Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83/07.2GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
RESISTÊNCIA
ALCOOLÉMIA
Data do Acordão: 11/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º DA CONSTITUIÇÃO,291º CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. Nos termos do artº 21º da Constituição da República Portuguesa, todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
2. O exercício da condução automóvel tem regras, entre as quais se contam as referentes à segurança rodoviária, a qual é, indiscutivelmente, um valor ou um bem que tem de ser preservado. Por isso a circulação na via pública há-de pautar-se por regras. Ora é precisamente neste âmbito que o exercício da condução sob o efeito do álcool assume particular destaque, porquanto os veículos automóveis são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e bens, seja de toda a comunidade, sejam daqueles que utilizam a via pública e suas proximidades.
3. Daí que é descabida a invocação do direito de resistir à ordem de soprar no alcoolímetro.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


Em Processo Sumário do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, o arguido A..., foi submetido a julgamento, tendo sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido nos artºs 292º nº 1 e 69º nº 1 a) do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e 6 meses de proibição de conduzir veículos motorizados.
Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, e em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“ 1ª - No dia dos autos, o arguido soprou no alcoolímetro e nada mais foi feito no inquérito sobre tal matéria;
2ª- São as instruções emanadas da DGV e constantes do oficio n°.14811 de 19/07/06, e não uma lei, que dá um tratamento mais favorável aos que, após tal data, tendo, por exemplo, 1,2 g/l passaram de crime a contra-ordenação;
3ª- Porém, condutores foram julgados por crime por taxas de 1,2 g/l que não o seriam se à data já existisse a instrução da DGV;

4ª- Portanto, não é uma lei que modifica o modo de acerto da taxa, mas tão só as instruções da DGV, o que cria um tratamento desigual entre os que estão antes e depois de tais instruções, violando o disposto no artigo 13°. da CRP., mormente no caso em que por via do acerto se passa de crime para contra-ordenação;
5ª- Apesar da Sra. Dra. Juiz não ter atendido ao acerto, a indicação do mesmo constitui o reconhecimento por parte da própria DGV de que o resultado apurado contém erro, não é fiável e portanto duvidoso, pelo que, em caso de dúvida, deve o arguido beneficiar do princípio “in dubio pro reo”.
6ª- O princípio da presunção da inocência (artigo 32 n°.2 da CRP) é também um princípio de prova, segundo o qual um non liquet na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido, ora recorrente;
7ª- Ora, nenhum meio de prova é absoluto, estando todos sujeitos à apreciação da sua validade e do seu valor probatório, tanto mais que no caso dos autos é a própria DGV que reconhece que o resultado contém erro, não é fiável, mas sim duvidoso e por isso precisa de acerto.

8ª- E também não está o Tribunal, salvo melhor opinião, sujeito às instruções emitidas pela DGV, estando antes as mesmas submetidas à apreciação daquele que está sujeito apenas à Lei (artigo 203 da C.R.P.).
9ª- As instruções da DGV constantes do oficio 14811 de 19/07/06 que impõem o referido acerto violam o disposto nos artigos 32 n° 2, 13 e 203 da C.R.P.;
10ª- O recorrente não está obrigado a fornecer elementos de prova que o possam prejudicar, o que resulta, além do mais, do disposto no artigo 61 n° l, alínea c) do Cód. Proc. Pena1, porém, apesar de o recorrente não ser obrigado a abrir a boca para falar, ficou, no entanto, obrigado a abri-la para soprar, sob pena de ficar sujeito ao crime de desobediência;
11ª- Tal ordem, é também ilegítima pois todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias ou a sua integridade pessoal, como resulta do disposto nos artigos 21 primeira parte e 25 n° 1 da Const. Rep. Portuguesa;
12ª- Salvo o devido respeito, a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 13, 21primeira parte, 25 nº l e 32 n° 2 da C.RP, e 61 n°. 1 alínea c) do Cód. Proc. Penal;
13ª- E se assim não se entender, a execução da pena acessória de inibição de conduzir, no caso dos autos, poderá ser suspensa, pois há situações de maior censura social em que o Legislador não proibiu a suspensão da execução da própria pena principal, como seja o caso do homicídio negligente, resultante de acidente de viação.”.
Respondeu o MP, pugnando pela manutenção da douta sentença.
Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º nº 2 CPP..
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Com relevância para a decisão do presente recurso, importa que se transcreva agora a matéria de facto que foi dada como provada na 1ª instância:
“ 1. No dia 29 de Abril de 2007, cerca das 02 horas e 21 minutos, na Estrada Nacional – 2, cruzamento de Valverde - Tondela, A... conduzia um veículo ligeiro de passageiros, de matrícula 68-70ZI, quando foi interceptado pela G.N.R., em acção de fiscalização aleatória, tendo sido submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue através do aparelho DRAGER ALCTEST mod.7110 MKIII, acusou uma TAS de 1,88 G/L no sangue.

2. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo a sua conduta era proibida por lei, ciente de que previamente à condução tinha ingerido bebidas alcoólicas, e de por estas estar influenciado, não se coibindo, ainda assim, de tripular o referido veículo.

3. Quando foi fiscalizado vinha da Associação de Valverde, onde tinha festejado com outras pessoas, o dia do seu aniversário.

4. Conduziu cerca de duzentos metros, antes de ser fiscalizado, e pretendia conduzir cerca de quinhentos metros, desde a Associação de Valverde, até sua casa.

5. Vendedor comissionista, numa fábrica de roupa, necessita do veículo para o exercício da actividade profissional. Sem ordenado fixo, e em período experimental, é divorciado, pagando de alimentos a cada um dois filhos, setenta e cinco euros.

6. Vive com os pais que são feirantes.

7. Tem o 6º ano de escolaridade.

8.Mediante sentença de 28 de Abril de 2006, já transitada, foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 28 de Abril de 2006, em 65 dias de multa, à taxa diária de 6, 00 euros, num total de trezentos e noventa euros, e na pena acessória de conduzir veículos motorizados de 4 meses.

9. Está habilitado a conduzir desde 28 de Janeiro de 2004.”.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, e designadamente que, a taxa de álcool no sangue fosse qualquer outra, designadamente, 1,74 g/l; tivesse percorrido, ou pretendesse percorrer qualquer outra distância.”.

*
As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Assim as questões suscitadas no recurso são as seguintes:

- Violação do princípio in dubio pro reo.

- Direito de resistir à ordem de soprar no alcoolímetro

- Suspensão da pena acessória.

Passemos à sua apreciação.

A) Do princípio in dubio pro reo

Argumenta o arguido que, reconhecendo a DGV no seu Of. 14811 de 19/7/2006, que impõe a dedução de valor de erro máximo admissível, que o resultado obtido contém erro, a conclusão é a de que o aparelho não é fiável, e como tal, deveria por isso ter funcionado o princípio in dubio pro reo.

Pois bem o que desde já se dirá é que é manifesto que o recorrente não tem qualquer razão.

Na verdade, nos termos do artº 153º nº 1 CE, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por agente de autoridade mediante utilização de material aprovado para o efeito.

Conforme decorre do auto de notícia de fls. 3, o teste foi efectuado com o aparelho Drager, Alcotest 7110 MKIII.

Tal aparelho foi aprovado por despacho de 27/6/1996, publicado no DR nº 223, III Série de 23 de Setembro de 1996.

Nessa altura o arguido não levantou qualquer objecção ao resultado do exame, pois se duvidava da qualidade do aparelho ou que o resultado não era fiável, poderia ter solicitado a realização da contraprova, mas não foi isso que aconteceu, assinou uma declaração em que se diz não pretender contraprova, o que significa que aceitou por correcto o resultado do exame realizado (Cfr. fls. 4).

Ora sendo assim não pode agora o arguido vir dizer que é duvidosa a qualidade do aparelho, sendo certo que não lhe apontou em concreto qualquer deficiência de funcionamento, nem pretendeu a contraprova.

E teve essa possibilidade !

Ora o princípio in dubio pro reo consiste na regra segundo a qual a dúvida sobre os pressupostos da decisão a proferir deve ser valorada a favor da pessoa visada, tendo o seu campo de aplicação no âmbito da matéria de facto.

Refere ainda o arguido que o Tribunal não tem que acatar as instruções da DGV constantes do ofício 14811 que impõem o referido acerto, pois está apenas sujeito à aplicação da Lei e não de circulares.

É evidente que lhe assiste total razão neste ponto !

O artº 203º da Constituição não deixa margem para qualquer dúvida “Os tribunais... apenas estão sujeitos à lei”.

Ora uma circular é uma ordem de serviço ou instrução emanada de qualquer superior para os seus subalternos Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8ª ed., 1º, pág. 238., a que os tribunais, como é manifesto, não estão vinculados.

Acresce que o próprio Código da Estrada, no seu artº 170º nº 4, determina que os resultados obtidos através de aparelhos aprovados e utilizados na fiscalização de trânsito, como é o caso, fazem fé até prova em contrário, não abrindo aí margem para qualquer correcção, designadamente por via de circulares emitidas pela DGV.

Assim os exames realizados ao abrigo desta disposição constituem prova legal plena, só podendo ser contrariado através de meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto ( artº 347º Código Civil).

Vale pois aqui apenas e como expressamente vem referido pelo preceito, a prova que for feita em contrário desse resultado.

Quer isto dizer que sempre que o arguido não concorde com o resultado objectivo que é fornecido pelo aparelho, aquilo que deve fazer é requerer a contraprova (153º nº.2 CE).

Contudo sempre se dirá que inexistem razões para a crítica do recorrente quanto a este último aspecto, já que a Mmª juiz até nem lhe aplicou a referida circular da DGV.

Em suma se dirá que não existe qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”

Improcede assim o recurso quanto a este ponto.

B) Do direito de resistir à ordem de soprar no alcoolímetro

Diz o recorrente que não estava obrigado a abrir a boca para soprar, sob pena de ficar sujeito à prática de um crime de desobediência, e, por isso, essa ordem é na sua perspectiva ilegítima.

Mas também aqui não tem claramente razão.

Nos termos do artº 21º da Constituição da República Portuguesa, todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
Pois bem o que desde já se dirá é que, salvo o devido respeito por opinião contrária, parece-nos não ter aqui qualquer cabimento vir invocar-se o direito de resistência.
Na verdade este direito tem fundamentalmente como objectivo consagrar a possibilidade de resistência a ordens ilegítimas que ofendam os seus direitos liberdades e garantias, o que não é claramente o caso.
Com efeito o exercício da condução automóvel tem regras, entre as quais se contam as referentes à segurança rodoviária, a qual é, indiscutívelmente, um valor ou um bem que tem de ser preservado.
Por isso a circulação na via pública há-de pautar-se por regras.
Ora é precisamente neste âmbito que o exercício da condução sob o efeito do álcool, assume particular destaque, porquanto os veículos automóveis são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e bens, seja de toda a comunidade, sejam daqueles que utilizam a via pública e suas proximidades.

Daí que se justifique plenamente a submissão dos condutores ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado, quando interpelados para o efeito pelos agentes da autoridade policial, pois há que assegurar que aqueles que conduzem veículos automóveis estejam em condições de o fazer.
De contrário, podem pôr em risco a segurança rodoviária, sendo certo que a condução automóvel não constitui um direito fundamental e é permitida apenas àqueles que estão habilitados para tal e cumpram as regras, cuja fiscalização cabe às autoridades policiais.
Aliás o Tribunal Constitucional já no Acórdão 319/95 de 20/06/1995, concluiu que a normação que admite a imposição do teste do álcool não ofende materialmente a Constituição, visto que “ A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do artigo 6º, nº 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação, nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.
Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de Direito impõe é que o processo (maxime, o processo criminal) se reja "por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade" (cf. acórdão nº 128/92, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Julho de 1992).
Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal. Ao que acresce que o quadro legal que rege a matéria, na parte em que permite que os agentes de autoridade policial submetam, por sua iniciativa, os condutores ao teste de detecção de álcool, é de molde a garantir que a actividade policial, essencialmente preventiva, se desenvolva "com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos" (cf. artigo 272º da Constituição).
Concretamente no que concerne ao dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, não é a submissão deste a exame para detecção de álcool que pode violá-lo. O que atentaria contra essa dignidade seria o facto de se sujeitar o condutor a exame de pesquisa de álcool, fazendo-se no local alarde público do resultado, no caso de ele ser positivo.”
Daí que se conclua que a invocação direito de resistência é aqui completamente descabida.
C) Da suspensão da pena acessória
Pugna no entanto o recorrente para que a inibição lhe seja suspensa na sua execução.
Será tal suspensão possível ?
Pois bem a suspensão da execução da pena acessória de inibição de conduzir não está prevista no Código Penal.
E o artº 50º CP, como referimos, apenas se reporta à suspensão da execução da pena principal, numa única situação - que seja aplicada prisão em medida não superior a três anos. É o chamado pressuposto objectivo formal.
Como escreve Germano Marques da Silva Crimes Rodoviários, pág. 28. “ a pena acessória de proibição de conduzir não pode ser suspensa na sua execução nem substituída por outra. Verificados os seus pressupostos e aplicada a pena acessória, esta tem de ser executada. Assim, ainda que a pena principal seja substituída ou suspensa na sua execução, o mesmo não pode suceder relativamente à pena acessória de proibição de conduzir”.
De concluir assim, que o recurso neste ponto improcede manifestamente.


DECISÃO


Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juizes desta Relação, em negar provimento ao recurso, e, consequentemente confirmar integralmente a decisão recorrida.
Fixar a taxa de justiça devida pelo recorrente em oito Ucs (Artº 87º nº 1 b) CCJ).

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Tribunal da Relação de Coimbra, 21 de Novembro de 2007.