela vigência do Direito. Na medida em que isso implica a afirmação que a norma o não vincula, haverá que contraditá-lo através da pena (este é o significado da pena)» Cfr. Günther Jakobs, “La Pena Estatal: Significado e Finalidad”, Tradução de Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez, Thompson, Civitas, 2006, pag. 142.Com a aplicação de uma pena pretende-se alcançar a manutenção da norma como esquema de orientação, prevenção «porque se persegue um fim, precisamente, a manutenção da fidelidade á norma, e isso, concretamente, com respeito á sociedade no seu conjunto, por isso, geral».
A pena terá que, ao assumir-se como função de manutenção da vigência da norma, ter como medida o peso da norma violada e a medida da sua vulneração; a situação de asseguramento cognitivo dessa norma; a responsabilidade do autor pela sua motivação do cometer o crime. O princípio da culpabilidade, ou a densificação da materialidade volitiva posta na execução de uma conduta, no que quer que isso possa ser mensurável, há-de, segundo o artigo 40º do código vigente, conferir a medida da pena.
No caso concreto da escolha e individualização da pena colhe o ensinamento da Professora Pilar Gómez Pavón, quando afirma que “parece existir uma corrente, em certo sentido maioritária, contrária à aplicação de penas privativas de liberdade aos delinquentes de tráfico, ainda quando as legislações as assinalem, em concreto para a condução sob a influência do álcool ou estupefacientes” Vide Pilar Gómez Pavón, El Delito de Conducción bajo influencia de bebidas alcohólicas, drogas toxicas o estupefacientes, 3ª edición, Bosch, Barcelona, 1998, p. 214.
No mesmo sentido vai a opinião de Ignacio Rodriguez Fernández, “La Conducción bajo la influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas”, Estudos de Derecho Penal y Criminologia, Editorial ComaresGranada, 2006, p. 180 e segs. bem assim de Rosário de Vicente Martinez, in “Derecho Penal de le Circulación. Delitos de violência Vial”, Bosch, Barcelona, 2006, p.292 e segs.. Para esta Professora Titular de Direito Penal da Universidad Complutense de Madrid, perfilhando a opinião de Kaiser, que considera que, em geral, se pode prescindir das penas privativas de liberdade, já que “com”arreglo” ao saber experimental actual se pode estabelecer, ao menos, que as penas curtas privativas de liberdade impostas cada vez mais a delinquentes de tráfico durante o período em que se contrai o “informe” não permitem reconhecer um efeito educativo visível” e por outro lado “a debilitação da penalização e o seu manejo mediante arresto de fim de semana e prisão para pecadores de tráfico não podem fazer esquecer que aqui se podem prescindir em geral da penas privativas de liberdade, já que são inseguras no seu modo de operar e em todo caso não são necessárias” (as traduções são nossas).
Para esta autora, citada pelo autor indicado infra, são duas as razões principais que se enovelam quando há que opcionar pela consagração legal de penas privativas de liberdade para infracções deste tipo, em que não estão, de ordinário, em causa delinquentes anti-sociais ou de tendência desvalorativa densa ou de levado perigo para os valores essenciais da comunidade. Um primeiro é a consagração mesmo de penas curtas de prisão para este tipo de delitos e o segundo é que não está provada a eficácia das penas curtas de prisão para um combate eficaz e sereno aos delitos de tráfico. A discussão colocou-se a propósito da alteração operada em Espanha para este tipo de delitos na revisão do Código penal de 1995,e mais recentemente com a Ley Orgánica 15/2003, de 25 de Novembro, que alterou a anterior penalidade, e porque a pena cominada no anterior ordenamento previa a pena de prisão por fins de semana (de oito a doze fins de semana) enquanto que o actual prevê pena de prisão de três a seis meses ou multa de seis a doze meses – cfr. artigo 379º do Código Penal espanhol.
Citando Kaiser refere que os dados obtidos na praxis judicial da República Federal da Alemanha vão no sentido do escasso efeito da agravação das sanções, «já que depois de um primeiro momento em que o número de delitos diminuiu, este volveu a aumentar até se quedar na mesma situação de antes». Assim «pelas razões anteriormente apontadas haverá que ter em conta que parte desses delinquentes pertencem a camadas da sociedade que não podem considerar-se como “marginadas” e que não precisam igual tratamento penitenciário, pois as suas perspectivas de reinserção social são muito diferentes às dos resto dos condenados, o que levou alguns autores a afirmar que deve evitar-se o contacto dessas pessoas com o resto da população penitenciária». A critica geral que se faz a estes tipos de penas, enquanto incapazes de cumprir os fins para que tendem «já que pela sua curta duração não pode intentar-se nenhum tratamento, e que, por outra parte, não parece, necessário nestes casos, segundo a opinião expressa por grande parte da doutrina, ao que haveria de adir os efeitos prejudiciais que tais sanções podem produzir no condenado […], seriam coonestadas pela incomprovada aptidão deste tipo de penas para conter os delitos de tráfico, como o demonstrariam os dados colectados na Alemanha.
Em Portugal não há, pensamos estatísticas idênticas às que forraram a opinião expressa por Kaiser quanto à Alemanha, mas também a nós se nos afigura de duvidosa eficácia a imposição legal de penas privativas de liberdade para este tipo de crimes. Em primeiro lugar pela baixa densidade ético-desvalorativa que estes tipos de delitos comportam, a seguir pela banalização que para o sistema jurídico-penal se atesta do recurso ao aumento da gravidade das penas de cada vez que surge um problema de índole societário que os poderes de Estado não logram resolver pela assumpção de medidas adequadas aplicadas para o sector achacado e, por fim, a eficácia ressocializadora ou de reversão comportamental que as penas curtas comportam. O entono e enfoque na perspectiva preventiva geral, dir-se-ia com mais propriedade, atemorizadora geral-pessoal, que o legislador confere a este tipo de opções de penalização para este tipo de delitos, constitui-se, por outro lado, como desvirtuante dos fins das penas e descaracteriza o próprio texto legislador claramente tendente a projectar uma dimensão integradora e positiva, no plano pessoal para as penas aplicadas.
Á luz dos vectores doutrinários que deixamos, sumariamente, escorçados e revertendo ao caso concreto haver-se-á de considerar que o arguido confessou parcialmente os factos, não possui outras infracções da mesma, ou de outra natureza, por que haja sido condenado e o nível do grau de alcoolemia, a roçar o mínimo estabelecido para a qualificação ilicito penal, considera-se ajustada a imposição de uma pena de multa a roçar o limite mínimo e com uma correspondência monetária, que não podendo deixar de se repercutir no modo de vida do arguido não o poderá afectar no cumprimento das obrigações familiares que mantém.
Do mesmo passo, no doseamento da medida acessória de proibição de condução de veículos com motor, a moldura concreta a impor deverá fixar-se perto do limite mínimo.
III. – Decisão.
Na convergência com o expendido decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
1. - Revogar a decisão sob impugnação;
2. - Substituí-la por outra em que considerando verificada a materialidade do tipo de ilicito contido no artigo 292º, nº 1 do Código Penal se condena o arguido I..... como autor material do mencionado crime de condução de veículos em estado de embriaguês na pena de noventa (90) dias de multa à taxa diária de sete euros (€ 7,00) o que perfaz a multa de seiscentos e dez euros (€610,00);
3. – Impor ao arguido, nos termos do artigo 69º, nº 1 do Código Penal, uma pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de três (3) meses.
- Sem tributação.