Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3315/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: TRANSCRIÇÃO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 12/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 123º E 127º, DO C. P. PENAL
Sumário: I- Porque a transcrição se destina à verificação, pelo tribunal superior, das razões do recorrente, a irregularidade resultante das deficiências da gravação só pode conduzir à anulação do julgamento quando aquelas razões se fundamentem também nessas deficiências
II- O princípio in dubio pro reo é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa: Mas daqui não resulta que, tendo havido versões diferentes a até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

No processo comum colectivo nº 12528/97.3JDLSB do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por acórdão de 05.01.05, foi, para além do mais, condenado o arguido A..., como autor material de um crime de burla, na forma tentada, p. e p. no art. 219°, nº 4 b) CP, por referência ao nº 1 b), 22º, 23º e 73º CP, com referência ao artº 202º a) CP, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução lhe foi suspensa por um período de quatro anos, sob condição de pagar às lesadas demandantes o montante que a estas foi arbitrado a título de indemnização, no prazo de 3 meses e ainda pagar `APPACDM de Viseu, a quantia de 5.000,00 euros, até ao final do período de suspensão.
Foi ainda o referido arguido condenado a pagar às demandantes o montante de € 1.700,00.
Inconformado, o arguido interpôs recurso, que motivou, concluindo:
“ I. O presente recurso vem interposto do acórdão que julgou procedente por provada a acusação e consequentemente decidiu pela condenação do arguido e ora Recorrente A... pelo CRIME de BURLA na forma tentada, p.p. pelos Artºs 219° n° 4 al. h), por referência ao n° 1 al. b), 22°, 23° e 73°, do CP, com referência ao arte 202° al. a) do mesmo código, na pena de 3 (três) anos de prisão;
II. Desde logo, o Recorrente vem invocar uma "questão prévia" decorrente da imperceptibilidade parcial da gravação das suas declarações, como arguido, em audiência de julgamento, com relevância para a defesa.
III. Assim está esse VENERANDO TRIBUNAL impedido de conhecer "de facto" quando deveria conhecer "de facto, e de direito", cfr. estipulado no Art. 428°, nº 1 do C.P.P..
IV. E não se diga que estamos perante uma arguição extemporânea "de irregularidades", como resultaria do comando do Art° 123°, N° 1 do C.P.P., que impunha ser arguida no próprio acto, sendo certo que só agora se teve acesso à transcrição e se constatou sua imperceptibilidade, que afecta o valor do acto praticado.
v. Pois sempre o Tribunal "ad quem" virá, dela, ter conhecimento oficioso, (Art° 123°, N° 2), aquando da transcrição integral das declarações e depoimentos, nos termos do Art° 412°, N° 4 do C.P.P.
VI. Tal irregularidade prevista no Art° 123°, N° 2 do C.P .Penal, só poderá ser sanada ou atalhada, com novo julgamento pelo Tribunal "A QUO", efectuando-se, então, a documentação das declarações, na acta, por transcrição, atentos às disposições legais já citadas.
VII. No presente recurso o Recorrente impugna a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal "a quo" reportando-se para o efeito aos respectivos suportes magnéticos a partir dos quais efectuou as transcrições que entendeu mais pertinentes para o teor do mesmo.
VIII. Entende o Recorrente que a matéria que o Tribunal "a quo" deu como provada na decisão recorrida e os fundamentos que para tanto invocou não são, de todo, suficientes, para se decidir como se decidiu, pela condenação do arguido "tout court" .
IX. O douto Acórdão sobre muitos pontos essenciais da matéria de facto apurada não procedeu ao exame crítico e quanto a outros fê-lo de forma deficiente.
X. Não se fez prova, muito menos directa, dos factos que se imputavam ao arguido, com relevância criminal, socorrendo-se o Tribunal de provas meramente indiciárias, como os Relatórios dos Peritos, meramente opinatórios, que não afirmativos.
XI. Por outro lado aquilo que todas as testemunhas de defesa declararam em sede de audiência de julgamento, com interesse para a decisão da causa, não foi, sequer, minimamente valorado ou equacionado pelo Tribunal.
XII. Resulta ainda que o exame crítico às provas, além de deficiente, assenta em premissas erradas, ou pelo menos duvidosas. Isto na medida em que o Tribunal enumerou os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, mas cujo conteúdo por si valorado e pressuposto está em desconformidade com o verdadeiro conteúdo ou pressuposto dos meios de prova.
XIII. No acórdão recorrido optou-se por acolher, sem mais e comodamente, a versão da acusação, aceite integralmente nos seus precisos termos, desvalorizando-se por completo, sem razão, como se disse, para além do depoimento das testemunhas da defesa, as declarações do próprio arguido Recorrente e da única testemunha (ANTÓNIO FIGUElREDO) que presenciou todo o acidente, do princípio ao fim.
XIV. Não se tendo feito prova bastante em audiências de julgamento, dos factos imputados ao arguido, conducentes à prática do Crime de burla, na forma tentada, conforme decorre com clareza, desde logo, de algumas transcrições efectuadas nesta sede e da audição de teor de todas as declarações e depoimentos registados em suportes magnéticos, aqui dados por reproduzidos,
XV. o princípio probatório “in dubio pro reo", a bem das garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas, deveria ter sido accionado, na hipótese de, não colhendo a tese da acusação, por falta de prova, ainda assim o Tribunal duvidar das declarações esclarecidas e coerentes do arguido e testemunha ANTÓNIO FIGUElREDO, nas questões essenciais.
XVI. Porém e porque não foi isso que aconteceu, o acórdão encontra-se inquinado pelo vício do Artº 410º, nº 2, al. a) - uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque se nos afigura que resulta do texto do acórdão que tal condenação nunca poderia ter sido decidida (com remissão para a prova ali referida e os fundamentos ali vertidos),
XVII. Sobrevém, igualmente, como atrás se especificou, um erro notório na apreciação da prova e contradição entre a fundamentação e a decisão, com referência, respectivamente, ao Artº 410º n° 2, al. c) e al. b) do C.P.P.”.
O Ministério Público e as assistentes responderam concluindo ambos que deverá manter-se o acórdão recorrido.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, conclui igualmente que o recurso deve ser julgado improcedente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, após a realização da audiência, levada a cabo com a observância do formalismo legal como da acta consta.

FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
1) O arguido é industrial de artefactos de cimento, dedicando-se à fabricação, comercialização e distribuição, nomeadamente, de balaústres, vasos e floreiras.
2) Na sua empresa o arguido, além de se ocupar da gestão, trabalhava na oficina e dirigia, ele próprio, algumas máquinas.
3) Sendo pessoa ambiciosa, em data indeterminada do 1º, trimestre do ano de 1997, mas anterior a 13 de Março, depois de ter apurado que lhe era permitido possuir vários seguros de acidentes pessoais, para além de um seguro de acidente de trabalho e que, em caso de acidente de que resultasse incapacidade permanente, todas as companhias onde possuísse seguro seriam obrigadas a indemnizá-lo, o arguido arquitectou um plano para enriquecer rapidamente, nos seguintes termos:
4) Efectuaria, para além de um seguro de acidentes de trabalho, vários seguros de acidentes pessoais, todos pelo valor máximo que lhe fosse aceite nas seguradoras e, posteriormente, causaria a si próprio uma lesão que lhe permitisse obter o máximo de incapacidade permanente com o mínimo de desvalorização física, lesão essa que simularia ter sido causada em acidente de trabalho.
5) Assim, e depois de ter averiguado que a lesão que lhe permitiria obter maior percentagem de incapacidade e, logo, maiores indemnizações, com menor grau de desvalorização física, seria o corte dos dedos polegar e indicador, da mão direita, o arguido, na execução de plano por si previamente delineado, celebrou os seguintes contratos de seguro com as companhias de seguro a seguir identificadas:
- Com a Fidelidade, quatro seguros de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94 (50.000.000$), cada, a que correspondem as apólices nºs 37622, 37623, 38658 e 38664, subscritos no
escritório daquela Companhia em Viseu, os dois primeiros no dia 13 de Março de 1997, o terceiro em 1 de Julho de 1997 e o último em 16 de Julho de 1997, conforme documentos juntos de fls. 53 a 57 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a Portugal Previdente, um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94 (50.000.000$), a que corresponde a apólice n° 160333/20 e um de acidentes de trabalho, no valor de € 35.913,45 (7.200.000$), a que corresponde a apólice 3111889/19, ambos subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, o primeiro no dia 17/03/1997 e o segundo no dia 22/07/1997, conforme documentos juntos a fls. 30, 31, 35 e 36 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a Bonança, um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94 (50.000.000$), a que corresponde a apólice n° 20801261, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 20/03/1997, cujo valor, no entanto, veio a aumentar para € 498.797,88 (100.000.000$) a 05/08/1997, conforme documentos juntos de fls. 48 a 50 e 51 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a Mundial Confiança, dois seguros de acidentes pessoais, no valor de € 49.879,79 (10.000.000$), cada, a que correspondem as apólices nºs 3370087 e 3370088 subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 26/05/1997, conforme documentos juntos de fls.83 a 90 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a Tranquilidade, um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 374.098,42 (75.000.000$) para invalidez permanente e € 4.987,98 (1.000.000$) para despesas de tratamento, a que corresponde a apólice n° 775916, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 01/07/1997, conforme documentos juntos de fls. 96 a 98 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a Sociedade Portuguesa de Seguros, SA, três seguros - dois de acidentes pessoais e um de vida, os dois primeiros no valor de € 149.639,36 (30.000.000$) e o último no valor de € 49.879,79 (l0.000.000$), a que correspondem as apólices nºs 72463, 72552 e 510334, subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 04/07/1997, vindo, no entanto, a aumentar o valor do capital da apólice n° 72552 para € 399.038,31 (80.000.000$), em caso de invalidez e € 249.398,94 (50.000.000$) em caso de morte, em 12/08/1997, conforme documentos juntos a fls. 106, 107, 109 e 111 a 116 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com «O trabalho», um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 374.098,42 (75.000.000$), a que corresponde a apólice n° 167403, subscrito no Sátão, no dia 07/07/1997, conforme documentos juntos a fls. 143 e 145 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Victoria Seguros SA», um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 374.098,42 (75.000.000$), a que corresponde a apólice n° 4021686, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 07/07/1997, conforme documentos juntos de fls. 149 a 151 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Axa Portugal», dois seguros - um complemento de reforma, no valor de € 24.939,89 (5.000.000$), a que corresponde a apólice n° 187754 e um «Multiplic», no valor de €199.519,15 (40.000.000$)/morte e € 99.759,58 (20.000.000$)/vida, mas com uma garantia complementar que, em caso de acidente, duplica o capital, a que corresponde a apólice nº 880861, ambos subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 07/07/1997, conforme documentos juntos de fls. 191 a 194 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Império, SA», dois seguros de acidentes pessoais, no valor de € 74.819,68 (15.000.000$), cada, a que correspondem as apólices nos 21-100943/07 e 21-100959/00, ambos subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, o primeiro no dia 10/07/1997 e o último no dia 28/07/1997, conforme documentos juntos de fls. 182 a 187 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Royal Exchange Assurance, SA», um seguro de acidente pessoais no valor de € 49.879,79 (10.000.000$), a que corresponde a apólice n° 38297, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 05/08/1997, conforme documentos juntos de fls. 205 a 207 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Zurich» (nova designação da companhia de seguros «Metrópole»), um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 498.797,88 (100.000.000$), a que corresponde a apólice n° 2102148, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 13/08/1997, conforme documentos juntos a fls. 218 e 219 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Assicurazione Generali», um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94/morte (50.000.000$) e € 498.797,88/invalidez permanente (100.000.000$), a que corresponde a apólice n° 0001-10000950 e um outro seguro Univida com um capital de € 29.927,87 (6.000.000$) para morte ou invalidez, ambos subscritos no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 18/08/1997, conforme documentos juntos a fls. 245, 246 e 250 a 253 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Oceânica», um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94 (50.000.000$) para morte e invalidez, a que corresponde a apólice n° 15/008402, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu no dia 18/08/1997, conforme documentos juntos a fls. 259 e 260 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Real Seguros, SA», um seguro de acidentes pessoais no valor de € 249.398,94 (50.000.000$), a que corresponde a apólice n° 15/10774, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 19/08/1997, conforme documentos juntos a fls. 276 e 277 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
- Com a «Global», um seguro de acidentes pessoais, no valor de € 249.398,94/morte
(50.000.000) e € 498.797,88/invalidez (100.000.000$), a que corresponde a apólice n° 97027482, subscrito no escritório daquela Companhia em Viseu, no dia 25/08/1997, conforme documentos juntos de fls. 280 e 281 do apenso I, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
6) Em muitas das ocasiões supra-referidas o arguido tentou a efectivação dos seguros de acidentes pessoais cobrindo a invalidez permanente por valores muito superiores aqueles que efectivamente veio a subscrever, só não o tendo conseguido em virtude dos montantes por ele propostos não terem sido aceites pelas companhias de seguros.
7) Tal aconteceu, nomeadamente, na Portugal Previdente e Tranquilidade, onde o arguido pretendia fazer seguros de acidentes pessoais no valor de € 498.797,88 (100.000.000$) (em cada uma delas); na Mundial Confiança; na Victoria, onde pretendia fazer um seguro pelo valor de € 748.196,82 (150.000.000$); na Império; na Royal Exchange; na Oceânica, onde pretendeu fazer um seguro de acidentes pessoais de € 498.797,88 (100.000.000$) para invalidez; na Real Seguros, onde pretendeu fazer um seguro de acidentes pessoais no valor de € 498.797,88 (100.000.000$); acabando, no entanto, por celebrar os contratos pelos valores já acima descritos, por terem sido esses os montantes mais elevados aceites pelas companhias de seguros em referência.
8) Sempre que se dirigiu às várias seguradoras para efectuar os seguros supra-descritos o arguido omitiu total ou parcialmente a existência dos vários seguros que já possuía da mesma modalidade.
9) Só quando lhe perguntavam expressamente, admitia possuir seguros idênticos noutras companhias, identificando, sempre, no máximo, três companhias e adiantando que se tratava de seguros de pequeno valor ou que os iria anular, ou ainda que pretendia mudar todos os seus seguros para a companhia com a qual se encontrava a contratar.
10) Actuava da forma descrita para obter melhor aceitação das suas propostas.
11) Nenhuma das seguradoras teria contratado com o arguido da forma em que o fez, se tivesse conhecimento de todos os contratos de seguro efectuados por aquele para cobertura do mesmo risco e dos seus valores, o que o arguido bem sabia.
12) Anteriormente à efectivação dos referidos seguros o arguido possuía apenas um seguro de acidentes pessoais/doença, com um capital de € 24.939,89 (5.000.000$) para morte e invalidez permanente, efectuado no ano de 1994, na companhia "Europeia de Seguros SA", conforme documentos juntos a fls. 315 e 316 do apenso I, o qual manteve.
13) Os seguros efectuados pelo arguido e que acima ficaram descritos acarretavam para o mesmo despesas anuais relativas ao pagamento dos prémios, num valor superior a € 30.925,47 (6.200.000$) (cfr. mapa fls. 481 do Vol.. II).
14) Montante esse que a sua situação financeira à data não lhe permitia suportar.
15) Na verdade, a única fonte de rendimentos do arguido provinha da sua actividade profissional da qual, em 1997, retirou um rendimento anual de apenas € 22.365,24 (4.483.829$), com o qual teve de fazer face, além do mais, ao pagamento do crédito à habitação no montante anual de € 5.302,87 (1.063.129$) (cfr. mapa fls. 479, volume II).
16) Tendo-se o arguido sujeitado ao pagamento dos mencionados prémios apenas e tão só com o propósito de, a breve prazo, vir a obter montantes de indemnização que, no total, segundo os cálculos que efectuou, poderiam ascender a cerca de € 2.493.989,40 (500.000.000$) (cfr. mapa fls. 481 do voI. II).
17) Na prossecução de tal plano, no dia 29/09/1997, cerca das 14h45, o arguido dirigiu-se a uma carpintaria pertencente a um vizinho, denominada «Fábrica de Móveis - Cândido Martins Pereira», sita em Pedrosa, Sátão, onde era costume efectuar alguns trabalhos para si próprio com autorização do seu vizinho.
18) Aí, dirigiu-se a uma máquina eléctrica afastada das restantes e isolada, alegadamente para cortar uma placa de aglomerado de madeira que necessitava para execução do molde de uma floreira.
19) Na execução do plano que previamente havia delineado, colocou a placa de aglomerado de madeira em cima do tabuleiro da máquina, ligou-a e, de seguida, debruçou-se sobre a mesma e, voluntariamente, colocou a mão direita junto ao disco de corte da máquina de modo a cortar os dedos indicador e polegar da mão direita e cortou-os efectivamente.
20) Logo depois, dizendo ter tido um acidente com a máquina, pediu ajuda às pessoas que se encontravam na oficina, tendo pedido para que lhe efectuassem um garrote no pulso, para evitar a perda de sangue e para o transportarem ao Hospital, onde foi clinicamente assistido.
21) Em consequência da sua conduta o arguido sofreu amputação traumática de duas falanges do 1 ° dedo (polegar) e 2 falanges e meia do 2° dedo (indicador), da mão direita, como era sua intenção e que, como ele bem sabia, lhe daria uma percentagem de incapacidade permanente no mínimo de 33,2 % e no máximo de 36,75%.
22) Finalizando o plano que havia traçado, a partir do dia seguinte (30/09/97) e até 7 de Outubro de 1997 o arguido participou o «sinistro» a todas as companhias onde possuía seguros, alegando, perante as mesmas, ter-se desequilibrado, por ter tropeçado numa ripa - quando se encontrava a cortar uma placa de contraplacado de madeira e que, ao pretender segurar-se, foi atingido pelo disco da máquina que lhe cortou os dedos referidos.
23) Mais alegava ser dextro, não obstante ser ambidextro, por saber que, desse modo, os montantes de indemnização a receber seriam mais elevados.
24) Nesses termos, apresentou as seguintes participações de sinistro:
- Em 30/09/97 no «Trabalho», junto do seu mediador de seguros, no Sátão, conforme documento junto a fls. 146 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 30/09/97 na «Europeia», junto do seu mediador, no Sátão, conforme documento junto a fls. 317 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 na «Bonança», junto do seu mediador, no Sátão, conforme documentos juntos a fls. 39 e 40 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Fidelidade, conforme documento junto a fls. 58 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Mundial Confiança, conforme documentos juntos a fls. 73 a 77 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Tranquilidade, conforme documento junto a fls. 99 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Sociedade Portuguesa de Seguros (SPS), conforme documento junto a fls. 117 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Victoria, conforme documentos juntos de fls. 152 e 153 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Em 01/10/97 no balcão de Viseu da Zurich, conforme documento junto a fls. 234 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 02/1 0/97 no balcão de Viseu da Assicurazioni Generali, conforme documento junto a fls. 248 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 02/1 0/97 no balcão de Viseu da Império, conforme documento junto a fls. 188 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 02/1 0/97 no balcão de Viseu da Real Seguros, conforme documento junto a fls. 274 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Em 03/1 0/97 na Oceânica, junto do seu mediador, em Pereiro, Sátão, conforme documento juntos a fls. 261 do apenso I, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Entre 3 e 6/1 0/1997, na Portugal Previdente - balcão de Viseu, conforme documentos juntos a fls. 28, 29, 32 e 33 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Em 07/1 0/97 no balcão de Viseu da Axa Portugal, conforme documentos juntos a fls. 195 e 196 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Em 07/1 0/97 no balcão de Viseu da Royal Exchange, conforme documentos juntos a fls. 208 e 209 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
- Entre 1 e 7/10/97 no balcão de Viseu da Global, conforme documentos juntos a fls. 282 e 283 do apenso I, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
25) o arguido actuou da forma descrita com o propósito de obter das ditas seguradoras as indemnizações correspondentes aos contratos com elas efectuados e que, tendo em conta as lesões sofridas e participações do sinistro que efectuou, ascenderiam aos seguintes montantes (incluindo indemnizações por incapacidade permanente e temporária):
- € 177.641,16 (35.613.856$) da Portugal Previdente;
- € 161.211,48 (32.320.000$) da Bonança;
- € 327.211,42 (65.600.000$) da Fidelidade;
- € 31.698,61 (6.355.000$) da Mundial Confiança;
- € 130.934,44 (26.250.000$) da Tranquilidade;
- € 133.677,83 (26.800.000$) da Sociedade Portuguesa de Seguros;
- € 122.205,48 (24.500.000$) do Trabalho;
- € 176.177,91 (35.320.500$) da Victoria;
- € 47.884,60 (9.600.000$) da Império;
- € 139.663,41 (28.000.000$) da Axa Portugal;
- € 17.420,52 (3.492.500$) da Royal Exchange Assurance;
- € 174.579,29 (35.000.000$) da Zurich;
- € 199.519,15 (40.000.000$) da Assicurazioni Generali;
- € 149.639,36 (30.000.000$) da Oceânica;
- € 88.175,00 (17.677.500$) da Real Seguros;
- € 159.615,32 (32.000.000$) da Global;
- € 8.728,96 (1.750.000$) da Europeia;
Totalizando, assim, o montante global de € 2.245.983,94 ( 450.279.356$).
26) O arguido tinha perfeito conhecimento dos mencionados montantes de indemnização, os quais visou obter através do plano que forjou e executou para enganar as seguradoras referidas, nos termos que ficaram descritos.
27) E só não obteve efectivamente tais montantes porquanto as seguradoras, por motivos alheios à vontade do arguido, descobriram o seu plano e, até hoje, nada lhe pagaram, não obstante, a Portugal Previdente ter pago a quantia de € 103,25 (20.700$) a diversos prestadores de serviços de saúde relativa a despesas de tratamento com o arguido.
28) o arguido agiu da forma descrita voluntária e conscientemente, com a intenção de se locupletar com as quantias supra -referidas, consciente de que causava prejuízos às seguradoras.
29) Sabia que tal conduta lhe estava proibida por lei, sendo punida como crime.
30) Ao receberem as participações do "sinistro", as demandantes procederam, cada uma delas, à averiguação dos factos.
31) As demandantes fizeram deslocar à região os respectivos peritos averiguadores e procederam a outras diligências.
32) Cada uma das demandantes despendeu para o efeito 2.000,00 €.
33) o arguido não tem antecedentes criminais.
34) O agregado familiar do arguido é composto pela sua mulher, Clara Maria Lopes Carvalho, pelas suas duas filhas, Vânia Raquel Lopes Amaral e Ana Lúcia Lopes Amaral, ambas menores, sendo o mesmo suportado pelo arguido através dos rendimentos por este auferidos no exercício da actividade profissional por si desenvolvida.
35) A filha mais nova do arguido, a Ana Lúcia, de 11 anos, teve aos oito meses de idade um episódio de Meningite purulenta grave, complicada de hidrocefalia e status epiléptico e, desde então, tem um atraso no desenvolvimento.
36) Actualmente a Ana Lúcia é deficiente profunda com atraso psicomotor grave e irreversível, necessitando de acompanhamento permanente de 3ª pessoa e presença indispensável de seus pais.”
Factos não provados:
“ Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa. Não se provaram os factos em oposição com os supra referidos, os conclusivos e, nomeadamente, não se provou que:
1) Que no ano de 1997 o pai do arguido o compensou com 4.500.000$00/22.500,00 €.
2) Que a actividade profissional do arguido se revelasse, em termos financeiros, confortavelmente lucrativa, no início de 1997.
3) Que o desafogo financeiro que vivia o arguido, bem como a ajuda de seus pais e ainda de um amigo (Belarmino de Carvalho) foram as razões que levaram a que aquele optasse por introduzir alguns melhoramentos na sua indústria, adquirindo, nomeadamente, um empilhador e um camião de 12 toneladas.
4) Que, sendo o arguido o suporte financeiro da sua família e tendo, no início do ano de 1997, aumentado visivelmente o investimento na sua indústria para que esta prosperasse, especialmente com a compra do camião e, ponderando o risco inerente às futuras deslocações por todo o país, se tenha preocupado em garantir eficazmente o futuro da sua família, caso sobreviesse algum imprevisto.
5) Que o arguido firmou com diversas seguradoras contratos de seguro de natureza diversa, na sua grande maioria seguros de vida e de acidentes pessoais, aconselhado por amigos, familiares e também por mediadores de seguros.
6) Que muitos dos seguros que o arguido acabou por fazer se deveram à cuidada e criteriosa insistência das pessoas com quem contactou – os mediadores.
7) Que a placa de aglomerado que o arguido pretendia cortar tinha cerca de 1,20 em por 40 em.
8) Que o arguido antes de efectuar o corte chamou a atenção de António Rodrigues de Figueiredo para que ficasse atento e voltasse a ligar o disjuntor caso este "fosse abaixo" assim que a máquina fosse ligada.
9) Que o arguido quando colocou a placa no tabuleiro da máquina deixou 4 ou 5 sarrafos de madeira no chão.
10) Que a dita placa estava "embuchada", devido à circunstância de se encontrar no chão em posição oblíqua.
11) Que o arguido, no momento em que iniciara o corte, tropeçou numa das ripas, restos de madeira e serradura que se encontravam no chão e que se foi abaixo, desequilibrando-se para a frente.
12) Que no meio da atrapalhação, pretendendo segurar-se, foi com a mão direita ao disco que, de imediato, lhe ceifou dois dedos da mão direita, o polegar até à zona do metacarpo e duas falanges do indicador.
13) Que a testemunha António Figueiredo, estava mesmo à frente do arguido, a uma distância de sete a dez metros, em espaço aberto e visível, tendo presenciado o sucedido.
14) Que pelo facto de esta pessoa não se encontrar em situação regular, no que concerne aos descontos a efectuar pela entidade patronal para a Segurança Social, não foi referida desde início como estando no local.
15) Que o arguido, fruto do corte dos dedos, está impossibilitado de conduzir a sua vida com normalidade, como fazia anteriormente.
16) Que a sua vida profissional ficou irreversivelmente comprometida, o que diminuiu drasticamente a sua qualidade de vida e da sua família.
17) Que o arguido não sindicou os dados apostos nas propostas de seguro que assinou, por ser uma pessoa de fraca instrução, crédula e estar longe de conhecer as implicações e importância dos mesmos.
18) Que, em algumas ocasiões, mesmo não lhe sendo perguntado, o arguido informou os mediadores da circunstância de ter já outros seguros do mesmo ramo noutras companhias, perguntando mesmo se isso lhe traria problemas, sendo que ditos mediadores nunca lhe colocaram qualquer obstáculo, antes o aliciando com propostas de outros seguros de natureza diversa.
19) Que o arguido nunca preencheu qualquer proposta de seguro.
20) Que o arguido nunca foi ambidextro.”.
Motivação de facto:
“ A convicção do tribunal para a decisão que tomou sobre a matéria de facto assentou na análise conjunta e crítica da prova produzida, ponderada segundo as regras da lógica e da experiência e, particularmente nos seguintes elementos:
3.1. Factos Provados:
No que respeita ao modo como se desenrolaram os factos que conduziram ao corte dos dedos do arguido (amputação das falanges ), foram essenciais os seguintes elementos probatórios:
- Às reconstituições levadas a cabo quer pelos peritos da Perilusos, quer pela PJ, ambas em sede de inquérito.
Com efeito, quer uma quer outra, assentaram na versão que a respeito dos factos então deu o arguido, designadamente quanto à sua posição junto da máquina nos momentos que antecederam o dito corte dos dedos, posição essa que aquando de tais reconstituições sempre o arguido referiu ser com ambas as mãos colocadas sobre a tábua, que pretendia cortar e que estava colocada no tabuleiro da máquina, do lado esquerdo do disco giratório desta, vindo a sua mão direita a ser atingida por este disco giratório quando lhe falhou, por ter escorregado/tropeçado, a sua perna direita.
Conforme resulta das conclusões dos peritos a propósito de tais reconstituições, quer dos peritos da Perilusos que analisaram a reconstituição feita por esta firma a pedido das seguradoras envolvidas, António Tubal Caeiro e Pedro Manuel Santos Souza, quer do perito que analisou a reconstituição feita pela PJ, Professor Catedrático de Biomecânica, João Manuel Cunha da Silva Abrantes, o corte dos dedos não pode ter ocorrido de forma acidental na posição que o arguido assumiu em tais reconstituições, apenas podendo ter ocorrido de acordo com tal posição assumida pelo arguido, com contributo voluntário deste para a deslocação da mão para junto do disco giratório ou, assim não sendo, para esse corte dos dedos poder ter sido acidental, só pode ter ocorrido de outra forma que não a referida pelo arguido a respeito da posição que assumia aquando do mesmo. Conclusões essas que de forma assaz esclarecedora se sedimentam em conhecimentos científicos das leis da biomecânica, motricidade e ergonomia e que constam dos relatórios de fls. 148- 172 (Vol. I) e do Apenso 6, assim como dos esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelos subscritores de tais relatórios que nela foram inquiridos.
Do mesmo entendimento partilha Miguel António Sá da Costa Marques Bom, perito da Perilusos, que averiguou o "sinistro" e elaborou o relatório que constitui o Apenso 2, tendo sido ouvido em sede de audiência de julgamento aí remetendo para as conclusões de tal relatório, elucidando ainda o tribunal sobre as características da máquina onde foram cortados os dedos do arguido e o posicionamento normal do utilizador dessa máquina em face de tais características.
Tais conclusões são, no entender do Tribunal, inabaláveis por todos os demais elementos probatórios carreados para os autos, designadamente alicerçados nas declarações do arguido prestadas em sede de audiência e nos depoimentos de testemunhas também nela inquiridas que dão dos factos uma versão diferente.
Isto porque.
Não obstante aquando da reconstituição dos factos o arguido ter assumido que a perna que lhe falhou (por ter escorregado/tropeçado) foi a direita, já em sede de audiência de julgamento o arguido, nesta parte, contraria aquela sua versão, dizendo que a perna que lhe falhou foi a esquerda. Ora, nesta parte, mostra-se incompreensível a versão do arguido uma vez que não só nunca antes da audiência de julgamento o arguido deu a conhecer esta "nova" versão, como seria de esperar se correspondesse à verdade, visto que teve oportunidade para "emendar a mão" em alguma das reconstituições referidas, o que não aconteceu. Nem se diga que tal se poderá ficar a dever à dificuldade que qualquer pessoa sente quando lhe é pedido para descrever um acidente em que intervenha, porque, mesmo admitindo que assim possa ser, as regras da experiência ditam que não é normal dar versões tão díspares como as apresentadas pelo arguido, no inquérito e no julgamento, quando como em casos como os dos autos essa versões se revelam de crucial importância, como o arguido demonstrou pela sua postura na audiência de julgamento bem saber. Só podendo o Tribunal entender a mudança de posição como forma de o arguido poder contornar as conclusões das referidas reconstituições, até porque o mesmo manteve na audiência de julgamento a propósito da posição das mãos ambas do lado esquerdo do disco da máquina - a versão que a esse propósito sempre assumiu em sede de inquérito. Por fim, sempre se dirá que na hipótese, que não convenceu o Tribunal, de ao arguido ter falhado a perna esquerda os pressupostos da dinâmica adiantados nos relatórios e conclusões das reconstituições conduziriam à inclinação do corpo para o lado esquerdo da máquina e não para o lado direito desta onde se situa o disco giratório, sendo por isso improvável o corte dos dedos.
- Os depoimentos dos vários trabalhadores da fábrica de carpintaria onde ocorreram os factos pouco ou nada elucidaram o Tribunal sobre estes, não só porque a quase maioria dos mesmos não os presenciaram, como ainda porque o depoimento da única testemunha que refere tê-los presenciado não mereceu credibilidade ao Tribunal. Com efeito, o depoimento desta última testemunha, António Figueiredo, não logrou convencer o Tribunal a respeito da forma como os factos ocorreram porque, por um lado, a versão dada pelo mesmo no seu depoimento em sede de inquérito, a cuja leitura se procedeu verificados os pressupostos legais para o efeito como se colhe da acta de audiência de julgamento, apresenta discrepâncias com a versão dada pelo mesmo em sede de audiência, na medida em que em audiência referiu ter visto o arguido a escorregar ou tropeçar e em inquérito afirmou que não viu o arguido escorregar ou tropeçar. Por outro lado, tal depoimento não corrobora a própria versão do arguido no que tange à posição das mãos deste antes do corte, uma vez que a testemunha refere ter visto o arguido com uma mão do lado direito e outra do lado esquerdo do disco giratório da máquina, enquanto o arguido sempre assumiu que as mãos sempre estiveram ambas colocadas do lado esquerdo do disco.
Reforçam ainda o entendimento do Tribunal a respeito da forma não acidental como ocorreu o corte dos dedos do arguido todo o circunstancialismo que rodeou a celebração de todos os contratos de seguro em causa nos autos e o que se seguiu a esse corte dos dedos.
Desde logo, há que pesar o elevado número de seguros efectuados pelo arguido e o curto espaço de tempo em que os mesmos foram celebrados.
Anteriormente à efectivação dos seguros em causa o arguido possuía apenas um seguro de acidentes pessoais/doença, com um capital de € 24.939,89 (5.000.000$) para morte e invalidez permanente, efectuado no ano de 1994, na companhia "Europeia de Seguros SA". No espaço de cerca de seis meses o arguido celebra 23 contratos de seguro de acidentes pessoais com 16 companhias (não havendo conhecimento de situação similar), tendo previamente averiguado que podia haver cumulação.
Alguns dias depois de ter feito o último seguro, surge o "acidente".
As testemunhas inquiridas e que trabalhavam nas Companhias Seguradoras ou como Mediadores referiram situações em que o arguido tentou a efectivação dos seguros de acidentes pessoais cobrindo a invalidez permanente por valores muito superiores aqueles que efectivamente veio a subscrever (sendo que o normal é querer segurar a morte por valor superior). Constam dos autos algumas propostas de seguro em que o arguido admitiu possuir seguros idênticos noutras companhias, identificando, sempre, no máximo, três companhias - para facilitar a aceitação das propostas, já que o arguido sabia que se dissesse a verdade as seguradoras levantariam o problema do risco moral (o mesmo risco seguro várias vezes levanta suspeitas).
Ao arguido foram explicadas as percentagens de incapacidade aquando da celebração de alguns contratos (tal como foi referido pelas testemunhas Ernesto Morgado Santos e Euclides Alberto Seixas Carvalho), pelo que o mesmo estava perfeitamente informado. O Tribunal concluiu que o arguido é ambidextro uma vez que, logo a seguir à amputação das falanges, o mesmo assinou várias participações de sinistros com a sua mão esquerda (como afirmou a testemunha Euclides Alberto Seixas Carvalho), sendo a assinatura perfeitamente legível.
Inerente ao elevado número de seguros, há que ponderar a elevada soma de dinheiro referente aos prémios, aliada à débil situação económica do arguido.
Como já foi referido, os seguros efectuados pelo arguido e que acima ficaram descritos acarretavam para o mesmo despesas anuais relativas ao pagamento dos prémios, num valor superior a € 30.925,47 (6.200.000$).
Os elementos contabilísticos do arguido que foram analisados mostram que em 1997, o arguido retirou um rendimento anual de apenas € 22.365,24 (4.483.829$), com o qual teve de fazer face, além do mais, ao pagamento do crédito à habitação no montante anual de € 5.302,87 (1.063.129$).
O próprio contabilista do arguido, João Pereira Correia de Sousa, confirmou ao Tribunal que este não tinha condições de suportar os prémios e que era uma pessoa ambiciosa.
Por outro lado, o pai do arguido não confirmou ter ajudado o mesmo com montantes significantes.
Constam também dos autos (apenso sem capa) documentos que comprovam que a situação bancária do arguido não era boa.
O arguido descreveu ao Tribunal a sua situação profissional em 1997 e a actual, denotando esta última alguma melhoria a avaliar também por testemunhas que foram inquiridas em sede de audiência e que demonstraram ter disso conhecimento. Contudo, apesar de o arguido pretender fazer crer o Tribunal que à data dos factos possuía dinheiro "debaixo do colchão" e no "cofre", não é crível essa sua versão, uma vez que é incongruente que alguém com uma situação económica desafogada tenha a situação bancária que o arguido tinha à data dos factos, como os elementos bancários reflectem, e que tenha necessidade de socorrer-se de empréstimos de terceiros, como o arguido admitiu ter acontecido.
No que respeita aos montantes despendidos pelas seguradoras, as testemunhas João António Pires e Paulo Jorge Medeiros Marques Calheiro, profissionais de seguros, referiram que os montantes peticionados apenas pecam por defeito.
Foram ainda considerados os documentos que constituem o Apenso 1, as fotografias do apenso 2 e de fls. 24 a 29, os docs. de fls. 43, 44, 46 a 48, 60, 61, 88 a 90, 95, 98, 125, 126, 170 ss do VoI. I e de fls. 301 a 305, 308 a 310, 312 a 331, 379 a 399, 402 a 441, 445, 479, 481 do VoI. lI, de fls. 783 do Vol. IV (CRC), de fls. 1757 do Vol. IX (declaração médica), bem como as fotos de fls. 1726 ss do Vol. IX.
Factos não provados:
Os factos não provados resultaram da falta ou insuficiência da prova produzida, nomeadamente:
O pai do arguido negou que no ano de 1997 lhe tenha entregue a quantia de 4.500.000$00/ 22.500,00 €.
O arguido não logrou provar que a sua actividade profissional se revelasse, em termos financeiros, confortavelmente lucrativa, no início de 1997; nem que o desafogo financeiro que vivia o arguido, bem como a ajuda de seus pais e ainda de um amigo (Belarmino de Carvalho) foram as razões que levaram a que aquele optasse por introduzir alguns melhoramentos na sua indústria, adquirindo, nomeadamente, um empilhador e um camião de 12 toneladas - resultou provado exactamente o contrário, ou seja, que a situação do arguido era débil.
O arguido não logrou provar que sendo o suporte financeiro da sua família e tendo, no início do ano de 1997, aumentado visivelmente o investimento na sua indústria, se tenha preocupado em garantir eficazmente o futuro da sua família, caso sobreviesse algum imprevisto. Se o arguido estivesse preocupado com a família o normal seria que pensasse sobretudo na morte e só depois na invalidez. Resultou provado exactamente o contrário.
O arguido refere na sua contestação que firmou com diversas seguradoras contratos de seguro de natureza diversa, na sua grande maioria seguros de vida e de acidentes pessoais, aconselhado por amigos, familiares e também por mediadores de seguros e que muitos dos seguros que acabou por fazer se deveram à cuidada e criteriosa insistência das pessoas com quem contactou - os mediadores. O arguido não provou nada disto em sede de audiência.
No que respeita às dimensões da placa de aglomerado que o arguido refere que pretendia cortar no dia dos factos e ao facto de esta estar "embuchada", nenhuma testemunha, nomeadamente trabalhadores da fábrica confirma tais factos (a não ser a testemunha António Figueiredo cujo depoimento foi desvalorizado pelo Tribunal pelos motivos supra- referidos ).
O arguido refere que antes de efectuar o corte chamou a atenção de António Rodrigues de Figueiredo para que ficasse atento e voltasse a ligar o disjuntor caso este "fosse abaixo" assim que a máquina fosse ligada. Se é certo que várias testemunhas, trabalhadores da fábrica, referiram existir este problema de, sobrecarga eléctrica sempre que a máquina em questão era ligada, o certo é que sobrevém ao Tribunal a dúvida se este assistiu, na verdade, aos factos pois que, a ser verdade, não se percebe porque o arguido o não indicou nas participações de sinistro ou em momento imediatamente posterior como testemunha dos mesmos, visto que pelo facto de tal testemunha não se encontrar em situação regular no que concerne aos descontos a efectuar pela entidade patronal para a Segurança Social, não constituiria óbice a tal.
A versão do sucedido dada pelo arguido na sua contestação também não pode colher, em face de ter resultado provada uma versão totalmente diferente.
Refere também o arguido na sua contestação que, fruto do corte dos dedos, está impossibilitado de conduzir a sua vida com normalidade, como fazia anteriormente; que a sua vida profissional ficou irreversivelmente comprometida, o que diminuiu drasticamente a sua qualidade de vida e da sua família. No decurso da audiência o arguido retratou ao Tribunal uma situação bem diferente, mostrando o desenvolvimento que a sua indústria tem sofrido nos últimos anos. O arguido juntou até um relatório aos autos (fls. 1716 ss do vol. IX) para plasmar a situação descrita.
Diz ainda o arguido na sua contestação que não sindicou os dados apostos nas propostas de seguro que assinou, por ser uma pessoa de fraca instrução, crédula e estar longe de conhecer as implicações e importância dos mesmos; que, em algumas ocasiões, mesmo não lhe sendo perguntado, o arguido informou os mediadores da circunstância de ter já outros seguros do mesmo ramo noutras companhias, perguntando mesmo se isso lhe traria problemas, sendo que ditos mediadores nunca lhe colocaram qualquer obstáculo, antes o aliciando com propostas de outros seguros de natureza diversa. Em sede de audiência de discussão e julgamento resultou provado precisamente o contrário do alegado.”
*
Pois bem, conforme resulta da análise da motivação e conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões colocadas:
- Irregularidade traduzida na gravação defeituosa das declarações prestadas pelo arguido em audiência.
- Impugnação da matéria de facto.
- Violação do princípio in dubio pro reo.
- Existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova e contradição entre a fundamentação e a decisão.
Passemos à sua apreciação
A) Da irregularidade
Diz o recorrente que existe uma gravação defeituosa das declarações prestadas pelo arguido em audiência, o que na sua perspectiva impede o tribunal de conhecer “de facto” e impõe a realização de um novo julgamento.
É um facto que a existência de deficiências de gravação consubstanciam irregularidade que, sem qualquer margem para dúvida, afecta o valor do julgamento e do processado posterior, na medida em que, havendo recurso da matéria de facto, pode impossibilitar o Tribunal da Relação de a conhecer ( artº 123º CPP)
Mas será que só por essa razão o julgamento deverá considerar-se inválido ?
Parece-nos que a resposta não poderá deixar de ser negativa.
Na verdade para que assim seja será necessário que as declarações ou os depoimentos nos trechos afectados por tal deficiência tenham de algum modo sido postos em causa pelo recorrente, indicando concretamente o que é que foi dito de relevante na perspectiva do recorrente que não consta na gravação, pois só nessa situação o Tribunal de recurso fica impedido de conhecer dos discursos alegadamente produzidos em audiência.
Ora no caso vertente, constata-se da análise do recurso da matéria de facto interposto pelo recorrente, que este não invoca como seu fundamento qualquer trecho desse depoimento que esteja abrangido pela parte afectada pela alegada deficiência.
É que se eles eram assim tão importantes deveria o recorrente apontá-las em concreto – o que é que foi dito de relevante face ao seu ponto de vista ?- e não limitar-se apenas a invocá-las em termos genéricos, já que essa é a incumbência de quem elabora o recurso e a transcrição destina-se a que o tribunal superior verifique se o recorrente tem ou não razão. Mas o que não se destina é a realizar um novo julgamento.
É que o recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre a matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa.
Acresce que a versão do arguido não mereceu ao tribunal qualquer credibilidade, o que como veremos no ponto seguinte, este tribunal terá de acatar.
Por isso se conclui que a invocada irregularidade não afecta a validade do julgamento, e como tal se julga improcedente.
B) Da impugnação da matéria de facto.
O Ministério Público na 1º instância suscitou na resposta a questão da rejeição do recurso por falta de observância do disposto no artº 412º nº 3 e 4 CPP, ao não fazer a indicação dos pontos de facto incorrectamente julgados e as provas que, em relação a cada um deles impõem decisão diversa da recorrida, nem referência aos suportes técnicos.
Vejamos.
Como é sabido para que este tribunal possa apreciar o recurso sobre a matéria de facto, é necessário que quem recorre dê integral cumprimento ao disposto no Artº 412º nº 3 a) e b) e 4 CPP.
Com efeito aí se estabelece:
“ 3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. “
Incumbe pois ao recorrente, sempre que impugne a matéria de facto, o ónus de concretizar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sempre que as provas tenham sido gravadas a concretização destas terá de ser feita por referência aos suportes técnicos, havendo então lugar à transcrição.
Ora analisando conjugadamente a motivação e as conclusões não poderemos deixar de reconhecer alguma razão ao Ministério Público, já que o recorrente apenas se limitou a alegar em termos genéricos a sua discordância quanto à matéria de facto provada centrando-a no argumento de que a lesão ocorreu por acidente.
No mais, aponta também como erradamente julgada a matéria de facto considerada não provada nos pontos 2, 3, 4,13, 14 e 20.
Já no que concerne aos restantes requisitos, dá satisfação cabal aos mesmos, pelo que, entendemos que, pese embora a omissão expressa relativamente aos factos provados com os quais discorda, este Tribunal está em condições de tomar conhecimento da matéria de facto.
Improcede assim, a invocada questão prévia.
Entremos então na apreciação do recurso.
O recorrente entende não ter o tribunal valorado as declarações do arguido e a da única testemunha que assistiu ao acidente, pois segundo o seu ponto de vista a restante prova não é credível.
Vejamos.
Nos termos do Artº 127º CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
Daí que haja necessidade de tais comprovações serem sempre motiváveis.
Para além disso não podemos de modo algum ignorar que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. É que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, olhares, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ler a transcrição do que foi dito de viva voz .
E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações ( contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção ( pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio das livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
Como diz Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado, 12ª ed., pág. 339."... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica..."
Também Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 126. refere que a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.
A convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.
Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência".
E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas.
Assim na motivação do seu recurso o recorrente, como vimos, ao fim e ao cabo reconhece que as conclusões sobre a facticidade provada têm suporte na prova produzida, mas desvaloriza-as. Pelo contrário entende que a versão por si defendida deveria ser aquela a ter acolhimento pelo tribunal.
Mas o que desde já se adiantará é que não tem claramente qualquer razão.
Na verdade da leitura da transcrição e da análise dos elementos constantes dos autos, designadamente as reconstituições e relatórios periciais feitos que concluem ter o corte dos dedos ocorrido por acto voluntário do arguido, não resulta que outra devesse ter sido a decisão sobre a matéria de facto dada como provada relativamente às razões e à forma como o arguido voluntariamente decepou os seus dedos.
Acresce que a versão do arguido e a da testemunha António Figueiredo, exactamente pelas razões que constam da fundamentação e que nos dispensamos aqui de repetir, com as quais concordamos em absoluto, não merecem qualquer credibilidade procurando defender aquilo que é indefensável e que o demais circunstancialismo envolvente aos factos se encarrega de demonstrar à saciedade.
É que dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais qualidades apreensíveis na transcrição, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, que não é o caso em análise como já vimos, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Mas há mais.
Com efeito regressando à envolvente dos factos, ninguém no curto espaço de seis meses desata a fazer 23 contratos de seguro de acidentes de trabalho, com valores elevadíssimos, que lhe acarretaria o pagamento de prémios de seguro no montante global de cerca de 30.000 euros anuais, para o pagamento dos quais não tinha capacidade, pois que os seus rendimentos anuais não ultrapassavam cerca de 23.000 euros.
E ainda mais, escassos dias após ter feito o último contrato de seguro, os dedos polegar e indicador da mão direita são decepados. Precisamente aqueles que lhe dariam o máximo de incapacidade com o mínimo de desvalorização física.
Ora da conjugação de toda essa prova já anteriormente referida, outra conclusão não há a tirar que não seja a de que o arguido se quis auto-mutilar apenas com o objectivo por si traçado de cobrar as importâncias dos seguros feitos nos seis meses anteriores.
Assim haverá que concluir que a respectiva motivação e a convicção formada pelo Mmº juiz não contrariou as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e como tal nada há a censurar aos factos que foram considerados provados.
E no que concerne aos factos que foram considerados não provados nos pontos 2, 3, 4, 13, 14 e 20, igualmente nenhuma censura nos merece a decisão recorrida.
Desde logo os elementos contabilísticos do arguido demonstram que a sua situação não era de molde a poder suportar o pagamento de prémios de seguro no montante de cerda de 6.000 contos anuais e ainda fazer investimentos vultuosos. Por outro lado próprio contabilista do arguido, que até é seu primo – Correia de Sousa – no seu depoimento reconhece que do seu conhecimento oficial, pagar um tal montante por parte do arguido seria uma “ginástica”, “era uma loucura”, “ deixava de pagar ao pessoal”.
Quanto à alegada testemunha presencial dos factos – António Figueiredo – não só apresentou um discurso contraditório em sede de inquérito e audiência, afirmando primeiro que não viu o arguido escorregar ou tropeçar e em audiência já diz tê-lo visto escorregar ou tropeçar “num bocadinho” de madeira, e ainda que o arguido na altura tinha a mão de cada lado do disco, quando este refere ter ambas as mãos do mesmo lado.
Enfim a própria transcrição revela um depoimento extremamente inseguro, levantando dúvidas se o mesmo se encontrava no local ou, no mínimo que nessa precisa altura estivesse a olhar para aquilo que o arguido fazia e ainda curiosamente com atenção ao pormenor do local onde estava a pôr os pés – “num bocadinho” de madeira no chão, que alegadamente o fez desequilibrar.
Finalmente como muito bem refere o Mmº juiz não se consegue entender que a ser verdade que tal testemunha estivesse no local a mesma não tivesse desde logo sido indicada nas participações de sinistro ou em momento imediatamente posterior como testemunha dos mesmos, pois o facto de tal testemunha não se encontrar em situação regular no que concerne aos descontos a efectuar pela entidade patronal para a Segurança Social, não constituiria óbice a tal.
Deste modo nada há a censurar relativamente à matéria de facto dada como não provada e ora impugnada a qual merece a total concordância deste Tribunal.
C) Do princípio in dubio pro reo.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões diferentes e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando do texto da decisão recorrida, decorrer, de forma evidente, que o tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido.
Ora conforme já vimos não só o tribunal colectivo não teve quaisquer dúvidas quanto à ocorrência dos factos que considerou provados como os mesmos obtiveram a sua confirmação por parte deste Tribunal de recurso.
Deste modo improcede igualmente o recurso nesta vertente.
D) Dos vícios
O recorrente vislumbra a existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova e contradição entre a fundamentação e a decisão.
Passemos a apreciá-los.
Contudo e antes de mais há que ter presente que os referidos vício têm de resultar apenas do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (Artº 410º nº 2 CPP), não sendo admissível a consulta a outros elementos que constem do processo, como vem sendo o entendimento da jurisprudência AcSTJ 92.11.04, BMJ 421, 186; AcSTJ 93.09.22, CJSTJ 3/93, 210; AcSTJ 94.02.17, BMJ 434, 514; AcSTJ 97.11.19, BMJ 471, 115; AcRE 98.03.10, BMJ 475, 797; AcRE 96.10.15, BMJ 460, 830; AcRP 95.09.27, CJ 4/95, 231;.
Quer isto dizer que este tribunal só e apenas pode apreciar a decisão recorrida tal qual ela se apresenta para verificar se a mesma padece de algum vício.
Feito este intróito analisemos então se o acórdão recorrido padece de algum vício.
Alega o recorrente que os vícios invocados de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório se verificam porque o tribunal formou a sua convicção em provas indirectas, conjunturais e conclusivas, insuficientes para a decisão e sem suficiente exame crítico.
Ora o que desde já se dirá é que uma tal fundamentação, assentou exclusivamente no ponto de vista do arguido relativamente à sua divergência quanto à forma como o tribunal apreciou a prova, a qual foi já objecto de apreciação anteriormente.
Ora tal divergência é insusceptível de integrar qualquer um dos citados vícios.
Na verdade a contradição insanável de fundamentação consubstancia, como dissemos, o vício previsto no Artº 410º nº 2 b) CPP.
O mesmo verifica-se, segundo Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Volume, pág. 739., “ quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.”.
Por sua vez para que possa haver o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no Artº 410º nº 2 a) CPP, é necessário que na factualidade vertida na decisão faltem elementos que, podendo e devendo ser indagados, sejam necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Por último o erro notório na apreciação da prova está previsto no Artº 410º nº 2 c) CPP.
Como escrevem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740. “ Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto ( positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
Ora o que verificamos é que toda a argumentação do recorrente em sede de vícios não cabe manifestamente naquelas definições.
Trata-se de uma clara divergência quanto à forma como o tribunal recorrido apreciou a prova.
É que os aludidos vícios, como decorre do já exposto anteriormente nada têm a ver com a desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido se a decisão fosse proferida pelo recorrente, pois nesta parte prevalece a decisão do tribunal, a qual é tomada em consciência em função da livre apreciação da prova feita em audiência, princípio esse plasmado no Artº 127º CPP e a que já atrás fizemos referência abundante, que por isso nos dispensamos aqui de voltar a repetir.
De todo o modo sempre se dirá que da fundamentação da matéria de facto constante da sentença recorrida, da mesma constam por forma clara a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o respectivo processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas, não se vislumbrando a existência de qualquer arbitrariedade nessa apreciação, nem contradição, encontrando-se impecavelmente bem estruturado, razão pela qual não se suscita qualquer questão ou dúvida por parte deste tribunal.
Por outro lado a matéria de facto assente é suficiente para condenação do arguido.
Termos em que, sem outras considerações improcede o recurso quanto a esta matéria.
Em suma o acórdão recorrido não é merecedor da mais pequena crítica por parte deste Tribunal e como tal confirma-se integralmente.

DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o douto acórdão recorrido.
Condena-se o recorrente em doze Ucs de taxa de justiça
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP).
Honorários ao ilustre defensor oficioso nomeado em audiência, de harmonia com o nº 6 da tabela de honorários publicada com a Portaria 1386/2004 de 10 de Novembro, a cargo do arguido, mas a adiantar pelos CGT.
Tribunal da Relação de Coimbra, 7 de Dezembro de 2005.